Talvez surjam pessoas dizendo que Nelson Mandela (1918-2013)
não foi nenhum pacifista, que sob seu comando a África do Sul caiu em uma crise
econômica profunda, que seu esforço para superar o apartheid não passou de uma
estratégia para atrair investidores e nada mais. Lembrarão de seu passado (a partir
de agora, tudo que falarem de Mandela será passado?) de guerrilheiro, falarão
de sua amizade "suspeita" com Fidel Castro e outros ditadores.
Mas a verdade é que bem antes de morrer Mandela já virara um
ícone, uma unanimidade. Mais provável mesmo é que Mandela seja decididamente
uma unanimidade e, como acontece com as unanimidades, muitas vezes mal-interpretado.
O maior legado de Mandela, ao seu país e ao mundo, foi a
lição suprema do perdão. Lição difícil, aprendida e acalentada durante 27 anos
de prisão, sob trabalhos forçados. O maior crime cometido por Mandela, e por
tantos outros daquele país, não foram atos de terrorismo, não foi a corrupção,
não foi sequestro seguido de morte, tráfico de drogas ou de influência: foi não
aceitar um sistema político que separava o povo entre brancos privilegiados e
negros excluídos, foi acreditar na igualdade, foi lutar pelos seus pares.
No Brasil, não é fácil para nós entender o que foi o
apartheid, pois por aqui o racismo é velado e cínico. Mesmo assim, a imensa
maioria vê Mandela como herói. Muitos lamentaram e lamentarão sua morte, no
entanto, poucos seguirão seu ensinamento. Perdão é palavra fora de moda, o que
é bem compreensível, pois o excesso de impunidade sufoca as possibilidades para
o perdão. Quando criminosos e malfeitores riem da nossa cara, falar em perdão
vira afronta. O que as pessoas querem, o tempo todo, nas formas mais violentas
e degradantes possíveis, é a vingança.
Mas o perdão não é apenas um ato de nobreza e abnegação. Não
é um atestado de santidade ou fraqueza. O perdão pode ser uma estratégia
política, pode ser um passo importante para uma sociedade construir um futuro
mais próspero, livre de revanchismo. Enquanto Mandela buscou o diálogo com quem
o prendeu e humilhou, impediu que o rancor se tornasse política de estado,
ainda que tivesse todos os motivos para devolver aos defensores e beneficiários
do apartheid ao menos um pouco do sofrimento que essa política repugnante impôs
à maioria negra sul-africana.
É pena que atualmente, ao menos no Brasil, perdão seja uma
ideia sem sentido, é lamentável que após tantos anos de impunidade, perdão seja
quase sinônimo de injustiça, e que justiça se confunda com vingança. Mandela
entrará para a história como um homem admirável − até quando, não sabemos − mas
a sua maior lição ainda não foi aprendida.
A cena mais forte já produzida pelo cinema brasileiro − é
bom começar com afirmações definitivas, nos fazem sentir importante e sábio, a
despeito de toda nossa ignorância sobre o assunto em questão − está no filme Ó paí, ó, de Monique Gardenberg. Uma das
maravilhas da internet, especialmente para escritores preguiçosos, apressados
ou incapazes de fazer uma boa descrição − sou muito de tudo isso − é que ela
pode nos dispensar do sacrifício e nos permite mostrar direto aquilo de que
estamos falando. É disso que estou falando:
A cena emociona pela dissecação do que é racismo de verdade:
o fato de alguém julgar a si mesmo superior aos que são diferentes dele, seja
pela cor, seja por alguma outra marca étnica, que pode variar de nuances no tom
da pele até o tamanho do nariz, a largura da testa etc. Quando o racismo
despenca na cabeça de alguém, demonstra-se completamente covarde, por
transformar característica em defeito e impedir a vítima de qualquer defesa que
não soe ridícula, como as tentativas de clareamento da pele, as técnicas de
estiramento de fios capilares, as lentes de contato coloridas: tudo isso,
quando feito não por uma simples questão pessoal estética, mas para tentar
apagar as marcas de quem a pessoa é −ninguém pode ser definido apenas pela
etnia; contudo, renegar a própria origem e herança cultural e genética é um
modo triste de autoamputação.
Racismo não é apenas colocar um "apelido" em
alguém. É, entre muitas outras coisas, manipular a história e a ciência para
rebaixar o outro e dar a si mesmo um lugar de honra. "Explicitar" a
inferioridade dos outros é a desculpa quase perfeita para justificar desmandos,
injustiças, para "legitimar" genocídios e toda sorte de atrocidade.
Mas é fácil perceber que o racismo é mais eficiente quando a
própria vítima do preconceito o introjeta e passa a viver pautado pela própria
discriminação que recebe como sendo algo natural. Dá bem mais certo e é bem
mais econômico do que a guerra, além de confundir bem mais as pessoas em geral.
Desde criança ouço duas afirmações sobre racismo que sempre
considerei, para ser franco, abjetas. A primeira delas acerta na afirmação, mas
esconde uma sordidez absurda: "não é só o negro que sofre
preconceito". É claro que não é só o negro que sofre preconceito. Mulheres,
indígenas, ciganos, evangélicos, judeus, católicos, umbandistas, homossexuais,
espíritas, capoeiristas, sambistas, policiais, professores, literatos, mestres
de obras, serventes de pedreiro, encanadores, garis, funcionários públicos,
nordestinos, gaúchos, imigrantes, brasileiros em geral, analfabetos, pobres
etc., todos são vítimas em potencial de ações discriminatórias. Até aí, e daí? O
problema é quando a pessoa que traz essa constatação brilhante à tona, a de que
não é só o negro que sofre preconceito, usa exemplos que normalmente carecem de
reflexão mais profunda.
Acabo de ler, por exemplo, a "observação" de que,
se em uma briga de trânsito, um negro for xingado de macaco e retrucar ao seu
oponente branco o chamando de "branquelo azedo", os dois incorreram
em racismo. É fato que ambos foram grosseiros e que tiveram atitudes
reprováveis. É fato que cada um dos agressores, ao se sentir ofendido em sua
honra pode buscar, amparado na lei, a reparação que julgar proporcional à
injúria sofrida. Mas também é fato que o peso da ofensa é maior na medida em
que ela acompanha uma série de práticas históricas na sociedade que
discriminam, humilham, e separam as pessoas em "castas". Chamar
alguém de macaco, é dar a ele características de um animal irracional incapaz
de pensamentos elaborados, muitas vezes dócil e fácil de domesticar. É dizer ao
injuriado que ele é inferior e deve se colocar em seu lugar de "quase
coisa", é afirmar que o "macaco" em questão até pode ser aceito
na sociedade, desde que saiba se comportar, não pretenda estar no mesmo nível
dos seres "plenamente humanos" e respeite os "superiores".
Aquilo que parecia ser apenas um "xingamento em momento
de fúria", algo grosseiro, mas inocente, revela toda uma visão de mundo
compartilhada surdamente por boa parte da sociedade. Já, chamar alguém de
"branquelo azedo", é sim, uma grosseria enorme e igualmente
imperdoável, mas o peso histórico desse xingamento não envolve escravidão,
violência policial, discriminação no mercado de trabalho. O branquelo azedo é
menos parado pela polícia, é representado positivamente na mídia, geralmente
não é discriminado no mercado de trabalho.
Já vi brancos serem hostilizados em grupos de negros. Já vi,
por exemplo, cantores brancos extremamente competentes serem humilhados em
corais onde predominavam cantores negros, com piadinhas de péssimo gosto, com o
cantor branco sendo ignorado e repreendido a todo instante. Naquele caso, os
negros se julgavam superiores ao branco, negando a ele condições de exercer, no
caso a sua arte. Já vi nas poucas quadras públicas onde é possível jogar
basquete brancos e mestiços "desbotados" − como eu − serem
hostilizados e até proibidos de jogar, fora terem de ouvir "gracejos"
racistas a todo instante. Foram situações grotescas, absurdas, que merecem
repúdio. Mas não podem ser comparadas em alcance e número de ocorrências com o
racismo que ocorre contra negros ou qualquer um que não seja branco, ainda que
azedo. Não pretendo discutir aqui se a postura dos membros do coral ou dos
"basqueteiros" foi uma espécie de resposta histórica às discriminações
e abusos contra negros, nem que, sendo eles ainda discriminados em boa parte da
sociedade, ali seria um dos poucos ambientes onde seus talentos e culturas
poderiam ser devidamente valorizados. Não creio que todos os atos de todas as
pessoas são conscientemente políticos, ideológicos ou contestadores; também não
credito que o erro de lá é o salvo-conduto de cá: nesses casos, houve sim, a
despeito de qual teria sido a intenção dos envolvidos, preconceito racial, que
pode ter acarretado problemas emocionais significativos aos que não conseguiram
lidar de forma saudável com a discriminação que sofreram. Agora, daí a querer
colocar na mesma balança as consequências do racismo histórico e com a
conivência de tanta gente importante, com o xingamento covarde feito em uma
briga de trânsito já é demais. Querer equiparar a grosseria racista com as
discriminações praticadas no trabalho, na mídia, nas escolas é um disparate.
Ignorar que durante anos os negros foram retratados ou como escravos, ou como
marginais, ou como serviçais, o que só reforça o imaginário popular de que eles
são mesmo inferiores do ponto de vista intelectual, fazendo sucesso apenas em
áreas restritas da música e dos esportes, é hipocrisia. Rotular o negro que ao
se sentir ofendido ou injustiçado de "coitadinho" e
"folgado" é vergonhoso.
A segunda afirmação que me causa náuseas é bem menos
discreta: "o preconceito começa com o próprio negro; eles têm preconceito
entre eles mesmos!". Aqui a hipocrisia é bem menos sutil. É como se
dissessem "se os próprios negros se tratam de forma grosseira e racista,
por que eu, que nem negro sou, não posso, por exemplo, contar piadas racistas?".
De fato, conheci mais de uma pessoa negra que tinha opiniões
racistas sobre os próprios negros, inclusive na minha família. Mas, em vez de
considerar o comportamento dessas pessoas uma prova cabal de que a
criminalização do racismo é algo incoerente, vejo com clareza que o pensamento
racista que emanou das classes superiores desde, sei lá, Cabral, continua firme
e operante. Refletir sobre o que leva uma pessoa negra a discriminar sua
própria etnia e origem, ninguém quer, né?
Separar racismo de bulllyng (o que também é um problema
gravíssimo e até pode estar misturado com racismo que deve ser combatido com
seriedade, mas é outra coisa), ou do mero mimimi de quem não sabe o que é ser
constantemente suspeito por causa de sua irremediável cor de pele é algo de
grande urgência.
Finalizo lembrando os nomes de dois raps dos anos 90. O
primeiro se chama A cor da pele não
importa nada feito por artistas brancos que faziam parte do pioneiro
movimento hip hop em São Paulo; o segundo, feito pelo rapper negro Dexter, é uma
resposta aos realmente bem-intencionados rappers brancos e se chama A cor da pele não importa o caralho.
O acúmulo de teorias e ideias pedagógicas ao longo de muitos
e muitos anos − penso em algo em torno de cinco séculos, mais ou menos − nos
faz perceber, neste momento da história, que a educação nunca correu tanto
risco de, inexistindo qualquer evolução sensível nas últimas décadas, ir
correndo abraçar os retrocessos como se estes fossem a tábua de salvação, se
não da educação como um todo, ao menos da paz de espírito − alguns de porco, é
bem verdade − do corpo docente e dos governantes em geral − esses suínos por
excelência.
Em primeiro lugar, o número de professores que marejam os
olhos quando pensam na repetência é cada
vez maior. Já existem inclusive professores que têm saudade de algo que sequer
viveram, posto que a aberração da aprovação automática já existe há tempo
suficiente para ter ajudado a de-formar muitos mestres da atualidade.
Aliás, é bom frisar: aquilo que muitos chamam de progressão
automática jamais foi nada além de aprovação automática. A progressão prevê um
novo paradigma de organização das turmas, muito diferente do sistema seriado.
Na progressão continuada, a avaliação não é usada para aprovar ou reprovar ao
final de cada ano ou ciclo, mas para indicar quais caminhos o aluno deve
percorrer. A progressão continuada também prevê um novo modo de organizar os
currículos, menos enraizados na questão dos conteúdos e mais voltados às
habilidades e competências, palavrinhas bonitas e já esvaziadas de significado,
de tão desgastadas e violentadas pelo discurso pedagógico vigente, sem que haja
as mínimas condições reais de que habilidades e competências sejam realmente
trabalhadas e desenvolvidas.
Vivemos mais do que nunca de arremedos e simulacros, algo
tão combatido por Paulo Freire; aliás, muitas críticas do atual "sistema
educacional" são atiradas sobre Paulo Freire, sendo que ele, que não vive
esses tempos sombrios, já criticava com veemência o que somos obrigados a assistir hoje, como
aparelhamentos, educação bancária, ensino a serviço das elites, falta de reflexão
e autocrítica por parte de quem se acredita "de esquerda". Simulamos
trabalhar as habilidades dos alunos, mas na verdade esperamos que eles sejam
competentes apenas para realizar nossas provas e demais avaliações tradicionais
e sem valor fora do ambiente escolar.
Os professores são obrigados a repetir um discurso inovador
sobre educação, mas a prefeitura de São Paulo acaba de voltar a tratar provas
bimestrais e lição de casa como fetiches e panaceias que, já estamos bem
cientes disso, não resolverão aquilo que esperamos que resolvam − vale lembrar
que lição de casa e provas já fazem parte da rotina de muitos alunos e
professores; eu mesmo trabalho com ambos, sem esquecer de lidar com outros
instrumentos de avaliação. A conversão errada nos enfiou a todos na contramão
do futuro e do aprendizado com propósitos relevantes.
Tenho a sensação de que todas as teorias sobre educação, ao
menos todas as verdadeiramente relevantes, já foram estabelecidas,
incorporadas, domesticadas, adoçadas e, de tão distorcidas na prática, viraram
nosso terror e amargura. O que conta agora é buscar caminho para efetuá-las de
acordo com cada realidade regional, de bairro, de sala, de aluno, até. Levar a
realidade local em conta, aliás, já é parte de uma teoria sobre educação.
Reprovar, na maioria das vezes, é apenas uma força de coerção e de vingança.
"O cara que não fez nada o ano inteiro não pode passar". O que
precisamos descobrir é se esse cara aprendeu alguma coisa positiva que lhe será
de algum modo útil ou caro ao longo de sua vida.
A briga não deve ser pela reprovação, mas por instrumentos
que auxiliem na disciplina e propiciem um ambiente propício para a relação
ensino-aprendizagem − que um não existe sem o outro já virou clichê sem ser
devidamente problematizado e levado em conta no cotidiano escolar. A prova,
mensal, bimestral ou seja lá o que for, é um instrumento de avaliação que já
foi demonizado e agora ressurge como uma espécie de redenção; mas se ela não é
a vilã do sistema escolar, tampouco pode ser considerada sua redentora. Ela é
apenas um instrumento de avaliação que serve em algumas situações e é opressiva
ou inútil em outras. A lição de casa pode ser uma necessidade de um determinado
contexto pedagógico e pode também não passar de um castigo bobo ou uma espécie
de satisfação aos pais que ao verem seus filhos atarantados com cadernos e
livros pela casa terão a sensação de que seus filhos estão aprendendo, mesmo
que as lições de casa sejam tão trabalhosas quanto burras e sem sentido. Mas,
para quem "relançou" a prova bimestral e a lição de casa como
propostas pedagógicas, certamente quer lidar mais com as sensações e menos com
os problemas de fato.
Por fim, vale ressaltar que educação, sempre e sempre, é um
ato político. Política sempre exigirá escolhas, tomadas de decisão e de partido,
ainda que rejeitemos os "partidos políticos", que na verdade nem
merecem esse nome e deveriam ser chamados de "partidos fisiológicos".
Escolher um lado e tomar decisões significa necessariamente que não é possível
agradar a todos, ainda que em assuntos públicos, devamos trabalhar para todos. A
atual proposta da prefeitura de São Paulo propõe medidas que pretendem agradar
a gregos e goianos, mineiros e troianos: por um lado quer mostrar aos
professores que com a volta da retenção, da lição de casa, da prova bimestral e
do TCC, pretende "disciplinar" os alunos e permitir que os
professores possam voltar a lecionar de verdade. Por outro, pretende mostrar
aos pais que os professores terão de trabalhar de verdade, como se passar prova
e lição de casa fosse sinal de "trabalho verdadeiro" por parte dos
professores; alguns dos colegas mais preguiçosos, omissos e acomodados que
conheço trabalham justamente em cima da prova e da lição de casa. Enquanto isso,
por debaixo dos panos, cria mecanismos para que as retenções não sejam em
grande número, querendo vincular os rendimentos do magistério aos números de
aprovação.
Não poderia haver conduta mais covarde. Com medo ou vergonha
de assumir que realmente a retenção é um
retrocesso, a prefeitura berra que ela voltou, mas vigia e pune o professor que
reprovar acima do "esperado". Assim, o governo fica bem com órgãos
internacionais ao menos no plano das intenções, embora provavelmente continuará
a ostentar níveis vergonhosos em qualquer tipo de avaliação de sistema escolar.
Mas condições reais de trabalho para nós, os professores, e criar ambientes
verdadeiramente adequados para o
aprendizado, o governo não quer dar, não.
Muita coisa bonitinha pipocará nas redes sociais, muita
frase feita será compartilhada e curtida, muita entonação de voz forçada será
desengavetada para falar da importância do trabalho do professor. Nenhum aumento
digno será proposto, nenhuma política séria será implantada, a jornada de
trabalho não passará a ser digna e todos continuarão a olhar para as escolas
públicas com o desprezo de sempre.
Muita gente se lembrará de professores competentes, amáveis
e comprometidos, mas as lembranças mais divertidas são sobre como professores
estressados e mal pagos foram humilhados pelos motivos mais justificáveis, como
a vontade de exercer seus ofício com o mínimo de dignidade.
Muitos comemorarão os tiros no assaltante da moto cara sem
fazer qualquer tipo de associação entre educação de qualidade e índices de
criminalidade.
Quantos olharão para nós com um misto de pena e desprezo,
porque ganhamos salários miseráveis e sofremos todo tipo de humilhação possível
daqueles que queremos ajudar a educar, porque não fomos suficientemente
inteligentes para conseguirmos empregos cuja remuneração é muito maior.
Muitos falarão do imperador do Japão, contarão mentiras
singelas sobre os professores do Japão, mas se sentirão espertos por enganarem
os professores daqui, por passarem mais um dia pela escola sem nada aprender, e
ainda dirão que o governo deveria valorizar o professor.
Muitos resistirão dia após dia, planejando, preparando,
elaborando, dando a cara pra bater, suando sangue, chorando abacaxis e ouriços,
empenharão a vida em uma causa, amarão sem pieguice, lutarão por uma causa,
sentirão medo, terão insônia, ganharão pouco, trabalharão muito e terão em cada
segundo de aprendizado verdadeiro aquela alegria que nenhum outro profissional
pode ter.
Não queremos parabéns, chocolates ou dias de folga. Queremos
nossa dignidade de volta.
E mais uma vez Paulo Coelho vira notícia. Um dos 70
escolhidos pelo Ministério da Cultura para representar o Brasil na Feira do
livro De Frankfurt, neste ano em que o Brasil será homenageado no principal
evento do mercado editorial mundial, o autor com fama de mago declinou do
convite para protestar contra a ausência de alguns dos principais campeões
brasileiros de tiragens. Nomes André Vianco, Thalita Rebouças e Felipe Neto
foram lembrados por Paulo Coelho como exemplo, entre muitos outros, de
escritores que verdadeiramente
representam o Brasil, justamente por serem os mais lidos da atualidade.
O raciocínio de Paulo Coelho é bastante lógico e coerente. A
própria ministra da cultura, Marta Suplicy, ao ser questionada sobre o número
muito pequeno de escritores negros e índios da delegação brasileira, disse que
a escolha dos nomes se deu por razões estéticas, não étnicas, e que a Feira do
livro de Frankfurt é um evento comercial. Ao tentar separar ética de etnia e
acabar embolando arte com mercado, o que a ministra fez foi misturar alhos com
bugalhos.
De fato, a Feira do livro de Frankfurt é realmente um enorme
balcão de negócios. Sendo assim, importa divulgar produtos que tenham reais
condições de alcançar sucesso comercial, e as grandes tiragens desses autores
aqui no Brasil e por vezes também no exterior, como é o flagrante caso do
próprio Paulo Coelho, não podem ser ignoradas. É uma oportunidade para fazer
dinheiro! Frankfurt, para muitos, é a Davos dos livros.
Paulo Coelho, de modo até mesmo um tanto grosseiro, o que,
até onde eu saiba, não é comum, o que revelou que o escritor está realmente
irritado com a situação, chegou a afirmar que sequer conhecia a maioria dos
escritores que estavam presentes na lista. Segundo li em algum lugar, todos os
70 convidados já foram traduzidos para o alemão, o que não deixou de ser um
critério, condição básica de qualquer lista − outro quesito obrigatório de
qualquer lista desse tipo é a polêmica instaurada logo sua divulgação.
Paulo Coelho talvez esteja um pouco mal informado sobre seus
colegas escritores brasileiros, posto que muitos são nomes correntes nas
páginas culturais de jornais e revistas, embora boa parte deles mantenha
tiragens tão pequenas que chegam a ser ridículas, se comparadas a qualquer
escritor que fale de zumbis, anjos, vampiros ou autoajuda. Em todo caso, a
desinformação do autor de Diário de um
mago vem corroborar o que já percebi há algum tempo: Paulo Coelho não é um
leitor ferrenho de literatura, haja vista seus depoimentos autofágicos que
costumam falar muito de si mesmo, de seu sucesso, sua grana, as festas que
frequenta, as celebridades que leem seus livros etc.
Recentemente, lançou um livro com o mesmo título de um
clássico de Jorge Luis Borges, O Aleph,
e escreveu um conto que pretendia
dialogar com a obra do magistral escritor argentino. Tratou-se de uma tentativa
de aproximação com universo literário que em geral, Paulo Coelho ignora e é
ignorado por ele. Todo esforço por parte do mago para conquistar seu lugar,
digamos, nas aulas da FFLCH, não pela via comum e obrigatória da leitura dos
clássicos, mas por micagens como a que promoveu com Borges, ou pela eleição
para a Academia Brasileira de Letras, deram o resultado esperado.
Acredito, sem cinismo algum, que em eventos como a Feira do
livro de Frankfurt não se pode ignorar Paulo Coelho, Raphael Draccon, Eduardo
Sphor e outros campeões de vendas. Afinal de contas, eles escrevem livros por
editoras e têm público: são, portanto, produtores de livros com enorme
potencial de mercado, o que serve, inclusive, para manter as editoras abertas e
as feiras de livros ao redor do mundo funcionando. Aliás, a academia ganharia
muito mais se desse alguma atenção a esses livros do que se insistir em os
ignorar. Embora discorde que esses autores formem leitores, pois um leitor
"formado", ou em constante formação, é aquele que consegue lidar com
diversos gêneros e modalidades literárias, e não o leitor monofônico que busca
nos livros um eterno estilo próximo do cinema ou da televisão, ou ler sempre as
mesmas histórias com personagens diferentes, ora bruxos, ora anjos, ora
vampiros, ora castores…
Por outro lado, quem tem o luxo de viver dos livros, e dos
livros literários, não pode, por uma série de motivos, se dar à pobreza de
espírito de lidar apenas com livros vendáveis. Em primeiro lugar porque os
livros que não vendem aos montes também são formadores de leitores, abrem
possibilidades para que pessoas com necessidades estéticas diferentes sejam
contempladas − se há quem reclame quando uma determinada marca de iogurte sai
de circulação, como desprezar os escritores que vendem pouco? Em segundo lugar
porque é nosso dever não nos pautarmos apenas no que o mercado impõe, até porque
muito do que é oferecido, bombardeado pelo mercado, seja uma roupa, seja um
livro, seja um iogurte, é de qualidade questionável, empobrecedor, de baixo
relevo. E feiras como a de Frankfurt podem ser ao mesmo tempo um enorme balcão
de negócios e um espaço de resistência, de divulgação cultural, de encontro das
diversidades.
Há ainda um outro fator: nem todo sucesso de vendas da
atualidade o será daqui dois anos. De
vez em quando as listas dos mais vendidos são preenchidas por três ou quatro
escritores, sucessos absolutos que serão plenamente esquecidos pouco tempo
depois. Isso é da lógica do mercado, a alta rotatividade de nomes − e perceber
que Paulo Coelho consegue se manter há tanto tempo no topo só engrandece o seu
trabalho, ao menos do ponto de vista comercial. Por outro lado, há quanto tempo
temos leitores que se emocionam com Shakespeare, Machado de Assis, Carlos Drummond
de Andrade, Dante, cuja obra recentemente serviu de matéria-prima para um best seller de Dan Brown? Todos esses, e
muitos outros, venderam pouco, às vezes foram completamente ignorados em vida,
mas fazem parte do patrimônio cultural de um país, do mundo. Claro que o
mercado não respeita muito isso de "patrimônio cultural", mas de vez
em quando faz muito dinheiro indo beber justamente nessa fonte.
Por último, o que faz sucesso do ponto de vista comercial no
Brasil pode naufragar no exterior, especialmente na Alemanha, enquanto o que
resiste bravamente por aqui pode vir a ser um sucesso em outros países.
Escritores brasileiros que não constam na lista dos best sellers já foram convidados para morar na Alemanha e escrever
um livro por lá. Ignácio de Loyola Brandão, João Ubaldo Ribeiro e Fernando
Bonassi, por exemplo, já foram agraciados com essa bolsa.
Embora a queixa de Paulo Coelho tenha algum sentido, ela foi
exagerada e deu o tom de sua visão sobre literatura: um meio de vida, um
negócio como outro qualquer. Toda aquela espiritualidade emanada das páginas de
seus livros de repente foi substituída por uma coisa chamada disputa por
território, briga para abocanhar uma fatia do mercado − e estamos falando de
mercado também, ou o evento desencadeador da polêmica não se chamaria feira. Mas literatura, graças a Deus,
não é só isso, e sempre é bom poder subverter a lógica do mercado dentro de um
ambiente consumista. Foi feio ignorar os grandes vendedores de livros
brasileiros, embora Mauricio de Sousa e Ziraldo, por exemplo, além de João Ubaldo
Ribeiro, que para o espanto de muitos já vendeu milhões de livros; não doeria
ter entre os escritores brasileiros algum autor de best sellers, até porque nem todos que estarão em Frankfurt são
escritores exímios, não.
Fico pensando: será que o mago Paulo Coelho não acabou dando
esse piti por perceber que não seria reverenciado como acha que merece pelos
demais escritores que estarão por lá? Ele é leitor de Thalita Rebouças e Felipe
Neto ou queria bancar o Robbin Rood das letras comerciais brasileiras?
Especulações…
E mais uma vez Paulo Coelho vira notícia. Um dos 70
escolhidos pelo Ministério da Cultura para representar o Brasil na Feira do
livro De Frankfurt, neste ano em que o Brasil será homenageado no principal
evento do mercado editorial mundial, o autor com fama de mago declinou do
convite para protestar contra a ausência de alguns dos principais campeões
brasileiros de tiragens. Nomes André Vianco, Thalita Rebouças e Felipe Neto
foram lembrados por Paulo Coelho como exemplo, entre muitos outros, de
escritores que verdadeiramente
representam o Brasil, justamente por serem os mais lidos da atualidade.
O raciocínio de Paulo Coelho é bastante lógico e coerente. A
própria ministra da cultura, Marta Suplicy, ao ser questionada sobre o número
muito pequeno de escritores negros e índios da delegação brasileira, disse que
a escolha dos nomes se deu por razões estéticas, não étnicas, e que a Feira do
livro de Frankfurt é um evento comercial. Ao tentar separar ética de etnia e
acabar embolando arte com mercado, o que a ministra fez foi misturar alhos com
bugalhos.
De fato, a Feira do livro de Frankfurt é realmente um enorme
balcão de negócios. Sendo assim, importa divulgar produtos que tenham reais
condições de alcançar sucesso comercial, e as grandes tiragens desses autores
aqui no Brasil e por vezes também no exterior, como é o flagrante caso do
próprio Paulo Coelho, não podem ser ignoradas. É uma oportunidade para fazer
dinheiro! Frankfurt, para muitos, é a Davos dos livros.
Paulo Coelho, de modo até mesmo um tanto grosseiro, o que,
até onde eu saiba, não é comum, o que revelou que o escritor está realmente
irritado com a situação, chegou a afirmar que sequer conhecia a maioria dos
escritores que estavam presentes na lista. Segundo li em algum lugar, todos os
70 convidados já foram traduzidos para o alemão, o que não deixou de ser um
critério, condição básica de qualquer lista − outro quesito obrigatório de
qualquer lista desse tipo é a polêmica instaurada logo sua divulgação.
Paulo Coelho talvez esteja um pouco mal informado sobre seus
colegas escritores brasileiros, posto que muitos são nomes correntes nas
páginas culturais de jornais e revistas, embora boa parte deles mantenha
tiragens tão pequenas que chegam a ser ridículas, se comparadas a qualquer
escritor que fale de zumbis, anjos, vampiros ou autoajuda. Em todo caso, a
desinformação do autor de Diário de um
mago vem corroborar o que já percebi há algum tempo: Paulo Coelho não é um
leitor ferrenho de literatura, haja vista seus depoimentos autofágicos que
costumam falar muito de si mesmo, de seu sucesso, sua grana, as festas que
frequenta, as celebridades que leem seus livros etc.
Recentemente, lançou um livro com o mesmo título de um
clássico de Jorge Luis Borges, O Aleph,
e escreveu um conto que pretendia
dialogar com a obra do magistral escritor argentino. Tratou-se de uma tentativa
de aproximação com universo literário que em geral, Paulo Coelho ignora e é
ignorado por ele. Todo esforço por parte do mago para conquistar seu lugar,
digamos, nas aulas da FFLCH, não pela via comum e obrigatória da leitura dos
clássicos, mas por micagens como a que promoveu com Borges, ou pela eleição
para a Academia Brasileira de Letras, deram o resultado esperado.
Acredito, sem cinismo algum, que em eventos como a Feira do
livro de Frankfurt não se pode ignorar Paulo Coelho, Raphael Draccon, Eduardo
Sphor e outros campeões de vendas. Afinal de contas, eles escrevem livros por
editoras e têm público: são, portanto, produtores de livros com enorme
potencial de mercado, o que serve, inclusive, para manter as editoras abertas e
as feiras de livros ao redor do mundo funcionando. Aliás, a academia ganharia
muito mais se desse alguma atenção a esses livros do que se insistir em os
ignorar. Embora discorde que esses autores formem leitores, pois um leitor
"formado", ou em constante formação, é aquele que consegue lidar com
diversos gêneros e modalidades literárias, e não o leitor monofônico que busca
nos livros um eterno estilo próximo do cinema ou da televisão, ou ler sempre as
mesmas histórias com personagens diferentes, ora bruxos, ora anjos, ora
vampiros, ora castores…
Por outro lado, quem tem o luxo de viver dos livros, e dos
livros literários, não pode, por uma série de motivos, se dar à pobreza de
espírito de lidar apenas com livros vendáveis. Em primeiro lugar porque os
livros que não vendem aos montes também são formadores de leitores, abrem
possibilidades para que pessoas com necessidades estéticas diferentes sejam
contempladas − se há quem reclame quando uma determinada marca de iogurte sai
de circulação, como desprezar os escritores que vendem pouco? Em segundo lugar
porque é nosso dever não nos pautarmos apenas no que o mercado impõe, até porque
muito do que é oferecido, bombardeado pelo mercado, seja uma roupa, seja um
livro, seja um iogurte, é de qualidade questionável, empobrecedor, de baixo
relevo. E feiras como a de Frankfurt podem ser ao mesmo tempo um enorme balcão
de negócios e um espaço de resistência, de divulgação cultural, de encontro das
diversidades.
Há ainda um outro fator: nem todo sucesso de vendas da
atualidade o será daqui dois anos. De
vez em quando as listas dos mais vendidos são preenchidas por três ou quatro
escritores, sucessos absolutos que serão plenamente esquecidos pouco tempo
depois. Isso é da lógica do mercado, a alta rotatividade de nomes − e perceber
que Paulo Coelho consegue se manter há tanto tempo no topo só engrandece o seu
trabalho, ao menos do ponto de vista comercial. Por outro lado, há quanto tempo
temos leitores que se emocionam com Shakespeare, Machado de Assis, Carlos Drummond
de Andrade, Dante, cuja obra recentemente serviu de matéria-prima para um best seller de Dan Brown? Todos esses, e
muitos outros, venderam pouco, às vezes foram completamente ignorados em vida,
mas fazem parte do patrimônio cultural de um país, do mundo. Claro que o
mercado não respeita muito isso de "patrimônio cultural", mas de vez
em quando faz muito dinheiro indo beber justamente nessa fonte.
Por último, o que faz sucesso do ponto de vista comercial no
Brasil pode naufragar no exterior, especialmente na Alemanha, enquanto o que
resiste bravamente por aqui pode vir a ser um sucesso em outros países.
Escritores brasileiros que não constam na lista dos best sellers já foram convidados para morar na Alemanha e escrever
um livro por lá. Ignácio de Loyola Brandão, João Ubaldo Ribeiro e Fernando
Bonassi, por exemplo, já foram agraciados com essa bolsa.
Embora a queixa de Paulo Coelho tenha algum sentido, ela foi
exagerada e deu o tom de sua visão sobre literatura: um meio de vida, um
negócio como outro qualquer. Toda aquela espiritualidade emanada das páginas de
seus livros de repente foi substituída por uma coisa chamada disputa por
território, briga para abocanhar uma fatia do mercado − e estamos falando de
mercado também, ou o evento desencadeador da polêmica não se chamaria feira. Mas literatura, graças a Deus,
não é só isso, e sempre é bom poder subverter a lógica do mercado dentro de um
ambiente consumista. Foi feio ignorar os grandes vendedores de livros
brasileiros, embora Mauricio de Sousa e Ziraldo, por exemplo, além de João Ubaldo
Ribeiro, que para o espanto de muitos já vendeu milhões de livros; não doeria
ter entre os escritores brasileiros algum autor de best sellers, até porque nem todos que estarão em Frankfurt são
escritores exímios, não.
Fico pensando: será que o mago Paulo Coelho não acabou dando
esse piti por perceber que não seria reverenciado como acha que merece pelos
demais escritores que estarão por lá? Ele é leitor de Thalita Rebouças e Felipe
Neto ou queria bancar o Robbin Rood das letras comerciais brasileiras?
Especulações…
E mais uma vez Paulo Coelho vira notícia. Um dos 70
escolhidos pelo Ministério da Cultura para representar o Brasil na Feira do
livro De Frankfurt, neste ano em que o Brasil será homenageado no principal
evento do mercado editorial mundial, o autor com fama de mago declinou do
convite para protestar contra a ausência de alguns dos principais campeões
brasileiros de tiragens. Nomes André Vianco, Thalita Rebouças e Felipe Neto
foram lembrados por Paulo Coelho como exemplo, entre muitos outros, de
escritores que verdadeiramente
representam o Brasil, justamente por serem os mais lidos da atualidade.
O raciocínio de Paulo Coelho é bastante lógico e coerente. A
própria ministra da cultura, Marta Suplicy, ao ser questionada sobre o número
muito pequeno de escritores negros e índios da delegação brasileira, disse que
a escolha dos nomes se deu por razões estéticas, não étnicas, e que a Feira do
livro de Frankfurt é um evento comercial. Ao tentar separar ética de etnia e
acabar embolando arte com mercado, o que a ministra fez foi misturar alhos com
bugalhos.
De fato, a Feira do livro de Frankfurt é realmente um enorme
balcão de negócios. Sendo assim, importa divulgar produtos que tenham reais
condições de alcançar sucesso comercial, e as grandes tiragens desses autores
aqui no Brasil e por vezes também no exterior, como é o flagrante caso do
próprio Paulo Coelho, não podem ser ignoradas. É uma oportunidade para fazer
dinheiro! Frankfurt, para muitos, é a Davos dos livros.
Paulo Coelho, de modo até mesmo um tanto grosseiro, o que,
até onde eu saiba, não é comum, o que revelou que o escritor está realmente
irritado com a situação, chegou a afirmar que sequer conhecia a maioria dos
escritores que estavam presentes na lista. Segundo li em algum lugar, todos os
70 convidados já foram traduzidos para o alemão, o que não deixou de ser um
critério, condição básica de qualquer lista − outro quesito obrigatório de
qualquer lista desse tipo é a polêmica instaurada logo sua divulgação.
Paulo Coelho talvez esteja um pouco mal informado sobre seus
colegas escritores brasileiros, posto que muitos são nomes correntes nas
páginas culturais de jornais e revistas, embora boa parte deles mantenha
tiragens tão pequenas que chegam a ser ridículas, se comparadas a qualquer
escritor que fale de zumbis, anjos, vampiros ou autoajuda. Em todo caso, a
desinformação do autor de Diário de um
mago vem corroborar o que já percebi há algum tempo: Paulo Coelho não é um
leitor ferrenho de literatura, haja vista seus depoimentos autofágicos que
costumam falar muito de si mesmo, de seu sucesso, sua grana, as festas que
frequenta, as celebridades que leem seus livros etc.
Recentemente, lançou um livro com o mesmo título de um
clássico de Jorge Luis Borges, O Aleph,
e escreveu um conto que pretendia
dialogar com a obra do magistral escritor argentino. Tratou-se de uma tentativa
de aproximação com universo literário que em geral, Paulo Coelho ignora e é
ignorado por ele. Todo esforço por parte do mago para conquistar seu lugar,
digamos, nas aulas da FFLCH, não pela via comum e obrigatória da leitura dos
clássicos, mas por micagens como a que promoveu com Borges, ou pela eleição
para a Academia Brasileira de Letras, deram o resultado esperado.
Acredito, sem cinismo algum, que em eventos como a Feira do
livro de Frankfurt não se pode ignorar Paulo Coelho, Raphael Draccon, Eduardo
Sphor e outros campeões de vendas. Afinal de contas, eles escrevem livros por
editoras e têm público: são, portanto, produtores de livros com enorme
potencial de mercado, o que serve, inclusive, para manter as editoras abertas e
as feiras de livros ao redor do mundo funcionando. Aliás, a academia ganharia
muito mais se desse alguma atenção a esses livros do que se insistir em os
ignorar. Embora discorde que esses autores formem leitores, pois um leitor
"formado", ou em constante formação, é aquele que consegue lidar com
diversos gêneros e modalidades literárias, e não o leitor monofônico que busca
nos livros um eterno estilo próximo do cinema ou da televisão, ou ler sempre as
mesmas histórias com personagens diferentes, ora bruxos, ora anjos, ora
vampiros, ora castores…
Por outro lado, quem tem o luxo de viver dos livros, e dos
livros literários, não pode, por uma série de motivos, se dar à pobreza de
espírito de lidar apenas com livros vendáveis. Em primeiro lugar porque os
livros que não vendem aos montes também são formadores de leitores, abrem
possibilidades para que pessoas com necessidades estéticas diferentes sejam
contempladas − se há quem reclame quando uma determinada marca de iogurte sai
de circulação, como desprezar os escritores que vendem pouco? Em segundo lugar
porque é nosso dever não nos pautarmos apenas no que o mercado impõe, até porque
muito do que é oferecido, bombardeado pelo mercado, seja uma roupa, seja um
livro, seja um iogurte, é de qualidade questionável, empobrecedor, de baixo
relevo. E feiras como a de Frankfurt podem ser ao mesmo tempo um enorme balcão
de negócios e um espaço de resistência, de divulgação cultural, de encontro das
diversidades.
Há ainda um outro fator: nem todo sucesso de vendas da
atualidade o será daqui dois anos. De
vez em quando as listas dos mais vendidos são preenchidas por três ou quatro
escritores, sucessos absolutos que serão plenamente esquecidos pouco tempo
depois. Isso é da lógica do mercado, a alta rotatividade de nomes − e perceber
que Paulo Coelho consegue se manter há tanto tempo no topo só engrandece o seu
trabalho, ao menos do ponto de vista comercial. Por outro lado, há quanto tempo
temos leitores que se emocionam com Shakespeare, Machado de Assis, Carlos Drummond
de Andrade, Dante, cuja obra recentemente serviu de matéria-prima para um best seller de Dan Brown? Todos esses, e
muitos outros, venderam pouco, às vezes foram completamente ignorados em vida,
mas fazem parte do patrimônio cultural de um país, do mundo. Claro que o
mercado não respeita muito isso de "patrimônio cultural", mas de vez
em quando faz muito dinheiro indo beber justamente nessa fonte.
Por último, o que faz sucesso do ponto de vista comercial no
Brasil pode naufragar no exterior, especialmente na Alemanha, enquanto o que
resiste bravamente por aqui pode vir a ser um sucesso em outros países.
Escritores brasileiros que não constam na lista dos best sellers já foram convidados para morar na Alemanha e escrever
um livro por lá. Ignácio de Loyola Brandão, João Ubaldo Ribeiro e Fernando
Bonassi, por exemplo, já foram agraciados com essa bolsa.
Embora a queixa de Paulo Coelho tenha algum sentido, ela foi
exagerada e deu o tom de sua visão sobre literatura: um meio de vida, um
negócio como outro qualquer. Toda aquela espiritualidade emanada das páginas de
seus livros de repente foi substituída por uma coisa chamada disputa por
território, briga para abocanhar uma fatia do mercado − e estamos falando de
mercado também, ou o evento desencadeador da polêmica não se chamaria feira. Mas literatura, graças a Deus,
não é só isso, e sempre é bom poder subverter a lógica do mercado dentro de um
ambiente consumista. Foi feio ignorar os grandes vendedores de livros
brasileiros, embora Mauricio de Sousa e Ziraldo, por exemplo, além de João Ubaldo
Ribeiro, que para o espanto de muitos já vendeu milhões de livros; não doeria
ter entre os escritores brasileiros algum autor de best sellers, até porque nem todos que estarão em Frankfurt são
escritores exímios, não.
Fico pensando: será que o mago Paulo Coelho não acabou dando
esse piti por perceber que não seria reverenciado como acha que merece pelos
demais escritores que estarão por lá? Ele é leitor de Thalita Rebouças e Felipe
Neto ou queria bancar o Robbin Rood das letras comerciais brasileiras?
Especulações…
Não precisamos dizer que o senso comum traz alguns problemas
significativos − isso também é um grande senso comum. Também não afirmaremos
que o senso comum não é um mal em si mesmo e que ele tem sua função no
pensamento humano − todos percebemos isso com facilidade. A questão é saber o
lugar e a utilidade de cada coisa.
Desde quando me converti ao protestantismo ouço falar que o
grande mal das religiões é a religião. Tá legal, não exatamente com essas
palavras, mas, sem perceber, dizem exatamente isso. Entre as igrejas cristãs
essa fala é muito comum. Demonizam o que chamam de religiosidade como se ela
fosse o maior mal sobre a Terra. Sacralizam e dessacralizam coisas, hábitos,
lugares, promovem uma verdadeira dança das cadeiras com relação a tudo que nos
remete ao divino, com tudo que faz parte do âmbito religioso. Falar mal da
religião virou o maior clichê inclusive entre os religiosos que têm vergonha de
sê-lo.
Essa confusão, essa resistência em chamar qualquer prática
religiosa de religiosa (eita ferro!) é bem comum entre os cristãos. Nas
universidades, nos espaços acadêmicos, essa frescura não existe. Tudo que busca
manter contato, entender, apreender aquilo que não está neste mundo real (no
sentido de existir de fato, mais no sentido platônico, em oposição ao mundo
ideal), concreto, visível, tangível, esquadrinhável, é chamado de religioso.
Temos a filosofia da religião, as ciências da religião, a teologia entre elas,
e tudo funciona sem crise, resistência, recusa. Só os religiosos não gostam do
termo religião.
Isso acontece devido a vários fatores, desde a vergonha
intelectual por fazer parte de algo que nem sempre é considerado sério e
respeitável no meio acadêmico, seja por não querer ser comparado aos religiosos
mais ingênuos e rústicos, ou aos mais nítidos estelionatários da fé que grassam
em todo o Ocidente e ao menos em boa parte do Oriente também. Em muitos
ambientes, a religião é o espaço dos tolos, dos menos privilegiados do ponto de
vista intelectual, dos que aderem facilmente ao comportamento de rebanho.
Ninguém que almeje o respeito acadêmico quer fazer parte de um rebanho.
Também existe, dentro de ambientes religiosos, os que
afirmam não ser religiosos por identificarem neste contexto a repetição
exaustiva de rituais, de práticas mecânicas que nada teriam a ver com o
relacionamento direto e verdadeiro com o divino, com Deus propriamente dito.
Esses acreditam não estar dentro de um contexto religioso porque, pensam, com
eles a relação com o divino é tão genuína, tão intensa, tão corriqueira, tão
honesta, tão cerebral, que não precisam de nenhum tipo de ritual, de nenhuma
prática mecânica para se integrarem com Deus, que não está distante, mas bem
aqui pertinho.
São estes dois modos de lidar com a religião fingindo que não.
No segundo caso, muitos são os picaretas que fazem uso desse discurso,
especialmente no meio evangélico, para poderem se separar das "outras
religiões", especialmente do catolicismo, tão cheio de rituais e
mediações. O curioso dessa visão de mundo é que justamente estes que tanto
criticam a religiosidade que veem nos sacramentos, missas e feriados, práticas
milenares da igreja católica, não passam muito tempo sem inventar os seus
rituais pessoais, de acordo com seus interesses do momento. Multiplicam-se as
fogueiras santas, os cultos de milagres, os jejuns da vitória, os cultos de
libertação, as orações nos montes, os sete passos para o êxtase cósmico de
Israel, a toalhinha suada de Emaús, o tijolinho da muralha de Jericó, o cheque
voador da promessa, ou o cheque da promessa voadora… Para se libertarem da
religiosidade e seus rituais, criam uma série de novos, ou melhor, de requentados
expedientes religiosos, cada vez mais esdrúxulos.
Já no primeiro caso, a coisa assume uma complexidade maior,
complexidade que nem sei se consigo desenvolver aqui com a clareza e
competência necessárias. Mas ao menos um ponto me parece ser bem claro: há um
grupo de religiosos que, consciente do preconceito que a religião sofre nos
ambientes intelectuais, como por exemplo nas universidades e entre artistas,
simplesmente prefere não receber o carimbo de "religioso", o que de
imediato lhe traria a pecha de pouco inteligente, ingênuo, desinformado, alheio
à ciência etc.
Esse grupo, que não enfrenta essa situação sem passar por
uma crise, luta contra uma série de paradigmas e tenta agrupar em um mesmo
balaio esferas da vida humana que ao longo da história se tornaram
inconciliáveis. Se houve um tempo em que a ciência era desenvolvida e
estimulada dentro da igreja, chegou um momento em que, para manter sua
independência e seguir sua trajetória mais ou menos livre de intervenções e
ideias pré-concebidas, a ciência em geral precisou romper com a tradição
religiosa, o que, a meu ver, só fez bem a cientistas e religiosos.
Porém, ainda hoje há quem busque na ciência, digamos laica,
pontos de apoio que sustentem a sua fé, ou que pretendem lidar com a teologia
não como um recurso para lidar e entender um determinado tipo de fé, mas como
se teologia fosse um mero ramo da filosofia − o que até pode ser verdade para
os que não têm fé e se ocupam da teologia como um objeto de pesquisa. Todo esse
esforço, me parece, tem o propósito de não ser confundido com os místicos
desenfreados, ou com os estelionatários da fé. Barateiam a tradição e tentam romper
com os rituais − acredito que não existe religião sem seus rituais e dogmas −,
além de questionar praticamente tudo que faz parte da religião, pois se não são
pessoas religiosas, não podem manter práticas religiosas.
Contudo, não há nada mais religioso do que o desejo de se
comunicar com Deus, não há nada mais religioso do que acreditar em algo cuja
existência e verossimilhança não se podem provar. Pecado, necessidade de
redenção e justificação, crer na vida após a morte de modo a transformar a vida
antes da morte, tudo isso não pode deixar de ser visto como práticas
religiosas, porque o são. Encontrar novos nomes e mesmo novos meios de lidar
com o divino não vai transformar a religião em outra coisa.
Sendo assim, o sacerdote que afirma deixar de ser evangélico
para pregar o Evangelho para os evangélicos não vai além de um simples jogo de
palavras, jogo, aliás, de pouco efeito prático. Evangélico, na essência do
termo, é quem tem a preocupação de evangelizar. Cristão é quem segue a Cristo,
suas ideias, seus mandamentos, além de crer na própria divindade do Messias. Evangélico
não é, nunca foi, embora haja muita confusão, quem frequenta ou é membro de uma
igreja que se apresenta como evangélica. Religioso não é apenas quem pratica
uma série de rituais esvaziados de significado; este, no máximo, será um mau
religioso, sem compreender o que está fazendo e, consequentemente, sem alcançar
aquilo que tanto deseja.
Em vez de se preocupar em não ser identificado com esse ou
aquele grupo, de se empenhar em fazer com que suas práticas religiosas sejam
prestigiadas entre cientistas, por exemplo, vale mais o empenho em ser
religioso e evangélico por inteiro, na essência que essas palavras carregam em
si. Afinal, para quem acredita na mensagem de Cristo, os homens seguem
precisando ser religados com Deus, ou seja, precisam conhecer as Boas Novas.
Não são os nomes que precisam mudar: os mesmos nomes de sempre precisam
resgatar seus significados originais, ou então, daqui a algum tempo,
precisaremos criar novos nomes para esconder problemas antigos.
Quando o assunto é religião, repisar os clichês não vai nos
ajudar. Falar mal da religião em geral e se afirmar não pertencente a um
determinado grupo, almejando ser visto como alguém de casta superior, não
combina com a mensagem do Evangelho e apenas confundirá ainda mais os que estão
de fora. É preciso restaurar o que está quebrado, limpar o que está sujo,
resgatar a coerência e o respeito perdidos. OU então, passaremos a vida
inventando novos nomes para fraquezas antigas, novas túnicas para adornar
vaidades eternas. Reconheçamos a degradação, mas busquemos a regeneração, assim
como Jesus já fez por nós. Abandonemos o senso comum de que Jesus é bom,
religião é ruim. Só de pensarmos em Jesus e de querermos nos aproximar dele já
nos fazemos irreversivelmente religiosos − nos cabe apenas escolher entre a
religiosidade sincera e autêntica e a religiosidade senso comum, fria, falsa,
friável.
Acredite se quiser, fui ler a sério Manuel Bandeira só no
primeiro ano da faculdade. Não sério no sentido chato/acadêmico, desses que
viram o texto do avesso e tiram dele qualquer prazer possível: sério que eu
digo é com a consciência da autoria, é sabendo que O bicho, Vou-me embora pra
Pasárgada, Os sapos, Pneumotórax e outras joias da poesia
brasileira eram todos poemas do mesmo Manuel Bandeira. Sério seria conseguindo
estabelecer relações entre esses textos, descobrir uma lógica, uma visão de
mundo.
Não fui um grande leitor de literatura, e talvez ainda não o
seja. Primeiro o rock e depois a MPB foram as caçambas onde despejava meus
sentimentos, minhas dúvidas, meus demônios pessoais. Antes de tudo, a música.
Logo nos primeiros dias de estudante de Letras, o que
continuo sendo até hoje, adquiri o essencial Estrela da Vida Inteira, por causa da importância que um professor
lá atribuiu a ele. Trata-se de uma verdadeira constelação de poemas da mais
pura sensibilidade, despida dos trajes oficiais da poesia. Ali é possível
encontrar parnasianismos e simbolismos tardios, sonetos martelados, mas não
falta a dose por vezes homeopática do mais sincero lirismo. Livro para a vida
inteira.
Passei um pedaço da eternidade na faculdade. Em um daqueles
efervescentes anos em que estive preso à graduação − hoje os grilhões e as
musas que me confinam na academia são outros − conheci um amigo, colega de
curso e de ocupação. Gente boa, tímido, em dúvida sobre seguir a carreira
burocrática de servidor público do Banco do Brasil ou embrenhar-se na fauna-flora
semisselvagem das salas de aula, esse colega precisava escrever trabalho sobre
Bandeira. Emprestei minha Estrela.
O prédio da faculdade é grande e feito para os desencontros.
As vidas nos arrastam por corredeiras sem destino certo. Perdemos contato,
perdi meu livro.
Não comprei outro exemplar, sei lá por quê. Talvez esperasse
que um dia encontrasse o amigo, que me pediria desculpas e devolveria aquele ou
um outro exemplar qualquer, talvez até um raríssimo autografado pelo poeta menor
menormenormenorme, como diria Zé Paulo Paes. Também porque a grana sempre anda
curta, também porque a internet nos supre no aperto. Mas sentia falta do tato
sagrado daquelas páginas que me entendiam e me explicavam. Ainda que Bandeira
tenha chegado inteiro apenas na faculdade, seus poemas me ajudavam a não perder
o viço de leitor não profissional, de admirador não exatamente da técnica, mas
daquela outra coisa que a gente nem consegue medir ou rotular com precisão,
aquele sopro que nos faz apenas sorrir ou chorar, apenas gozar a bênção de ler
um bom poema.
As vidas seguem galopando, quando a gente vê passou mais de
uma década e a gente está casado, passando lua de mel em Natal, hotel bacanudo.
E a surpresa foi encontrar aquele amigo da faculdade que acabou, por razões
presumidas e perdoáveis, ficando com o nosso livro do Bandeira. Ele estava
passando férias com a esposa, mais funcionário público do que nunca,
bem-sucedido, certamente feliz − quem não ficaria feliz em Natal, com aquele
sol e aquele mar, as dunas, os camarões e macaxeiras, com aquele cheiro de
felicidade envolvendo a cidade? Trocamos sorrisos, cumprimentos, espantos
espontâneos, sinceras manifestações de apreço, apresentações e ele falou do meu
livro, que estava com ele, que devolveria, por intermédio de seu irmão, que ainda
morava no mesmo bairro que eu. Disse que não precisava, que eu compraria outro,
que não faria sentido nos encontrarmos em terra distante, desfrutando da
felicidade das férias, eu ainda mais, no cume da felicidade de estar celebrando
o amor da vida inteira, e ficarmos falando de livros perdidos, esquecidos ou
não devolvidos. Que ele deixasse pra lá.
Mas meu amigo, honesto, insistiu. Anotou telefone, acho, ou
me pediu que anotasse o dele, não lembro, meu livro chegaria até mim, são e
salvo, após tanto tempo. Era um livro do Bandeira, Estrela da vida inteira, não poderia ficar com quem não era seu
dono legítimo. Uma estrela que brilha sozinha no céu dos poetas, pela solidão
que o abraçou quase que a vida toda, pelo talento sem par com que costurava seus
poemas, pela alegria melancólica, pelas danças travadas com a morte. Bandeira e
sua estrela não têm dono, todo mundo sabe disso.
Era o Manuel Bandeira querendo participar de um dos pedaços
mais felizes dessa minha vida, passando para dar um oizinho, solidário. A vida
ainda continua escorrendo, até quando Deus quiser, o irmão do meu amigo até
hoje não trouxe a encomenda, e Bandeira não me larga, necessário na sala de
aula, essencial nas leituras solitárias. Manuel Bandeira está sempre presente,
mesmo que seja em forma de estrela oculta. Sem ressentimentos, preciso
encomendar outra Estrela da Vida Inteira.
Os abolicionistas corriam para os portos brasileiros receber
os navios negreiros com vaias e hostilidades os escravos? Imagino que não, dentre outros
motivos, porque os escravos, os escravos de fato, não passavam de vítimas de um
sistema hostil e vergonhoso.
Os ex-escravos iam receber os imigrantes europeus que vinha
para o Brasil trabalhar nas lavouras com hostilidades e vaias? Imagino que não,
entre outros motivos, porque sabiam que aqueles homens corriam atrás do próprio
sustento e, se faltava uma política de acolhimento dos novos homens livres ao
mercado de trabalho de uso de mão de obra escrava, a culpa não era dos
imigrantes.
Os médicos brasileiros vaiam os médicos cubanos que vieram
para atuar em áreas onde ninguém quer ir. Os médicos brasileiros os chamam de
escravos, usam de toda sua força e fúria para hostilizar um grupo que não está
tomando o trabalho de ninguém e que, se é que há alguma coisa parecida com escravidão
nesse caso, os responsáveis são os governantes cubanos, não os médicos que
vieram para cá.
A crueldade ganha requintes diabólicos quando observamos nas
imagens de um ato de covardia − e não de reivindicação − médicos brancos e
vestidos de branco, com brincos e colares e relógios caros, que foram até o
local e voltarão aos seus lares e consultórios particulares dirigindo carros
caros, alguns de luxo, mesmo, chamando de escravo médicos negros, que não
pilotam carros de luxo, que não podem usar joias raras, que não trabalham em
consultórios particulares.
O que querem esses médicos furiosos? Não querem "reserva
de mercado", pois não pretendem trabalhar nos rincões abandonados pelo
governo e por eles mesmos; não querem apenas que os médicos façam o tal "revalida",
pois se a questão fosse apenas referente à prova, não iriam xingar colegas de
profissão − ou os "doutores" brasileiros, a maior parte deles sem
doutorado algum, pensam ser superiores aos médicos cubanos, argentinos,
portugueses e espanhóis?
Aqueles médico pensam fazer parte de um seleto grupo
meritocrático e que por isso estão acima de qualquer tipo de comparação,
desafio e não acreditam que devam prestar algum serviço à população; a
população, nesse caso especialmente a doente e desamparada, existe para que eles
possam exercer a profissão, ou seja: os doentes devem servir ao médico, e não o
contrário. Eles querem escolher os doentes e não querem que os não escolhios
sejam tratados por mais ninguém.
A mentalidade desses médicos enfurecidos me lembra não
apenas o vídeo que circula pela internet com a professora − e doutora de fato −
Marilena Chauí criticando a classe média. A julgar pelas respostas furiosas
tanto de membros da classe média quanto dos proletários que gostam de pensar em
si mesmos como membros de uma elite pensante e econômica brasileira, penso que
ela acertou na mosca. Também não posso deixar de contar um pequeno episódio
ocorrido com um colega de trabalho meu, em uma famosa quermesse da Bela Vista.
Em uma fila para comprar, sei lá, uma quermesse, tendo seu caminho obstruído
por um senhor de meia idade, vestido elegantemente, solicitou várias vezes
passagem, sendo todas as vezes ignorado. Já irritado, tomou a frente do
distinto cavalheiro, e foi xingado de todos os nomes, inclusive de
"malvestido". Uma garotinha macérrima e vestida com espalhafato que
acompanhava o velho cavalheiro, disse a frase perfeita para a situação:
− Você sabe com quem está falando? Sabe quem ele é? Ele trabalha
na melhor empresa da cidade de São Paulo!
Sem querer generalizar, claro, mas tomando os baderneiros de
jaleco que ofenderam seus colegas cubanos, o cavalheiro de nariz empinado e sua
coleguinha deslumbrada como referencial, penso que Marilena Chauí só disse o
óbvio. E continuo temendo pelas pessoas que, como eu, dependem da saúde pública
para se cuidar…
Alguns meses atrás, exumaram o cadáver da polêmica entre
Paulo Coelho ea crítica literária.
Entre frases desagradáveis e textos "acadêmicos", como um que saiu na
Folha, do sociólogo Fernando Antonio Pinheiro, nada de novo no Caminho de
Santiago.
Toda essa balbúrdia literária chegaria a um fim se cada um
ficasse em seu lugar. Muita gente esperneia a falta de reconhecimento do
talento literário de Paulo Coelho ao mesmo tempo em que empinam seus narizes e
afirmam quea crítica não serve pra
nada, é burra, preconceituosa, elitista, redundante e que o mago não precisa
dela pra nada. Ora, eu não me preocupo com o reconhecimento de quem não admiro,
não respeito e cujo trabalho não me parece sequer útil. De todas essas
afirmações que soam democráticas, libertárias e modernas, a única que me faz
sentido, que é realmente verdadeira: Paulo Coelho não precisa, nunca precisou
da crítica. Justamente por não precisar dela, por vender muitobem sem apoio cultural ou resenhas simpáticas,
não faz sentido que as pessoas se incomodem com a torcida de narizes que os
acadêmicos dão. Cada um seu canto, cada coisa em seu lugar. Aliás, Raquel Cozer
já divulgou em seu blog texto baseado em pesquisa que afirma: resenhas e
matérias nas páginas culturais de revistas e jornais ajudam muito pouco a
vender livros.
Não sei se algum crítico sobre a crítica que ignora Paulo
Coelho já procurou saber por que o bruxo não faz o mesmo sucesso na academia
(não digo na ABL) que faz nos saguões de aeroportos, na internet, nas
livrarias, no Irã. Chamar um grupo inteiro de profissionais, intelectuais,
estudiosos da literatura, grupo bem heterogêneo que, apesar de relativamente
pequeno, abarca diversas linhas de pesquisa e posições ideológicas, de
preconceituoso, burro e elitista, pra mim, é uma postura preconceituosa, burra
e "popularista". Há algumas razões para Paulo Coelho não fazer
repercutir seu estrondoso sucesso nas salas de aula, nos gabinetes. Procurem
saber!
Digo aqui uma que percebo de longe e de há muito: os livros
de Paulo Coelho "problematizam pouco". O que quero dizer com isso?
Que eles, em sua simplicidade, singeleza, em suas parábolas diretas, em suas
comparações explícitas, em seu enredo de fácil assimilação, em suas lições de
alcance universal, não oferece muito espaço para explorações, análises, interpretações.
Estou certo de que esses recursos são intencionais e que o autor busca com eles
alcançar um grande número de leitores, muitos deles pouco afeitos com outros
tipos de literatura. Não há pecado algum nisso, e se o cara não fosse bom no
que faz, não teria o sucesso que alcançou. Agora, esperar que estudiosos da
literatura tenham obrigação de reconhecer o talento "indiscutível" de
Paulo Coelho é demais. Há entre professores de literatura e críticos quem
discorde sobre o talento e a genialidade de Machado de Assis, de Guimarães
Rosa, José de Alencar, Drummond, Oswald de Andrade, Rubem Fonseca, Dalton
Trevisan, Paulo Leminski, Lima Barreto, Ferreira Gullar, Luis Fernando
Veríssimo, Manuel Antônio de Almeida, Clarice Lispector, Murilo Mendes, Lygia
Fagundes Telles, isso para ficar apenas entre os brasileiros. Por que Paulo
Coelho deveria ser alçado automaticamente do sucesso na livraria para o sucesso
acadêmico?
Aí o defensor de Paulo Coelho dirá, com razão, que todos os
autores citados acima − eu gosto de alguns, desgosto de outros − têm seus
defensores e detratores, enquanto Paulo Coelho só tem detratores. Que estranha
unanimidade seria essa que irmana toda a crítica brasileira − a ignorância no
assunto me faz desconhecer se a unanimidade entre os críticos é universal − contra
o autor de O alquimista? Não creio na
unanimidade sobre Paulo Coelho: é possível que haja professores universitários
dos cursos de Letras que sejam admiradores de Brida ou do Diário de um mago.
Nem por isso, até agora, houve um grande movimento no sentido de analisar sua
obra, pelas razões que já dei acima. Enquanto Machado de Assis produz frases
famosas, como "Marcela amou-me durantequinze meses e onze contos de réis",
para citar uma fala célebre, criativa, irônica, famosa, entre tantas outras que
poderíamos usar, Paulo Coelho escreve "Quando você realmente deseja uma
coisa, todo universo conspira ao seu favor", que, cá pra nós, não é nenhum
exemplo de frase lapidada e sequer deve ser levada a sério fora dos círculos da
teologia da prosperidade ou das editorias de autoajuda.
Um outro motivo para não vermos uma fortuna crítica de peso
sobre Paulo Coelho é que ele não tem uma obra literária de vulto (pronto, falei). Seus livros
são quase sempre histórias para "aquecer o coração do leitor", pano
de fundo para que frases de efeito e fórmulas de autoajuda ganhem algum
destaque. Olha só: "Não tenha medo do sofrimento, pois nenhum coração
jamais sofreu quando foi em busca dos seus sonhos". Não tem muito cabimento dizer que Paulo Coelho faz uso do senso comum de forma "consciente" para justamente "criticar" o senso comum, enquanto conquista um número de maior de leitores e espalha sua mensagem de paz e fraternidade entre os mansos da terra.
Confesso que as frases foram colhidas na internet e que
podem muito bem ser apócrifas. Mas vai me dizer que isso faz mesmo alguma
diferença? Quem é fã de Paulo Coelho não é porque vê em seus livro alguma
semelhança com Shakespeare, Thomas Mann ou Borges: são fãs por causa
dos livros que o próprio Paulo Coelho escreveu. E nem cola aquele papo batido
de que o cara começa lendo livros do bruxo pra depois ler Dostoiévski: Paulo
Coelho amortece o sofrimento com doses de ilusão, o gênio russo nos choca com a
miséria da condição humana. Cada um escolhe suas armas para suportar a
existência humana, uns repetindo mantras fofinhos, outros tomando consciência da
dor universal, para depois lidar com ela. Uns gostam, precisam da surpresa escondida
na arte (ler Adorno), outros querem apenas relaxar com a previsibilidade. Cada universo,
suas regras, seus antagonistas.
Nem todo sincretismo é legal. Então, aos coelhistas, peço
que não cacem chifres em ovo, tampouco cabelo em testa de cavalo: ou não
existem, ou os há em tamanha quantidade que denunciá-lo é a mais infrutífera
das decisões.
Não escrevi antes sobre este assunto por três motivos: falta
de tempo, não assisti ao jogo com a devia atenção, não queria, no calor do
momento, insultar ninguém; quando somos torcedores, temos uma espécie de
licença para sermos irracionais, deixamos a paixão nos levar, seja nos louros
da vitória, seja na fúria por derrotas humilhantes; tento abrir mão dessa
licença.
Torcedor também não costuma ser grato nas derrotas,
especialmente as sem muito sentido, as decorrentes de flagrante e notória
incompetência. Todos os créditos se perdem quando jogadores, técnicos e
dirigentes pisam feio na bola ao não enxergarem o óbvio.
Tento ser grato à atual diretoria do Santos. Entre 2010 e
2012 tivemos grandes alegrias, intercaladas por alguma preguiça, fruto da
sensação de dever cumprido para o ano. Esse deitar-se esplendidamente sobre as conquistas
do primeiro semestre nos impediu de concorrer a títulos importantes no segundo
semestre; faz tempo que não disputamos com seriedade o campeonato brasileiro,
embora tenhamos três títulos estaduais − cada vez menos prestigiados, embora
não seja justo simplesmente desprezá-los − uma Copa do Brasil, uma Libertadores
e mais aquela mais ou menos Recopa Sul-americana. Não foi pouco.
Em compensação, por razões que ainda não estão exatamente
esclarecidas, fomos protagonistas de um vexame em escala internacional, ao não
vermos a cor da bola na disputa pelo mundial de clubes de 2011. Os jogadores
que lá estiveram defendendo o distintivo do mais nobre dos clubes brasileiros
(fala de torcedor, mas de torcedor consciente!) não agiram como se estivessem defendendo não apenas o próprio
prestígio profissional, mas a honra de um clube conhecido internacionalmente. Montados
sobre uma fama construída em campeonatos nem tão disputados assim,
desmontaram-se diante do adversário em uma atitude esquizofrênica, entre o
deslumbramento e a admiração idólatra pelo adversário.
Não gosto de ser ingrato, coisa que nós torcedores sabemos
fazer tão bem. Mas ao longo desse ano, a mesma diretoria que soube segurar e
contratar jogadores competentes ou craques da estatura de Neymar, fez péssimos
negócios, desprestigiou um técnico indiscutivelmente vencedor − mas que já não
estava a fim de muita coisa, reconheçamos − perderam jogadores competentes,
grana e títulos. Confiando na mística de que o glorioso alvinegro praiano já
contava com pelo menos três gerações de meninos da Vila, a chamada Vila Famosa,
digo a Vila mais famosa do mundo,
marcaram, para lucrar alguma coisa, um amistoso entre um time feito de
improviso, com garotos ainda inexperientes, contra o time mais respeitado e
temido da Terra, time este reforçado com um craque da estatura de Neymar, motivado
e feliz pela sua estreia.
Dessa vez, livres da ilusão coletiva que nos acometeu em
2011, nenhum torcedor do Santos era capaz de acreditar em uma vitória, em um
empate sem gols que fosse. Os mais otimistas, como eu, imaginavam que haveria
um jogo de compadres, cujo resultado ficasse em torno de 3 gols de diferença, e
isso contando com a nobreza do adversário. Os mais pessimistas pensavam em
cinco, seis gols. Levamos oito sem ver a cor da bola.
Não sou um estudioso do futebol, entendo pouco ou nada de
tática, gosto de ver jogadas bonitas, sei diferenciar um volante de um zagueiro
e torço de coração pelo Santos e pelo Brasil, em primeiro lugar, mas raramente
assisto a alguma disputa, de qualquer esporte que seja, sem tomar partido. Até eu,
torcedor leigo que sou, sabia que um jogo entre o time que mais acumulou
títulos nos últimos anos e outro cuja maior parte dos jogadores e a comissão
técnica sequer goza de experiência regional − técnico e boa parte dos jogadores
ainda não disputou partidas contra Corinthians e Palmeiras, por exemplo − não poderia
dar em coisa boa para nós. Quanto dinheiro poderia pagar a humilhação, o
vexame, as piadas feitas até pela seleção do Taiti, que sequer é formada por
profissionais?
Laor e demais dirigentes do Santos, continuo grato pelas
vitórias do passado recente. Mas gostaria de crer que absurdos como estes não
se repetirão mais. Gostaria de crer que vocês não confirmarão a tradição
histórica de que o tempo de validade dos cartolas brasileiros é extremamente
curto, que o competente de hoje é o burro de amanhã, que o moderado e honesto
de agora será guloso e corrupto depois. Não endossaria a opinião de que esta equipe
deve sair imediatamente da diretoria do Santos, mesmo porque minha opinião de
distante torcedor não vale pra muita coisa, mas tenho duvido que o coração de
vocês esteja sangrando mais que o meu.
Dominguinhos manejava a sanfona de um jeito tão tocante que
doía na gente, tamanha a beleza de suas composições, de suas interpretações. Por
isso estamos tão tristes.
Parte de uma tradição da música brasileira que vem sendo aos
pouquinhos dilacerada e esquecida, aquela cujos artistas têm o que dizer, com
seu jeito bonachão, Dominguinhos construiu, sem um pingo de afetação, sem o
pedantismo que infecta quase todos os "pensantes" brasileiros, uma
obra popular elevadíssima.
Único herdeiro musical de Luiz Gonzaga, mas sem nunca querer
ocupar o lugar de rei ou príncipe do baião, sempre generoso com os artistas que
o sucederam, sem discriminar sequer os embusteiros do chamado forró
universitário, aquele forró sem raiz nem seiva, Dominguinhos contribuiu para o cancioneiro
nacional com algumas das canções mais tocantes que eu conheço, dessas que ao
ouvir, o cabra pode até ser valente, mas chora.
Onde ele buscava aquelas notas, como aprendeu a combiná-las
em acordes, melodias, arranjos tão especiais? Acho que é da própria terra onde
ele nasceu. Sim, porque o Nordeste não dá ao mundo apenas coronéis, políticos
corruptos e homens endurecidos pela seca e pela violência que recebem de
patrões e do governo: também gera filhos de sensibilidade e humor refinadíssimos.
Tenho muitos parentes que, sem ter o talento de Dominguinhos, que esse é único,
são tão bonachões e bem-humorados quanto o eterno Neném, apelido de família e
como Dominguinhos era chamado por Luiz Gonzaga. Acho que também vem de sua
criação e história pessoal o dom de falar da saudade com tanta poesia, seja no
timbre da voz, seja no resfolego da sanfona.
No fim da vida, Dominguinhos sofreu muito, por causa de uma
doença cruel − a prova de que a morte não respeita os homens bons. Muitas foram
as orações, as promessas e súplicas para que ele se recuperasse − prova de que
nem sempre conseguimos concordar com Deus.
Pra completar a tristeza, hoje o frio está mórbido em São
Paulo. E não há fogueira de São João que possa nos aquecer ou consolar. O que
nos resta, sem consolar, é lamentar. Dominguinhos: é duro ficar sem você.
Há momentos na vida em que o futebol é a coisa menos
importante do mundo, como, por exemplo, a quase totalidade da vida, tirando os
momentos em que o futebol é importante.
2013, por exemplo, não é um ano para ficarmos muito atentos
ao futebol, eu pensava enquanto meu time, o Glorioso Alvinegro Praiano, passava
pelas partidas sem empolgar nem ao mais doente santista. E depois, o Neymar foi
embora, não chegou ninguém capaz de nos animar.
Mas havia a seleção e uma Copa das Confederações em casa! Boa
bobagem esse negócio de Copa das Confederações. Um evento que serve apenas como
teste para sabermos se os estádios estão em condições de receber essa gente
endinheirada. E a seleção, tão fraquinha
que andava,coitada, com um jogo feio e pouco eficiente. E tem mais: jogar em
casa, no caso do Brasil, significa ter obrigação de jogar bem, sob pena de
receber um temporal de vaias antes da metade do primeiro tempo! Nosso apoio à
seleção sempre foi condicionado a grandes apresentações, a apresentações
esforçadas, pelo menos, com muita raça onde faltar talento.
Aí os jogos começaram. Houve boas partidas, más partidas, um
time amador, o do Taiti, muito simpático e pouco habilidoso. Havia, nos jogos
do Brasil, o adorado e vaiado Neymar. E havia críticas a esse e aquele jogador,
esquema, postura. Tudo meio como sempre, meio sem valer a pena.
Mas, além dos jogos, dos gols, das falhas, havia uma
multidão nas ruas. E essa multidão não estava tão interessada em Neymar, gols
copas: a multidão clamava por um novo país, por uma nova mentalidade, uma nova
postura. Aí é que o futebol perdeu muita importância, mesmo!
O preço das tarifas de ônibus, a corrupção endêmica, os
superfaturamentos das obras para a Copa, o povo do lado de fora da festa,
convidado para ficar nas ruas, para ver de longe uma festa para outros povos,
tudo isso mexeu com os brios da população muito mais do que o medo dos passes
calibrados dos espanhóis, a marcação competente dos italianos, a catimba fria
dos uruguaios. O povo foi às ruas exigir honestidade, justiça, respeito, coisas
que nem sempre acontecem no futebol, seja pelo imponderável tão presente nos
gramados, seja pela fome desmedida de dinheiro, poder e holofotes dos cartolas.
O futebol que esperasse.
Mas então, eis que chegamos à final! Ao lado dos espanhóis. E
os espanhóis eram os francos favoritos, os donos do futebol mais moderno, da
eficiência tática, da hegemonia do momento.
Poucos minutos antes da partida, o Binho, amigo de décadas e
fanático por futebol perguntou se eu via alguma chance para a seleção
brasileira. Disse que a única chance seria comprarmos o jogo. Eu, sabidão,
repetia apenas o que o bom-senso já vem dizendo desde pelo menos um ano, quando
os espanhóis humilharam a Itália na final da Eurocopa com um inquestionável 4 x
0. E outra: a Espanha não faz duas partidas ruins seguidas, e como já havia
saído de uma disputa de pênaltis contra a Itália, nossas chances simplesmente
não existiam.
Aí tivemos a partida. Arrepios e lágrimas durante a execução
do hino nacional brasileiro. Bombas de efeito moral e gás de pimenta do lado de
fora do estádio. Diante da televisão, muitos brasileiros deram as mãos ao mesmo
tempo aos jogadores e aos manifestantes que estavam ao redor do estádio pedindo
um país mais honesto − a honestidade já bastaria para começarmos a construir
uma nação diferente.
Uma dose de sorte,
uma pequena lambança na área espanhola. Coquetel molotov e caveirão ao redor do
Maracanã. Um gol esquisito de Fred. Aí,
Deus seja misericordioso, largamos involuntariamente as mãos dos manifestantes
para abraçarmos a seleção brasileira, em noite e gala, glória e gols nos
Maracanã.
Os espanhóis atônitos assistiram à exibição de gala dos
canarinhos-feras de Felipão. E, como nós desejamos que aconteça com o Brasil,
assim foi com a seleção: os criticados, injustiçados, indesejados, se
redimiram, foram regenerados e voltaram a ter seu valor reconhecido. O criticado
Oscar deu passe certeiro. O craque Neymar fez gol furioso em cima da falsa
fúria − esses espanhóis, ganhando ou perdendo, estão mais para algum animal
polar. O ainda mais criticado Hulk participou de dois gols. O injustiçado David
Luiz fez a maior jogada que um zagueiro pode fazer em sua carreira. Fred fez o
que sabe fazer. E o Brasil quase todo iluminou-se, houve uma enxurrada gloriosa
de alegria, dessas que lavam alma e nos atordoam.
O jogo acabou, nossa
alegria permaneceu. Analistas avisam enervados que Copa das Confederações é uma
coisa, Copa do Mundo é outra. Eles têm razão. Mas antes de nos preocuparmos com
a Copa jogada em campo, vamos nos ater aos orçamentos dos estádios, ao dinheiro
público que, emprestado ou não, está servindo a interesses meramente privados. Vamos
nos lembrar dos que protestaram do lado de fora, protestemos com eles, que a
hora é essa. Deixemos essa noite "3G" emoldurada na parede da
memória, voltemos a ela sempre que precisarmos elevar nossa autoestima. Mas voltemos
a exigir um país novo, pois o momento de colocarmos o futebol em primeiro lugar
foi delicioso, mas já passou.
O povo não gosta de greves. Também não gosta de protestos. Quando
eu era adolescente, achava romântico um ato público em defesa de qualquer
coisa: direitos humanos, honestidade na política, educação de qualidade. Quando
via um grupo de trabalhadores em greve, qualquer grupo, respeitava aquelas
pessoas sobre caminhões ou empunhando bandeiras como se fossem heróis. Hoje,
boa parte das pessoas, quando vê alguém reivindicando qualquer coisa, logo o
etiqueta com o título de vândalo, baderneiro, vagabundo.
Quando eu era adolescente já havia muita gente que via
manifestantes e grevistas em geral como vândalos e baderneiros. Aprenderam com
os anos de ditadura militar, com a Rota na rua, que espancava qualquer pessoa
que, ao ser parada na rua, não estivesse portando sua carteira de trabalho em
dia. Estar desempregado, por exemplo, era um quase crime. Valorizava-se muito
mais um adolescente que trabalhasse do que um que estudasse; estudar para o
povão da periferia deveria ser algo secundário, para os horários noturnos,
depois de passar o dia inteiro ralando em algum emprego insalubre por algum
salário ridículo. Trabalhando de dia e trabalhando de noite, ou trancado em
casa, não haveria tempo ou energia para protestar.
Ainda há, e cada vez mais, quem concorde com essa visão de
mundo. Quem trabalha e estuda não tem tempo de protestar, logo, quem protesta é
desocupado e quem é ou está desocupado é um quase criminoso. A quem se sentir
injustiçado, manipulado, humilhado, sempre haverá o direito ao lamento. Amélia achava
bonito não ter o que comer, por isso, e pela sua falta de vaidade, era exaltada
como "a mulher de verdade". O trabalhador que, a despeito de
problemas de saúde, de salário ou condições mínimas de exercer sua função é
elogiado como "profissional". Ignora-se que "profissional",
geralmente, cobra pelos serviços prestados.
Contra as injustiças, o silêncio imposto, o preconceito
medroso da sociedade, é preciso protestar. Contra os baixos salários, as
péssimas condições de trabalho, os preços abusivos de serviços essenciais para
a população, a depredação da saúde, da educação, da cultura e de tudo que
coopera para a nossa humanização, é preciso protestar. Mas estão fazendo isso
direito?
Eu penso que não. A população, que deveria se interessar
pelas manifestações contra o aumento das tarifas do transporte público, pelas
péssimas condições de trabalho, pelos problemas de saúde e pelos ridículos
salários que são pagos aos professores, também. A população que sofre nos
hospitais e postos de saúde, precisa reivindicar para que não morra nas filas
das UBS. Mas estamos fazendo o convite do modo adequado?
Há muita manipulação nas manifestações públicas. Muita gente
que inflama e obstrui assembleias com o único propósito de ganhar alguns pontos
na hierarquia do partido a que pertence. Há muita ingenuidade, também. Muitos jovens
cheios de energia e com um genuíno desejo de transformar o mundo, mas que se
deixam levar pelo discurso irreal de alguns "gurus". Gente boa foi
expulsa na USP no episódio da invasão da reitoria porque acreditava que estava
participando de algo revolucionário, enquanto estavam, na verdade, sendo
manipulados por estudantes profissionais, que recebem salário de grupos
políticos para plantarem a "sementinha do socialismo".
É preciso protestar de modo eficiente e não é colocando
"guarani-kaiowá" no facebook que tudo mudará. Nem é preciso convencer
o povo de que algo vai mal, pois o povo sabe que as tarifas de transporte estão
caras, que os professores são desrespeitados, que faltam remédios essenciais
nos postos de saúde. É preciso mostrar ao povo que é possível mudar. É preciso
convencer o povo de que os que os protestantes estão realmente do lado do povo,
que não almejam apenas promover suas carreiras particulares. É preciso ser
criativo na hora de protestar − nariz de palhaço, vestir-se de preto, empunhar
a bandeira nacional ou entregar flores para a tropa de choque viraram clichês;
clichê, senso comum, atuam apenas na superfície, não levam ninguém a refletir,
e o povo precisa refletir para agir de modo consciente.
O maior desafio político do momento é aprender a protestar,
a revindicar de um modo que seja genuíno, útil e convincente. Que coloque o
povo a seu próprio favor. E que coloque o governo a favor do povo que o elegeu.
O voto depositado na urna, ao contrário do que muita gente pensa, não legitima
qualquer coisa que o governo fizer; aquele voto pode significar, muitas vezes,
que os governantes foram escolhidos por exclusão, não por afinidade ideológica.
Da mesma forma, a falta de adesão aos protestos não significa que o povo está
satisfeito com tudo; pode refletir apenas a falta de fé da população e
desconfiança com relação aos "líderes da oposição". Por isso, é
urgente encontrarmos novos caminhos.