quinta-feira, julho 10, 2014

Não doeu


Em 1982, eu tinha seis anos. Lembro de ter ficado muito triste com a derrota − não sei bem se chorei − e de ter saído para o quintal e chutado a vasilha de água do cachorro, no que fui imediatamente repreendido por meu pai, que não teve muito ânimo pra falar muita coisa após aquela partida, e eu também não estava a fim de entender nada, era apenas tristeza, mesmo, uma tristeza de chumbo que parecia sufocar toda a rua, meu mundo à época, e que mais tarde eu saberia que na verdade era uma tristeza de todos os brasileiros, uma tristeza de todos que amam futebol.
Qualquer vídeo, reportagem ou menção àquela seleção me emociona. Sou um homem de muitas lágrimas, mas só porque existe muita beleza e tristeza no mundo; a exemplo do que diz a canção, "não choramos à toa". Em 1986, quando a seleção perdeu, nos pênaltis, para a França, fiquei triste também, mas menos. Havia um tal de Maradona, da Argentina, que estava fazendo por onde levar aquele título. Lembro que na véspera da final uma reportagem exibida na televisão mostrava vários brasileiros que diziam, sem a menor amargura, que torceriam pela seleção alviceleste. E outra, o Brasil andava preocupado com outras coisas, eleições após um longo jejum de democracia, plano cruzado, tínhamos Piquet e Senna já despontava, fora o vôlei, que nossa segunda paixão nacional. A tristeza, além de menor, durava apenas uma noite.
Em 1990, a seleção assumiu ares de quase vexame. A derrota para a Argentina, nas oitavas de final, pelas pernas daquele tal Maradona, não trouxe tristeza, mas raiva. Pela primeira vez fiquei achando que os adversários eram arrogantes e ali nascia, para mim, a rivalidade com os argentinos. Também tive raiva da seleção e de sua comissão técnica, do jogo feio, da briga entre jogadores, CBF e patrocinadores por causa de premiação, e também fiquei com um pouco de raiva do próprio futebol, que se apresentava, naquela Copa realizada na Itália, como uma coisa extremamente chata. E outra: além de Piquet, Senna e do vôlei, eu havia descoberto Oscar, Marcel, Paula e Hortência.
Em 1998, tudo correu bem, a não ser a derrota na final. Ignorei polêmicas e teorias da conspiração. Nem raiva, nem tristeza, apenas um ligeiro mal-estar. Havia Guga, vôlei de praia e Machado de Assis, Graciliano Ramos. Guimarães Rosa, Dalton Trevisan, Manuel Bandeira, todos esses fazendo uma parte essencial da minha vida. Zidane era um artista. Ronaldo era um dos melhores do mundo. Não se pode ganhar sempre.
Em 2006, um caminhão de expectativas que não se consumaram na Copa. Seleção de nariz empinado, craques que não jogavam, panelinhas, tumultos, egoísmo. Pra mim, restou a frustração. Mas do outro lado estava, de novo, mais do que nunca, Zidane. Incomodou, mas até que a seleção mereceu. E eu já conhecia o amor.
Em 2010, parecia que a seleção e sua comissão técnica latiam, rosnavam babando para o próprio país. Reclamavam, tumultuavam, viam fantasmas. Ainda destilavam um rancor plantado lá na Copa de 90 e ainda não totalmente expurgado. Morreram envenenados e não deixaram saudades. A tristeza durou pouco e a Copa, na verdade, foi um pouco chata − não tanto quanto a de 90, é verdade. Aprendi a nadar, me casei, assinei contratos.
Em 2014, queríamos torcer. Tínhamos Neymar e o orgulho ferido por vários motivos extrafutebol. A Copa foi emocionante, alucinante, inesquecível. Diversão garantida a cada jogo. Mordidas, malas de dinheiro, Costa Rica, golaços, goleadas, prorrogações, recordes sendo batidos a cada rodada, a cada partida. A Copa corria divertida, leve e parece que, fora Camarões, talvez a Bósnia, com certeza a Espanha, só o Brasil não se divertia nunca. Carrancudos, hinos cantados aos berros, torcida vaiando os adversários fora de hora, tudo virava produto, tudo ficava automático, quase tudo soava falso.

A tristeza de agora não é equiparável a de qualquer outra copa. Não sentimos a dor de uma apunhalada do destino no coração do futebol arte, como em 1982; não experimentamos o rancor azedo espalhado em 1990; não buscamos nas teorias da conspiração a desculpa esfarrapada para não admitirmos que fomos superados; não estampamos o "benfeito" no canto do lábio celebrando o justo castigo para a seleção pusilânime de 2006; não entramos na pilha revanchista de 2010; agora, a percepção de uma incompetência absurda, o reconhecimento de que estamos muito longe dos grandes centros do futebol mundial, a certeza de que tentaram nos enfiar goela abaixo uma peça publicitária em vez de um time, já nem dói.

sexta-feira, julho 04, 2014

Pátria sem chuteiras


Vamos ser bem sinceros? Caso não jogue uma partida excepcional hoje, contra a Colômbia, esta seleção deixará menos saudades do que a de 90, famigerada ao contrário, só lembrada pelos provocadores argentinos.
Hoje, a disputa começa para o Brasil − e também pode ser que termine. Contra o Chile, vimos um time nervoso, jogando contra si mesmo, intimidado pela presença da própria torcida, com tanto medo de errar que, tirando Hulk, sequer tentava, mesmo, acertar. Se o adversário também não tivesse respeitado em excesso a seleção brasileira, teriam escrito um capítulo da história do futebol chamado de "Mineiraço".
Contra a Colômbia, precisa haver um jogo de futebol, apenas. Neymar estava certo ao dizer que o time precisa jogar como se estivesse brincando com os amigos no quintal de casa. Isso não quer dizer que a seleção deve ser irresponsável do ponto de vista tático, mas que deve jogar leve, se lembrar que não há outras implicações, nada de defender a pátria, nada de ser "brasileiro, com muito orgulho, com muito amor". Futebol, apenas.
A torcida que tem comparecido aos estádios, mal-educada, que trata os adversários como inimigos figadais, que joga sobre a seleção um orgulho e um anseio protofascista de afirmar uma superioridade que, em termos futebolísticos, não pode mais ser revindicada por nenhum país, deve ser ignorada. Esta pensa estar em uma guerra, não se diverte e não apoia o time, pelo contrário: mitificando a seleção como a prova de nossa superioridade, não aceitará nada além da vitória e, como qualquer grupo arrogante e covarde, abandonará os que considerar fracos pelo caminho. A seleção deve jogar para os torcedores que estão fora dos estádios, os que esperam esforço, empenho, vontade, sim, mas sobretudo almejam ver um time que jogue futebol, que busque o gol, que improvise.
Caso queiram entrar para a história de modo positivo, os jogadores deverão, a partir de agora, ir além da garra e fazer partidas convincentes, criar jogadas que entrarão para a história, apresentar algo a mais que cantar o hino como se estivessem saudando algum César no Coliseu.

A Colômbia, nesta Copa, tem jogado melhor, fez mais gols, tem o artilheiro da competição, James Rodriguez, e um jogador habilidoso e incisivo, Cuadrado. O Brasil tem um time que, se decidir jogar, se fizer uma partida muito melhor do que todas as anteriores, pode surpreender. Para tanto, é preciso entrar em campo sem o peso de achar que são a pátria de chuteiras. Há, é claro, uma tradição que precisa ser defendida, mas ela permanecerá para além do resultado do jogo de hoje. Pelé, Garrincha, Ronaldos, Rivaldo, Romário, Zico, Tostão, Falcão, Rivelino, Gerson, Reinaldo não são fantasmas a assombrar a Granja Comary, são vultos históricos, a quem se deve reverência, não o próprio sangue. Se é verdade que os jogadores, hoje, às 17h, estarão  representando um país inteiro, também é verdade que a nossa soberania, nossas vidas, não dependem do resultado contra a Colômbia. É bom que a seleção brasileira saiba que a pátria só usa chuteira nos dias de folga.

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