sábado, maio 18, 2013

Vai, Neymar!


Minha esposa tem um aluno de 5 anos que é santista. De vez em quando o garoto reclama, querendo usar a camisa do time do coração em vez da camiseta com o emblema da prefeitura. Ele deve pensar, não sem razão, que uniforme por uniforme, melhor usar aquele lembra grandes feitos.
Dou completa razão ao santista, já que seu time tem Neymar e "um passado e um presente só de glórias". Já no time da prefeitura paulista há uma galeria de nomes não apenas controversos, mas indesejados, vergonhosos, que não citamos para não espantar a pretensa poesia escondida nessa crônica.
Falava do jovenzinho santista. O mais legal desse apego do garoto ao clube é que ele não herdou o benefício de torcer para o glorioso praiano do pai, que é são-paulino: a causa dessa paixão precoce e comovente é o balé com bola de Neymar. É o que basta para que o ainda jovem jogador tenha seu lugar garantido na história do clube. O aluno da minha esposa é a prova vivíssima de que o craque, ainda santista, já pode partir para novos espetáculos em outros gramados, quite com a torcida e com seu nome gravado no panteão dos craques santista, orgulho que nem todos podem ter.
Vivemos tempos menos românticos. Há muito tempo é raríssimo um jogador de futebol no Brasil ficar em um clube tempo suficiente para formar novos torcedores. Ninguém duvida que Kaká conseguiu mais torcedores para o Milan do que para o São Paulo. Neymar e Ganso, mais Robinho, e talvez até Zé Love, arrancaram das hostes adversárias alguns torcedores que ainda no berço, quase que literalmente, foram tocados pela graça de um futebol exuberante, ao mesmo tempo eficiente e encantador.
Só Neymar permanece no clube, e isso faz com que esses garotos mantenham-se fiéis ao Santos. Mas vivemos outros tempos e, no caso de Neymar, tudo é muito diferente. Se antes uma transferência podia significar um transbordamento de rancores em todas as direções − foi assim com Ganso há menos de um ano − com Neymar, creio que, tirando a parcela dos santistas jovens demais para entenderem esse complexo e chato lado business do futebol, todos aguardamos, com certa ansiedade, o momento em que Neymar dirá adeus, ou até logo, ao mítico clube da Vila.
Pensamos no futuro do jogador, que para firmar-se como craque intergaláctico precisa exibir-se em gramados europeus. Pensamos nos cofres do clube, que podem ficar recheados com a venda do atacante − o que nem sempre, quase nunca, é sinônimo de continuarmos com times fortes. Pensamos, melancólicos, que o momento do clube não é divino, como foi três, dois anos atrás, e que estar em um time tão limitado como é o Santos de agora só empobrecerá o talento de um gênio como Neymar, que não merece ficar engaiolado entre colegas até esforçados, mas sabe como é. Pensamos que os ciclos de quase tudo na vida, exceto dos mandatos dos cartolas, são cada vez mais curtos. E, resignados, aguardamos o surgimento de outros craques, coisa que os novos santistas logo descobrirão que em seu time isso acontece com mais frequência do que nos times adversários.
Somos gratos, Neymar. A Libertadores foi ótima, a Copa do Brasil emocionante, os três, quiçá quatro estaduais deram um up grade significativo. Voltamos a ser notícia boa. Aparecemos no mundo inteiro. Passamos ligeira vergonha no Japão, a parte triste presente em todas as trajetórias de grandes heróis. Mas o nosso maior tesouro, o que ficará pelo menos por mais uma geração, é a manutenção da torcida do clube, nosso maior patrimônio. Por continuar fazendo história, podemos sonhar com o futuro.

quarta-feira, maio 15, 2013

Escola sem máscaras



Quando a manhã chama, pego a bicicleta e vou caçar assunto pelo bairro. Caçar é o termo adequado, assunto também: enquanto pedalo, tento observar tudo que vai acontecendo, quase tudo bem banal, e de cada banalidade é possível colher algum sentimento, de rancor à ternura, de nojo à saudade. Sobre tudo é possível escrever.
Quando não saio de bicicleta, vou acompanhado da Nina, que sempre leva uma alegria desproporcional para um simples passeio pelo bairro. É bom, pois acabo me alegrando um pouco também.
Entre pedaladas e caminhadas, é comum encontrar meus alunos do noturno pelas ruas. Um indo para o trabalho, a outra voltando da padaria, quase todos visivelmente ocupados, outros apenas matando o tempo enquanto não encontram o que fazer. Sempre é interessante encontrar alunos fora da escola, sem as máscaras que um ambiente muitas vezes hostil lhe força a usar.
Claro que há os que carregam o rosto rude ou despreocupadamente sorridente também pelas ruas, às vezes por não conseguirem se desfazer do disfarce, outras por serem o que são em qualquer lugar. A menina muito vaidosa se maqueia durante as aulas para não fazer feio no intervalo, e não se descuida nem quando vai sorrateiramente à quitanda. O cara carrancudo, pelo rock ou pelo crime, não relaxa nem enquanto come um churros na esquina da avenida principal.
Mas há entre os meus alunos os que conseguem relaxar e ser apenas alguém distraído indo à farmácia, ajudando um vizinho, servindo mesas. Há os que, aglomerados nas plataformas das estações de trem, ou transidos de sono e frio nos pontos de ônibus, apenas bocejam enquanto sonham com um amor, um gol, um futuro. Há os que, nesses momentos, não conseguem esconder sob a máscara da calculada indisciplina o travo azedo por causa dos dilaceramentos familiares, dos namoros rompidos, das drogas escravocratas, das prestações atrasadas, dos adiamentos dos pequenos ou grandes sonhos de consumo.
Nas ruas, enquanto andam, correm, se arrastam, os alunos, sem os abadás impostos pela escola, se tornam parte do mesmo rebanho de esquecidas engrenagens que movem boa parte dessa cidade enferrujada pelo trânsito e pela falta de tudo que é essencial, do transporte ao comprimido, do livro aos espaços de lazer, do beijo ao riso não fingido.
Acredito que eles também devem olhar para mim com a mesma sensação de deslocamento que permita ver mais que uma personagem. Na bicicleta ou correndo atrás da Nina, eu também estou despido de minha armadura de professor e sou apenas um tiozinho de cabelos grisalhos (precoces!), lutando contra a barriga, que começa a se impor, sobre uma bicicleta ou levando a cachorrinha serelepe para passear. Nas ruas, não sou o cara que precisa saber, dominar, impor respeito, dar broncas, entreter e educar: sou um cara tímido vai passando logo ali.
Se a escola nos permitisse ser o que somos de fato, se não exigisse de nós atuações − que nem sempre são convincentes − de talento, obediência, "autoridade" ou deboche, se pudéssemos ser algo mais próximo de vizinhos e mais distante de atores canastrões, menos pessoas veriam a escola como uma masmorra onde cada grupo (professores, funcionários diversos, alunos) é o carrasco dos demais. Sem máscaras ou personagens, podemos nos reconhecer uns nos outros, nos tolerar, nos irmanar. O contrário disso é uma luta inútil por um poder que no fundo nenhum de nós dentro da escola tem de fato.
Em uma escola de cara limpa, aprende-se a não ter vergonha do que se é e a se perceber parte de um grupo bem maior do que o de amiguinhos de classe. Essas lições são fundamentais para suportarmos a travessia por ruas e corredores vida afora.

segunda-feira, maio 06, 2013

Alckmin e APEOESP: parceiros da antidemocracia



Você certamente sabe que os professores da rede estadual de São Paulo estão em greve. Também sabe que a adesão é pequena, apesar de quase a totalidade do magistério dessa rede estar insatisfeita com seus salários e condições de trabalho. Você sabe que os salários dos professores da rede pública são ridículos e que aquela conversa de que um professor pode chegar a receber algo em torno de R$10 mil reais por mês é uma mentira deslavada. Agora vamos falar do que você não sabe?
Um professor da rede pública estadual contratado, da chamada categoria "O", tem uma série de restrições que passam perto do trabalho semiescravo. Ele não pode, por exemplo, tirar duas licenças médicas por ano na mesma especialidade. Digamos que um professor tenha uma tuberculose − meu irmão, professor de história, está com tuberculose − se recupere e, digamos, seis meses depois tnha uma recaída, algo bem possível de acontecer: demitido, sem receber um centavo de multa recisória.
Este professor "O", que não é funcionário público efetivo, mas uma espécie de terceirizado, não tm direito a fundo de garantia ou salário desemprego. Jamais. O Estado sonha com o dia em que terá um contingente de professores suficiente para que eles se revezem em dois turno, cada um trabalhando durante um ano e ficando outro ano impedido de trabalhar e, consequentemente, de receber salário. Este governo tucano já tentou fazer isso outras vezes e só recuou porque não havua professores suficientes para empreender essa atrocidade educacional e trabalhista.
Você deve estar pensando que se fosse obrigado a se sujeita a essas e outras práticas hediondas do governo, não hesitaria em fzer greve. Mas, meu amigo, se o cara não pode sequer adoecer, o que você acha que o governo fará com um professor "O" que fizer greve? Demissão sumária e consequente proibição de exercer a função na rede até o fina do ano letivo −ou por um período equivalente ao da vigência completa do contrato, cerca de 200 dias. Na verdade, essas regras mudam de vez em quando, mas sempre gravitam em torno do absurdo. Daí que o professor "O", com medo de perder seu subemprego, acaba evitando a greve.
Um outro lado podre dessa história é a atuação do sindicato, especificamente a APEOESP. Para ter uma ideia do modo de ação desse grupo, em 2010, por razões exclusivamente político-partidárias, a APEOESP propôs uma greve que, caso desse certo, deixaria desempregados uma série de professores que estavam na sala de aula. A coisa é mais complexa do que estou relatando agora e adorarei explicá-la com mais clareza em outra oportunidade, mas o fato é que milhares de professores, sobretudo novos na rede, boa parte deles ainda não formados mas nem todos, foram convocdos para uma greve que estava contra eles.
É verdade que essa situação surreal faz parte de uma armadilha estruturada pelo governo, Serra e Alckmin revezando-se no terror, mas a APEOESP não é formad por um bando de professores ingênuos. E foi assim que ela recebeu uma leva de novos e novíssimos professores na rede estadual: pedindo-lhes que reivindicassem a própria demissão.
Em 2012, o governo, dando uma banana para uma nova lei que prevê um terço da jornada de trabalho do professor em atividades sem alunos, com planejamento, correção de atividades e estudos, deixou tudo como estava. A APEOESP convocou uma greve quando já não era possível resolver o problema por uma questão de logística e, mais uma vez, caso os professores lutassem pela mudança fora de prazo, muitos seriam prejudicados, por acumularem cargos em otras escolas, por exemplo. Daquela vez, a ta lgreve não pasou de um jogo de cena que sequer foi encenado.
Em 2011, o governo ofereceu um aumento aos professores que, na prática, após cerca de três anos, resultaria em um aumento real de algo em torno de R$ 200,00, isso para os professores de jornada completa. A APEOESP considerou o aumento bom e sequer tentou negociar algo melhor.
Agora, em 2013, quando o governo estava simplesmente cumprindo o que havia acordado, um acordo-chibatada nas costas dos professores, mas devidamente aprovado pela APEOESP, esta mesma associação "descobriu" que o aumento era insuficiente e resolveu pedir mais. Também resolveram cobrar do governo que cumprisse a lei da jornada com um terço sem os alunos. Detalhe relevante: a greve está desde janeiro marcada para abril, quando não é mais possível rever a questõ da jornada. Por que a APEOESP não organizaou essa greve para o começo do ano letivo? A resposta é óbvia: porque não estava interessada de verdade em rever esta questão. No começo do ano letivo de 2012, quando este assunto fervia, a APEOESP deu uma de desentndida e foi passear.
Agora temos essa greve sai não sai, com pouca adesão dos professores, apesar de insatisfeitos. Alguns motivos da baixa participação: descrença tanto no governo quanto no sindicato, medo de perder o emprego, não quere compactuar com o sindicato, especialmente com sua atual presidenta, chamada carinhosamente de "Bebel" por amigos e desafetos. Esses que não participam, por qualquer razão que seja, são chamados pelos mais engajados de pelegos, acomodados, tucanos, direitistas.
Aí apareceu um cartaz de uma professora que estava na manifestação. O texto do cartaz tinha erros de concordância e de pontuação. No meio de uma manifestação é comum os textos serem escritos na correria e não passarem por revisão. Mas depois do calor do momento, divulgar a foto com o cartaz daquele jeito é um erro no mínimo estratégico. Dirão, e sempre dizem, quando convém, que os professores não sabem sequer escrever e ainda saem para fazer greve. Comentei em uma rede social que aquele cartaz deveria ser corrigido. Três professoras "engjadas" falaram em "várias linguagens", em não haver erro, em contexto explícito, em USP de direita e contra as cotas, além de formar maus profissionais, falaram que eu era massa de manora do governo, reacionário, que eu "também era burro" por escrever sempre com letra minúscula nas redes sociais, que eu era contra as cotas, de direita e péssimo profissional, que o professor em geral. Deduziram o diabo a meu respeito. Não importaram minhas retiradas afirmações de que a greve era legítima: virei o representante do mal porque ousei comentar o erro de escrita de uma colega.
É o típico ativismo cego. Só é bom quem concorda com tudo que pistoleiros ideológios com os dirigentes da APEOESP dizem e fazem. Quem é a favor da greve precisa concordar com tudo e não questionar nada. Manifestantes assim, que vão dar mau exemplo nas ruas, entrar em confronto, parar o trânsito e colocar a opinião pública contra os professores, incapzes de pensar em alternativas aos piquetes clássicos, servem muito mais à corja tucana do que à própria classe. E estão escrevendo cada vez pior, usando sempre a incompreendida ideia de que "não existe certo e errado" quando escrevemos.
Para a APEOESP, como para Alckmin, o debate é um estorvo. Para seus súditos, a reflexão é um pecado mortal.

sexta-feira, maio 03, 2013

Itamar Assumpção: o genial genioso



Vendo o documentário Daquele Instante em Diante, de vez em quando um pedaço de alguma letra do Itamar Assumpção me rasgava a alma a golpes de chibata benta, com ardores de salmoura doce. Nossa música popular produz lixo, produz populachos de massa, produz gênios de elegância suprema e acima de todos semeou Itamar Assumpção, estrela ascendente, divinal terrestre, moleque saci que deslizou sobre o Tietê, sempre na contracorrente.
Gênio difícil, esse Itamar. Sua arte, embora deliciosa, não era de fácil digestão. Claro que valia qualquer esforço, qualquer empenho para desfrutarmos daquele talento sem par; mas também é preciso dizer que nem tudo eram dificuldades e pensamentos profundos; quanta singeleza, quanta brincadeira, quanta brisa as canções do Nego Dito escondiam, escancaravam, brutalmente lapidadas.
Gênio difícil, o desse Itamar. O documentário nos mostra um homem ciente da grandeza de seu talento, indignado com a obscuridade que lhe impuseram, com o silêncio e a distância de seus pares da música brasileira, que o conheciam, claro, mas não lhe estendiam a mão. Zélia Duncan e Cássia Eller foram as exceções que honraram Itamar, gravando o artista, Zélia ainda mais próxima do compositor, amiga sincera que lançou há pouco um disco apenas com canções dele, o Daquele Instante em Diante.
O silêncio, a distância, me parece não terem arrefecido a potência criativa de Itamar. Mas ele não suportava franciscanamente ser ignorado, antes sofria o desprezo que lhe dedicavam. Segundo algumas pessoas próximas a ele, não ver a carreira decolar como deveria foi o deixando doente, lhe fazendo mal. Assistindo ao filme, fiquei com a impressão de que Itamar Assumpção era rancoroso. Como não o conheci pessoalmente, sei que a impressão pode não ter pé algum na realidade. Como costumo ficar hipnotizado pelas suas canções, afirmo que um homem com a explosão de criatividade e a límpida consciência de seu potencial tem todo o direito de bradar, de reclamar, de angustiar-se com o tratamento que a mídia e os artistas, o que é ainda mais triste, lhe dedicaram.
Itamar Assumpção é um dos maiores compositores da história do Brasil. Sem entrar na lenga-lenga sobre sertanejo universitário, pagode trelelê vocaloide e outros arrotos que contaminam o "solo sagrado da música brasileira" − a sacralidade da arte vira bibelô quando se leva a sério demais − causa certa revolta contida o fato de que quase todos os medalhões da MPB não reverenciem o genial e genioso Itamar. Se havia entre suas canções iguarias de difícil digestão, também sobravam bom humor e aperitivos de fácil degustação, e o povo, que sabe o que quer, mas também quer o que não sabe, como diria o ex-ministro Gil, abraçaria Itamar, caso lhes fosse devidamente apresentado.
Enquanto o mundo ignorava sua própria tristeza por não conhecer a maravilha das canções de Itamar, o mestre − que a exemplo do que ele próprio escreveu sobre Naná Vasconcelos, ensinava "sem pretensão de ensinar" − seguia compondo, angustiando-se, entristecendo-se, irritando-se, sempre rigoroso, sempre nas contramãos conscientes, sem criar falsas polêmicas para figurar entre os "rebeldes", como fazem os cordeiros com pele de lobo adquirida em butique chique, dessas que figuram entre a Pompeia e o Leblon.

Seguidores