Quando a manhã chama, pego a bicicleta e vou caçar
assunto pelo bairro. Caçar é o termo adequado, assunto também: enquanto pedalo,
tento observar tudo que vai acontecendo, quase tudo bem banal, e de cada
banalidade é possível colher algum sentimento, de rancor à ternura, de nojo à
saudade. Sobre tudo é possível escrever.
Quando não saio de bicicleta, vou acompanhado da
Nina, que sempre leva uma alegria desproporcional para um simples passeio pelo
bairro. É bom, pois acabo me alegrando um pouco também.
Entre pedaladas e caminhadas, é comum encontrar meus
alunos do noturno pelas ruas. Um indo para o trabalho, a outra voltando da
padaria, quase todos visivelmente ocupados, outros apenas matando o tempo
enquanto não encontram o que fazer. Sempre é interessante encontrar alunos fora
da escola, sem as máscaras que um ambiente muitas vezes hostil lhe força a
usar.
Claro que há os que carregam o rosto rude ou
despreocupadamente sorridente também pelas ruas, às vezes por não conseguirem
se desfazer do disfarce, outras por serem o que são em qualquer lugar. A menina
muito vaidosa se maqueia durante as aulas para não fazer feio no intervalo, e
não se descuida nem quando vai sorrateiramente à quitanda. O cara carrancudo,
pelo rock ou pelo crime, não relaxa nem enquanto come um churros na esquina da
avenida principal.
Mas há entre os meus alunos os que conseguem relaxar
e ser apenas alguém distraído indo à farmácia, ajudando um vizinho, servindo
mesas. Há os que, aglomerados nas plataformas das estações de trem, ou
transidos de sono e frio nos pontos de ônibus, apenas bocejam enquanto sonham
com um amor, um gol, um futuro. Há os que, nesses momentos, não conseguem
esconder sob a máscara da calculada indisciplina o travo azedo por causa dos
dilaceramentos familiares, dos namoros rompidos, das drogas escravocratas, das
prestações atrasadas, dos adiamentos dos pequenos ou grandes sonhos de consumo.
Nas ruas, enquanto andam, correm, se arrastam, os
alunos, sem os abadás impostos pela escola, se tornam parte do mesmo rebanho de
esquecidas engrenagens que movem boa parte dessa cidade enferrujada pelo
trânsito e pela falta de tudo que é essencial, do transporte ao comprimido, do
livro aos espaços de lazer, do beijo ao riso não fingido.
Acredito que eles também devem olhar para mim com a
mesma sensação de deslocamento que permita ver mais que uma personagem. Na bicicleta
ou correndo atrás da Nina, eu também estou despido de minha armadura de
professor e sou apenas um tiozinho de cabelos grisalhos (precoces!), lutando
contra a barriga, que começa a se impor, sobre uma bicicleta ou levando a
cachorrinha serelepe para passear. Nas ruas, não sou o cara que precisa saber,
dominar, impor respeito, dar broncas, entreter e educar: sou um cara tímido vai
passando logo ali.
Se a escola nos permitisse ser o que somos de fato,
se não exigisse de nós atuações − que nem sempre são convincentes − de talento,
obediência, "autoridade" ou deboche, se pudéssemos ser algo mais
próximo de vizinhos e mais distante de atores canastrões, menos pessoas veriam
a escola como uma masmorra onde cada grupo (professores, funcionários diversos,
alunos) é o carrasco dos demais. Sem máscaras ou personagens, podemos nos
reconhecer uns nos outros, nos tolerar, nos irmanar. O contrário disso é uma
luta inútil por um poder que no fundo nenhum de nós dentro da escola tem de
fato.
Em uma escola de cara limpa, aprende-se a não ter
vergonha do que se é e a se perceber parte de um grupo bem maior do que o de
amiguinhos de classe. Essas lições são fundamentais para suportarmos a
travessia por ruas e corredores vida afora.
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