Vendo o documentário Daquele
Instante em Diante, de vez em quando um pedaço de alguma letra do Itamar
Assumpção me rasgava a alma a golpes de chibata benta, com ardores de salmoura
doce. Nossa música popular produz lixo, produz populachos de massa, produz
gênios de elegância suprema e acima de todos semeou Itamar Assumpção, estrela
ascendente, divinal terrestre, moleque saci que deslizou sobre o Tietê, sempre
na contracorrente.
Gênio difícil, esse Itamar. Sua arte, embora deliciosa, não
era de fácil digestão. Claro que valia qualquer esforço, qualquer empenho para
desfrutarmos daquele talento sem par; mas também é preciso dizer que nem tudo
eram dificuldades e pensamentos profundos; quanta singeleza, quanta
brincadeira, quanta brisa as canções do Nego Dito escondiam, escancaravam,
brutalmente lapidadas.
Gênio difícil, o desse Itamar. O documentário nos mostra um
homem ciente da grandeza de seu talento, indignado com a obscuridade que lhe
impuseram, com o silêncio e a distância de seus pares da música brasileira, que
o conheciam, claro, mas não lhe estendiam a mão. Zélia Duncan e Cássia Eller
foram as exceções que honraram Itamar, gravando o artista, Zélia ainda mais
próxima do compositor, amiga sincera que lançou há pouco um disco apenas com
canções dele, o Daquele Instante em
Diante.
O silêncio, a distância, me parece não terem arrefecido a
potência criativa de Itamar. Mas ele não suportava franciscanamente ser
ignorado, antes sofria o desprezo que lhe dedicavam. Segundo algumas pessoas
próximas a ele, não ver a carreira decolar como deveria foi o deixando doente,
lhe fazendo mal. Assistindo ao filme, fiquei com a impressão de que Itamar
Assumpção era rancoroso. Como não o conheci pessoalmente, sei que a impressão
pode não ter pé algum na realidade. Como costumo ficar hipnotizado pelas suas
canções, afirmo que um homem com a explosão de criatividade e a límpida
consciência de seu potencial tem todo o direito de bradar, de reclamar, de
angustiar-se com o tratamento que a mídia e os artistas, o que é ainda mais
triste, lhe dedicaram.
Itamar Assumpção é um dos maiores compositores da história
do Brasil. Sem entrar na lenga-lenga sobre sertanejo universitário, pagode
trelelê vocaloide e outros arrotos que contaminam o "solo sagrado da música
brasileira" − a sacralidade da arte vira bibelô quando se leva a sério
demais − causa certa revolta contida o fato de que quase todos os medalhões da
MPB não reverenciem o genial e genioso Itamar. Se havia entre suas canções iguarias
de difícil digestão, também sobravam bom humor e aperitivos de fácil degustação,
e o povo, que sabe o que quer, mas também quer o que não sabe, como diria o ex-ministro
Gil, abraçaria Itamar, caso lhes fosse devidamente apresentado.
Enquanto o mundo ignorava sua própria tristeza por não conhecer
a maravilha das canções de Itamar, o mestre − que a exemplo do que ele próprio
escreveu sobre Naná Vasconcelos, ensinava "sem pretensão de ensinar" −
seguia compondo, angustiando-se, entristecendo-se, irritando-se, sempre
rigoroso, sempre nas contramãos conscientes, sem criar falsas polêmicas para
figurar entre os "rebeldes", como fazem os cordeiros com pele de lobo
adquirida em butique chique, dessas que figuram entre a Pompeia e o Leblon.
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