sexta-feira, dezembro 17, 2010

A doçura que não serve

O diabetes me fez chorar duas vezes. Quando dei a primeira picada no dedo e li 274, em jejum(!), desabei. Chegara a minha vida uma doença que, eu estava convicto, me mataria em breve, mas antes me levaria, no ritmo de um torturador experiente, os pés, depois as pernas, depois a visão e por último os rins. Mas eu chorei mesmo ao me dar conta de que “nunca mais comeria uma trufa”.
Foi ao telefone, dando a péssima notícia à Heloíse, dez quilos mais magro que de costume, bebendo uns 30 litros de qualquer líquido doce que existisse na casa por dia, dormindo de 12 a 16 horas diárias, sem forças para dar quinze passos sem precisar me sentar, de preferência me deitar.
O tempo passou, tive um longo período do que os médicos chamam de “lua de mel”, intervalos de tempo em que o diabético tem uma glicemia bem controlada e pode até, vez ou outra, com muito cuidado, comer mesquinhas porções de açúcar. Vez por outra, aliás, eu era obrigado a comer açúcar, pois a glicemia baixava demais, e aí o risco era de entrar em coma e morrer rapidíssimo, mesmo. Depois, dei uma grande relaxada, a glicemia voltou a níveis que exigem cuidados, tive dificuldades para controlar os impulsos de devorar tudo que é delicioso e pode me matar, da batata frita ao bolo trufado. Nunca mais um caldo de cana regando aquele pastel de feira? Mas, sofrendo aqui e ali, levando cinco injeções de pequenas doses de insulina por dia, nadando e fugindo de situações de estresse, que, segundo alguns, é outro gatilho da hiperglicemia, o excesso de açúcar no sangue, vim vivendo. Casei, continuei dando aulas, escrevendo, aliás, faço minha estreia em livro logo, logo, viajei, me reconciliei, ganhei amigos novos. O diabetes existe e apavora, mas tomando cuidado – o que nem sempre faço, é verdade – a gente pode viver, sim. Na verdade, eu fiz um pacto comigo mesmo: o de não morrer, muito menos em decorrência do diabetes. Espero cumpri-lo, ao menos em parte.
A segunda vez que o diabetes me fez chorar, essa doença irritante e democrática, que pode ser escrita de todas as formas e com todas as concordâncias imagináveis e que pode atacar todo mundo, em todo lugar, foi quando descobri que não posso ser doador de sangue. Eu já desconfiava, mas retardei o quanto pude a confirmação; doía supor que eu não poderia ajudar a alguma pessoa com esse ato que considero de pura nobreza. Sempre que aparecia alguém precisando de doadores eu tentava convencer os outros a se encaminharem a um banco de sangue, mas eu mesmo não ia. Enfim, fui tirar a dúvida e descobri que, por ser insulinodependente, não posso entregar meu sangue para salvar a vida de ninguém. Ele é doce, mas não pode ser compartilhado. A única pessoa que ele pode manter viva sou eu, a mesma pessoa que ele pode matar.
Desabei diante da constrangida enfermeira, que aguardava silenciosamente o choro espremido e envergonhado de um homem adulto que nem estava doando sangue para alguém especificamente, apenas estava interessado em ajudar – com medo de passar mal, com pânico de agulhas que colhem sangue, mas disposto a doar.
É mais fácil viver sem comer trufas de chocolate do que com a amarga sensação de que o seu sangue não serve, de que, para aquela situação específica, para aquele gesto incômodo, mas fundamental, de uma generosidade tremenda, você é inútil. Há outras mil, outro milhão de coisas que podemos fazer pelo próximo, mas doar sangue, compartilhar o líquido rega a própria vida, não podemos. Não poder doar, sei na pele, nas minhas veias intocadas e no meu sangue egoísta, dói tanto quanto não receber algo fundamental para continuarmos vivos. E, além da dor – vou me recuperar, claro – dessa impossibilidade, ficou o sofrimento pela vergonha pós-morte de que, certamente, meus órgãos não servirão pra muita coisa – afinal, todos eles levam o meu sangue melado.
Muita gente doa para faltar ao trabalho. É um ato aparentemente espertalhão e egoísta, mas o resultado prático é o mesmo de quem doa por amor. Há quem não doe por questões religiosas, o que é um absurdo. Jesus doou o corpo inteiro e deixou bem claro que não há nada mais importante do que a vida.
Espero não chorar novamente por causa do diabetes. Aprendi uma receita deliciosa de trufa diet – e conto com o esforço dos leitores para que os bancos de sangue fiquem tão cheios que a minha colaboração não faça a menor diferença.

quinta-feira, dezembro 09, 2010

Bandejão

a fome enfeita a estante do intelectual
preenche a tela do cineasta
plastifica o verso do poeta
catapulta as vendas do jornal
alavanca o ibope da novela
municia metralhadoras e peixeiras:
a fome nos farta.

Servir bem, servir sempre

a mão de quem?
costura o strass
enrola o baseado
recolhe a verdura
etiqueta o produto
folheia a bíblia
prepara a picanha
amacia a massa
recolhe o lixo
maneja o controle remoto
levanta copos
aplica massagens
atende o interfone
abre os portões
espanca os perdedores
dispara no escuro
encerra uma prece
rodeia sua ceia
e não foi convidado?

segunda-feira, novembro 29, 2010

A crônica clássica de Mily Lacombe

No meio de um turbilhão de compromissos, resenhas, aulas, revisões, expectativas, lançamentos, projetos, trabalhos, frustrações, leituras e mais leituras e ainda mais leituras obrigatórias e atrasadas acumulando-se sobre a mesa, em cima do criado-mudo, embaixo do travesseiro, na mochila, no puf e até nas estantes, parei para ler Tudo é só isso, da jornalista multifuncional Mily Lacombe. Trata-se de um tratado pessoal sobre o amor, em grande parte o amor familiar, mas também o fundamental amor próprio e o amor à companheira – aquele amor que dá um colorido específico à vida.
Afirmar que o texto de Mily algumas vezes alcança um lirismo da estatura de Rubem Braga é o suficiente para você voar atrás do livro. A autora consegue em algumas crônicas tocar-nos nos ponto certo, da maneira certa, com leveza e segurança, para que vivamos nas leituras rápidas, aquilo que ela mesma viveu. O grupo de “personagens” é relativamente pequeno – “a mulher que eu amo”, pai, mãe, irmãos, sobrinhos, a avó, cunhados – e por isso criamos um relacionamento com eles, enquanto vamos conhecendo suas manias, qualidades, defeitos, enfim, sua humanidade.
Mily nos traz o sabor de um passeio “secreto” com o pai; a intensidade dos primeiros instantes de uma paixão duradoura; o fracasso de um projeto de “noite romântica perfeita”, que, mesmo com tudo dando errado, acabou terminando um jeito surpreendentemente “perfeito”. A escritora também faz associações inusitadas, como o acidente doméstico que gerou sua proibição de participar das atividades culinárias natalinas, mas que não a frustrou muito, pois ela vivia o momento maravilhoso de estar apaixonada e ser correspondida; ou a aproximação da morte da avó, que serviu, de um modo ao mesmo tempo triste e divertido, por conta da lembrança de uma brincadeira da infância, para aproximar mãe e filha. O mérito de Mily é lapidar momentos preciosos de situações simples, prosaicas, corriqueiras em qualquer família, como o momento do jantar, mas únicas para cada uma. É nisso que ela se aproxima de Rubem Braga e de outros cronistas clássicos. Também é nisso que a escritora se afasta de boa parte dos cronistas e colunistas atuais, preocupados que andam em parafrasear economistas e críticos literários, forjando uma escrita que não se identifica nem com os áridos textos acadêmicos nem com o rico cotidiano das pessoas comuns, prodigo em assuntos e sentimentos.
Mily, ao lado de Antônio Prata, pode salvar este gênero tão gostoso e brasileiro, com seus textos sem rancor, sem ranger os dentes, e por isso mesmo tão poderosos.
A questão da sexualidade da autora – gay assumida e, de certo modo militante, mas sem a chatice panfletária e antipática de muitos grupos organizados – perpassa todo o texto, tanto nos momentos de conflito com familiares, especialmente quando decidiu assumir sua homossexualidade, quanto nas histórias em que a companheira de Mily – “sua mulher”, com a autora prefere – aparece. E não, não há um erotismo calculado para atrair a atenção de lésbicas e homens pervertidos, ou aguçar a curiosidade das mulheres hetero; a sensibilidade da autora agracia o autor, com um comedimento preciso, que deixa as emoções dançando diante de nós. São crônicas líricas, intimistas, refinadas. Crônicas clássicas.
A lamentar apenas o fato de a escritora torcer para dois times – o que em si já é uma coisa bem estranha – e nenhum dos dois ser o Santos; pior, a moça arrasta uma de suas asas para o Corinthians...
Além desse defeito imperdoável, lamentos, de fato, que a revisão não tenha sido das melhores, mas nada que uma segunda edição não salve. Mas as crônicas em si salvam qualquer tarde monótona, ou aquele momento em que, deitados, aguardamos o sono. Depois de ler Mily, dormimos bem e sonhamos com os anjinhos...

quinta-feira, novembro 25, 2010

Contra-aforismos VIII e IX de o anticristo

VIII
Sabe por que decidi escrever esse Antinietzsche? Por que ele me considerou seu antagonista. Apesar de não ser teólogo, tenho sangue de teólogo, assim como C.S. Lewis, Martinho Lutero, Martin Luther King, Chesterton, Ariovaldo Ramos, T.S. Eliot, Santo Agostinho, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Guimarães Rosa...
Não quero dizer com isso que tenha o talento deles, mas o mesmo tipo de inquietação, a mesma fé (não é bem a mesma fé, mas temos em comum o fato de que temos fé), almejamos o mesmo futuro para a humanidade.
Agora, cá pra nós, o bigode dizer que há nos teólogos presunção porque, sentindo-se por algum motivo mais elevados, “olham a realidade com superior indiferença” é piada. Ou Nietzsche, marotamente, incluiu-se entre os teólogos, por ter ele mesmo estudado teologia, e por olhar a realidade com superior indiferença, ou fez aqui o que Freud, ou ao menos os psicanalistas amadores, chamaria de “transferência”, passando para os “inimigos” defeitos que ele mesmo tem, mas dos quais não se dá conta.

IX
É verdade que existe uma fé doentia, que mergulha seus adeptos numa letargia covarde, que vê em cada fracasso, cada injustiça, em cada absurdo a justificativa de que Deus está por trás de tudo, arregimentando tudo, controlando tudo. De fato, essa fé agride o próprio princípio cristão, que se caracteriza pela inconformidade com a injustiça, a covardia, a imoralidade, a corrupção, a opressão. Jesus, o Cristo, não pregou a passividade, mas a sabedoria e a atitude em prol de uma causa maior. Pregou a não violência, ou antes de pregá-la, a viveu, assim como a misericórdia, a mansidão, a justiça. Jesus não se conformou a nada que não fosse a sua própria consciência, totalmente alinhada à consciência do Pai. Uma fé passiva, subserviente, fraca, conformista, não serve, assim como a fé voltada para o próprio umbigo, dura, agressiva, incapaz de colocar o próximo acima e à frente, também, não. Aquela, não resta duvida, é a fé dos otários; esta, é a fé do bigode – e nenhuma das duas é cristã.
Seria verdade que a guerra é o triunfo da humanidade, ou que ao menos encaminha a humanidade para o triunfo? Seria verdade que a ideia de força, de virilidade, é realmente mais produtiva e nobre do que a compaixão? Seria possível que Nietzsche, se não contasse com a compaixão da irmã e de meia dúzia de gatos pingados (meia dúzia de três ou quatro, vale frisar) alcançasse a importância que adquiriu na História? Ora, vale perguntar, se é fato que boa parte dos teólogos não compreende o que venha a ser a Verdade – ou a manipula sem o menor escrúpulo –: não é mentira que nem tudo que sai da cabeça do Bigode é verdadeiramente verdadeiro.

terça-feira, novembro 23, 2010

Ao pastor que não me ouve

Aqui vai mais um texto de uma ovelha mansa.
Dessa vez, quero escrever algumas sugestões – as pessoas cada vez menos gostam e acreditam me conselhos, veem neles, uma inveja recalcada, uma tesoura pronta a podar nossos sonhos e atitudes, acreditam que os conselhos são o bafo de satanás em nossos ouvidos. Penso que, como o senhor sequer me lê, o exercício será vão. Mas eu não tenho coisa mais interessante a fazer – há um mundo por ser consertado, há pessoas precisando de amor, há famintos, corações dilacerados, mas, buscando seguir os seus passos, fico aqui pensando, pensando, pensando, sem compromisso algum com a prática. Vamos ás sugestões:
O senhor já é homem maduro. Criou todos os filhos, todos prontos para encarar o mundo. Sua mão protetora, o sustento que partiu do suor do seu rosto – justíssimo salário, não questiono isso! – permitiram que sua família pudesse se manter e que todos agora possam caminhar com seus próprios passos. Há pouca coisa para planejar, do ponto de vista financeiro, para o futuro. O senhor tem casa, carro e algum dinheiro no banco. Seu salário continua gordo. Suas estantes estão cheias, há sempre um amigo querendo presenteá-lo com um CD, um livro, há viagens de negócios que podem facilmente fornecer alguns momentos de ócio. Quão nobre seria de sua parte abrir mão de parte de seu salário para o Reino de Deus! Não entenda que o Reino de Deus é algo que separa alma e espírito. As pessoas precisam conhecer o evangelho e precisam comer! Participar de vigílias e de estudar! Os cultos precisam de instrumentos musicais que funcionem e os que cultuam precisam de roupa limpa, nova! O livro novo, a viagem dos sonhos – caríssima – o sapato elegante – importado – não podem ser deixado de lado em nome de uma causa nobre, justa, que envolva realmente ação? Precisam...
Quer outra sugestão? Fuja das mesas fartas. Fuja dos tapinhas nas costas. Fuja dos olhares que brilham ao verem o senhor como se vissem o Pe Lu da banda Restart! Tudo bem, como se vissem o Chico Buarque fazendo suas caminhadas pelo Leblon ou pela floresta da Tijuca. São olhares de admiração, logicamente, mas alguns escondem idolatrias cultivadas a ponto dessas pessoas passarem a defendê-lo mesmo que o senhor se torne o mais novo entusiasta do neonazismo. Estas pessoas, que lhe cobrirão de carinho – e sempre é bom ser amado, quem duvidará disso? – são incapazes de repreendê-las. Já nas mesas fartas os problemas reais do mundo, viram apenas teses, especulações, material para retórica. Nas mesas fartas, nos lugares de honra, a verdade não se esconde, nem aparece. Ela é escamoteada. Freqüentar estes lugares nos deixa, pouco a pouco, arrogantes, donos da verdade – e bater nos donos da verdade, com o tempo, torna-se apenas mais um exercício de arrogância, não de compaixão. A gente decreta máximas, despreza pessoas que não participam da mesma ceia que nós, e fica pensando que está defendo o que é certo e combatendo o que é errado. As mesas fartas e os tapinhas nas costas, além dos olhares brilhantes de admiração cega e fecham a porta para verdade. Ficamos trancados em salas cheias da nossa verdade, que muitas vezes não passa da afirmação d que tudo é verdadeiro, ou que nada pode ser digno de ser chamado de verdade – mentirinhas nietzscheanas que estão na moda.
Finalmente, sugiro ao senhor que volte a ler Sócrates (Platão, leia Platãom as ouça Sócrates). Ele era bem arrogantezinho, mas tinha um talento imenso para estabelecer o diálogo, do qual não fugia nunca, principalmente com as pessoas de quem discordava. A riqueza intelectual mora na discordância produtiva.
O senhor bem deve ter percebido como sou um autêntico discípulo seu. Escrevi máximas, algumas bem legais, outras de gosto duvidoso, como convém a quem não é genial. Mas por ora ainda me falta crer na própria genialidade – nestedia, fundarei a minha própria igreja!

sexta-feira, novembro 12, 2010

Pastor ou hiena?

Sempre é triste para um cristão ouvir que alguém perdeu a fé (http://networkedblogs.com/asN9w). Quando este alguém é um pastor, responsável por fortalecer a fé das ovelhas e por zelar pela vida espiritual delas, a notícia torna-se um tanto mais triste. Todavia, o que é triste ainda pode ser legítimo. Cremos em Deus e o louvamos pela possibilidade do livre arbítrio. A nós, que permanecemos no barco do cristianismo, cabe apenas orar e pedir que Deus interceda pela vida do ex-pastor, que ele tenha um reencontro com Deus e que aquilo, ou melhor, Aquele em quem ele já acreditou volte a fazer sentido.
O que torna notícias de pastores “desviados”, para usarmos um jargão evangélico que para mim faz muito sentido, ainda mais tristes e dramáticas é o fato desses líderes de igrejas continuarem em seus cargos, não por picaretagem ou oportunismo, mas porque não sabem fazer outra coisa na vida além de pastorear e porque correm o risco de verem tudo ao seu redor desmoronar. Para estas pessoas, sem fé e sem autenticidade, a vida passa a ser uma mentira; eles precisam esconder sua nova condição, de agnóstico, de ateu, até de suas esposas e famílias, de seus amigos mais próximos, e continuam pregando, orando, aconselhando e usando a bíblia como principal ferramenta de trabalho. Os mais honestos ainda selecionam os textos de seus sermões, buscando falar sobre valores em que ainda acreditam – valores, não sobre um Deus que criou tais valores – outros, vão passando da crise para o esconderijo e daí para o cinismo, manipulando a Palavra de Deus e os membros de suas igrejas, transformando a fé alheia em negócio, em moeda de troca.
É triste alguém perder a fé. Mais triste ainda quando se trata de um pastor. Triste e sufocante perder a fé e precisar usar uma máscara; triste e canhestro perder a fé e transformá-la em cinismo e manipulação. Não há receita para este problema, mas, acredito, seria bem o caso das igrejas começarem a incentivar que seus pastores e seminaristas tenham outra formação, além a de teólogo e pastor. Um modo prudente e positivo de evitar que a fé vire um mero osso a ser roído.

quinta-feira, novembro 11, 2010

Beijos & Versos

Ana Maria Machado afirma no prefácio do livro Comédias Para se Ler na Escola, de Luis Fernando Veríssimo, que é tão absurdo dizer “eu não gosto de ler” quanto afirmar “eu não gosto de comer”. Assim como não gostamos de tudo que nos oferecem à mesa – Couve? Repolho refogado? Quiabo? Coco? Argh! – também não podemos dizer que não apreciamos absolutamente nada que seja escrito.
Sim, a variedade de opções de leitura é tão grande quanto os gostos de cada indivíduo e, imagino, muito maior do que as opções gastronômicas disponíveis.
Mas, além da multiplicidade de opções de que podemos dispor quando o assunto é leitura, a afinidade entre o texto e quem lê também é fundamental, e pode ser tão íntima quanto um beijo pode ser.
Ler é como beijar! O leitor de lábios calejados, experimentados, bem sabe que um beijo não depende só de uma pessoa: é um ato conjunto, em que damos e recebemos algo ao mesmo tempo. Algo bom, esperamos, mas que muitas vezes, independentemente da habilidade dos parceiros, a coisa desanda. Por mais exímio beijador que você seja, se o(a) parceiro(a) de bitocas não têm uma pegada significativa, a coisa pode babar. E muito!
Assim como o beijo, a relação entre leitor e texto – e não entre leitor e autor, vale frisar – é única, pessoal e intransferível. Ambos, quem lê e o que é lido, precisam alcançar a mesma sintonia. E não, o fato do texto não agradar a um leitor, não quer dizer nem que o texto seja ruim, muito menos que o leitor seja burro. Significa que, naquele momento, os dois não estavam na mesma “vibe” – e nada impede que, num futuro, próximo ou longínquo, os dois não possam tentar de novo e, aí sim, se completarem. Da mesma forma, o texto que se apresenta exuberante hoje, no futuro pode parecer imaturo, extravagante, pedante e perder o encanto, enquanto o leitor pode ficar mais insensível, exigente, relapso, conservador, chato...
O importante mesmo, para beijos e leituras, é continuar praticando, experimentando. Contudo, creio, a promiscuidade com os textos é bem mais saudável do que a promiscuidade dos beijos. Pelo menos é muito mais “seguro” e nos leva a experiências bem mais diversas do que um beijo – por mais saboroso que ele seja.

quarta-feira, novembro 10, 2010

Comentário e contra-aforismo VII

Pensamento inconcluso
Esse Nietzsche, na verdade, tinha uma grande inveja de Jeová, pois achava-se mais apto para o cargo de Deus. Afinal, em seu currículo constavam Filologia, Letras Clássicas e uma boa experiência em platonices abesteiradas e como queridinho da irmãzinha desprovida de grandes atributos estéticos.
Dionísio Pennafort, crítico literário obtuso e igualmente rancoroso, protestante, num momento de desabafo quase contido.

VII
Há vertentes do cristianismo que são completamente nietzscheanas, pois renegam o exercício da piedade. Nesses casos, seja pela ambição desmedida de poder – pensemos em alguns papas glutões, devassos e tiranos – seja pela busca incessante por bens materiais e curas milagrosas, na contramão cristã denominada Teologia da Prosperidade, a piedade é sinônimo de fraqueza. No primeiro caso, os personagens são déspotas e pronto. No segundo, o povo, guiado por cegos, acredita que Deus criou um sistema no qual pode tornar-se refém de quem agir de acordo com um determinado programa que inclui falso moralismo e grandes sacrifícios em forma de gordas ofertas a determinados “ministérios”. Aqueles não são piedosos por opção de vida; esses, nem lembram que a piedade existe, e a julgam mesmo desnecessária, pois quem carece de piedade está em falta com as prestações do carnê do baú da felicidade celeste.
De fato a piedade é antinatural e luta ao lado dos condenados pela vida. E é justamente por isso que a morte do Nazareno não foi desproporcional: sendo todos nós condenados pela vida, só mesmo um grande sacrifício para nos salvar a todos.
Em nossos tempos, podemos dizer que a piedade cristã é falha quando não existe – na Teologia da Prosperidade, por exemplo. Não é piedoso o que condena, o que ultraja, o que oprime – seja ele cristão ou não. O único problema da piedade é quando ela ocorre num sentido de superioridade de quem a pratica, pois isso implica no piedoso julgar aos outros inferiores; quando ela é praticada na forma da compaixão e da identificação – estamos todos no mesmo rebanho de condenados – torna-se elevada, sublime, iguala os homens, estabelece a paz e desdenha dos conflitos e da guerra. É assim que a vida é preservada, sem a nojenta prática do darwinismo social, ao qual o próprio sifilítico, meio doido, enxaquecado, nauseabundo, estrábico e feio pra diabo Nietzsche não sobreviveria.

quinta-feira, novembro 04, 2010

Contra-aforismos V e VI para o Anticristo de Nietzsche

V
Toda vez que o cristianismo trava uma guerra, fracassa, principalmente quando a vence. A única guerra válida acontece no campo espiritual...
De fato, como bem disse Nietzsche, o cristianismo é para os fracos, pois esses precisam ser fortalecidos, por isso buscam a Deus. Os fortes, normalmente, são capazes de grandes feitos, como as guerras mundiais, a invasão ao Iraque e ao Afeganistão e o atentado de 11 de setembro, e costumam chamar a seus adversários de parlapatões, como nosso ex-presidente Fernando Collor.

VI
Um belíssimo espetáculo se apresentou diante de mim: a troca da virtude pelo amor (é piegas, eu sei, mas até Shakespeare perde a mão de vez em quando).
Um aterrador espetáculo se apresentou diante dos meus olhos. Um homem altamente erudito gastou suas poucas energias transformando paranoia em filosofia e arregimentou um exército de seguidores ao longo dos séculos.

segunda-feira, outubro 25, 2010

Sem Fundo

No Buraco, de Tony Bellotto, é o primeiro grande romance sobre o rock brasileiro

Toscos festivais universitários pelo interior, o início da agonia da indústria fonográfica mundial, figurinos espalhafatosos, pequenas doses de mistério, um senso de humor que por vezes chega ao hilário, sexo, drogas e rock´n´roll. E o que é melhor: tudo isso num clima meio autobiografia, meio confissão, muita ficção. O jogo mais delicioso em O Buraco, novo livro de Tony Bellotto, é descobrir o que ali é realidade mal disfarçada, o que é ficção pura – aliás, a ideia de ficção pura, estou cada vez mais certo disso, é pura ficção.
Dentre muitas coisas, é possível dizer que No Buraco não é apenas, o que já não seria pouco, um livro sobre a fase áurea do rock brasileiro: sua leitura é bastante agradável e fluente, com um ritmo entre caótico e frenético, mas nunca truncado, fruto das reminiscências de seu narrador, um ex-guitarrista de rock que pretende se tornar escritor – alter-ego de Bellotto? Vai saber...
De certo, pode-se afirmar que as histórias que vão se amontoando, saídas da mente já nem tão saudável do narrador, são costuradas por acontecimentos inusitados que dão ao romance um ar “quase” policial. Há pouco para descobrir, e os mistérios não são o centro das peripécias do guitarrista coroa, meio junkie e meio patético que vive de um passado pouco glorioso, numa quitinete em Perdizes – retrato perfeito de sua decadência que ainda fuça as migalhas de “nobreza” – lidando com as sobras de seu sucesso, especialmente com as mulheres, e com a ajuda de sua mãe, antes que ela adoecesse – afinal, o universo do rock é pródigo em personagens que se recusam a sair da adolescência, no bom e no mau sentido.
Enfim, No Buraco é essencial para quem curtiu – ou ainda curte, como eu – o rock brasileiro dos anos oitenta, mas não abre mão de uma história bem-feita. Diversão e arte garantidas!

Contra-aforismos III e IV de O Anticristo, de Nietzsche

III
A questão não é criar uma guerra de argumentos para defender o cristianismo. A questão é almejar ser como Cristo. Ele, que sendo poderoso, fez-se de fraco no meio dos fracos; que direcionou seu olhar e seus atos aos que eram sabidamente inferiores – a chamada raça humana de um modo geral. O cristianismo como sistema religioso e político não nos interessa justamente por ser faminto de mais e mais poder. O cristão como espelho, ainda que muito embaçado, de Cristo: esse é o objeto de nossa defesa e admiração, a nossa meta. Percentualmente falando, não há muitos desses caras por aí, não...

IV
Concordamos com o bigode: Desenvolver-se não significa forçosamente elevar-se.
Discordamos do bigode: o tipo superior, principalmente o que tem consciência disso, costuma ser o que mais dá mostras de que a humanidade é capenga.
Quanto ao Super-Homem: o Batman e os X-Men não são mais legais justamente por que são humanos, demasiadamente humanos? Jorel só é interessante como metáfora do Cristo encarnado. Contudo, não nos identificamos com ele, apenas o admiramos e dependemos dele. O quê? Vai dizer que você nunca desconfiou de que o Super-Homem é uma espécie de Jesus do gibi?
Entretanto, Nietzsche não leria gibis, mesmo que o desenhista fosse Leonardo da Vinci – mas o Salvador Dalí não é muito mais legal? Ah, o bigode diria que a arte surrealista é sintoma de grave doença social...

sexta-feira, setembro 17, 2010

II (o segundo contra-aforismo)

O que é bom? Tudo aquilo que nos humaniza, a ponto de não precisarmos correr atrás de poder. O que nos irmana, seja a lágrima, seja o riso. Trufa de chocolate. A compaixão. Gelatina, qualquer que seja o sabor. As pedaladas de Robinho, a competência plástica dos gols de Ronaldo, a dança aérea de Michael Jordan, a genialidade de Ganso. Os versos de Bandeira, a pulsação de Cabral, a vertigem de José Régio, o espanto de Clarice, o louco teatro de Fernando Pessoa, a palavra encantada de Drummond, a infância de Manoel de Barros. Pular ondas na praia numa tarde quente. Cheiro de criança (dizem que elas têm o odor divino). Chico Buarque e Edu Lobo. A cidade do Rio de Janeiro. O avesso da guerra. A virtude com aroma feminino. Uma boa conversa silenciosa com Deus.
O que é mau? Tudo que somos capazes de fazer por um minuto mal aproveitado de prazer, tudo o que nos automatiza, nos esvaziando de emoções, tudo aquilo que nos ilude, nos fazendo caçar vorazmente aquilo que acreditamos ser o poder.
Além, disso, o Corinthians, o João Kleber, o Sergio Naya, a família Bush, couve manteiga e repolho refogado, crises de TPM (principalmente se você for homem), escolher a cor da cortina e boa parte dos membros das famílias imperiais de Alagoas e do Maranhão também. Tudo isso representa a gana e as ilusões do poder – menos o Corinthians, mas nem por isso ele deixa de ser ruim...
Quanto aos fracos, aos incapazes: que Deus tenha misericórdia de nós, nos fortaleça e nos carregue em seus braços. Quanto aos fortes: que Deus os perdoe.

poeminha grandiloquente tipo nietzsche

Batam-me, devotos de Nietzsche!
Acendam suas velas
Rasguem suas roupas de grife!
Declaro, para espanto meu
Que tudo o que esse mundo ao parvo ofereceu
Foi o ódio a Deus
Por não ser ele próprio um deus!

Voltemos aos aforismos.

quarta-feira, setembro 08, 2010

Nietzsche está morto?

É do bigodudo a afirmação de que Deus está morto. Numa represália bem-humorada e, ao menos para os crentes, verdadeira, lapidaram a frase “Nietzsche está morto” e a atribuíram a Deus.
O certo é que Deus, que não erra, jamais afirmaria tamanho absurdo. Nietzsche está vivo, talvez até mais do que no período em que andou pela terra. Não digo com isso que ele plana por aí como alma penada, que forjou sua morte e está passando férias na Jamaica ou na Holanda, tampouco me refiro a uma vida após a morte. Nietzsche está vivo filosoficamente, politicamente e culturalmente, ou não estaríamos aqui preocupados em refutar suas afirmações e o fascismo, o nazismo, o futurismo, o imperialismo americano, o instinto de superioridade cultural europeu, a xenofobia, o hedonismo, o materialismo e outras pérolas da sociedade contemporânea não seriam uma realidade tão marcante. Ele não criou nada disso, mas todas essas práticas, a partir do século XX, passam pelos escritos – e pela aprovação – do prussiano.
Nietzsche, o sósia de Camilo Castelo Branco, está mais vivo do que nunca. A ele se dirigem filósofos, sociólogos, políticos e artistas; nele se encontram intelectuais de várias vertentes; por sua cartilha rezam várias pessoas.
Por outro lado, Deus também está vivo, embora com muito menos relevância e prestígio do que mereceria; ao menos nos meios intelectuais, o filósofo da Baviera tem mais moral que o divino. Digo mais: Nietzsche é o deus, eleito por muitos, dessa nossa “pós-modernidade”. Mas, é necessário que se diga – na verdade, creio que nem seja tão necessário assim – que não estamos melhores com esta nova divindade do que estaríamos se nos voltássemos para o Deus do cristianismo; a História, até mais do que a teologia, está aí para nos dar razão.
Nietzsche está vivo, por exemplo, quando os mais fracos são desprezados, quando moradores de rua são queimados, quando presos de guerra são torturados, quando soldados estadunidenses violentam afegãs e iraquianas, quando Cuba deixa de receber ajuda do exterior, quando policiais espancam adolescentes inocentes pelos becos das metrópoles brasileiras, quando missionários cristãos são queimados vivos, linchados e esquartejados nos países muçulmanos do Oriente Médio e da África. Ele também está vivo nas palavras dos ateus que julgam os crentes, em especial os cristãos, seres inferiores do ponto de vista intelectual, moral, social...
Veja bem: não digo que Nietzsche pregou abertamente a favor dessas coisas, nem que o policial truculento que humilha os cidadãos na baixada fluminense conheça profundamente a obra Bigode; eu também não conheço – e aqui se deleitarão os que, ao lerem estas linhas, discordarão de tudo quanto escrevo; digo: dane-se. Mas as ideias do prussiano estão espalhadas pelo mundo, postas em prática por quem o admira, por quem nunca ouviu falar dele, por quem certamente seria desprezado pelo próprio Nietzsche. Essa constatação empresta muita vitalidade à obra desse renomado filósofo...

quarta-feira, setembro 01, 2010

Ataque frontal

Aqui, apresento uma reflexão nada acadêmica sobre ideias contidas no Anticristo. Depois, mando mais um contra-aforismo.


Muita gente vê com péssimos olhos o cristianismo. Guerras, escravidão, especulação financeira, xenofobia, pena de morte, imperialismo, proibição cínica às drogas, conservadorismo, Corinthians, charlatanismo, tudo de ruim é culpa da religião em geral e, no ocidente, do cristianismo em suas mais variadas vertentes. Aliás, o fato de haver inúmeras vertentes do cristianismo já aponta para o fracasso de seus princípios: se não conseguimos entrar em acordo entre nós, como vão acreditar em nossa pregação a respeito de um reino futuro sem demandas ou diferenças, onde todos serão de todos amigos, súditos de um mesmo Rei, felizes? Não conseguimos concordar nem sobre o caráter do próprio Deus a quem dizemos conhecer tão bem...
O principal problema desse tipo de crítica não é a falta de fundamento, já que muita atrocidade existente no mundo é praticada por cristãos e, pior ainda, não raro em nome de Deus. A falha é atribuir a Cristo responsabilidades que ele de fato não tem.
Nietzsche sabia disso, ou ao menos deveria saber. Tanto que seus ataques não são direcionados a Jesus, mas ao cristianismo, para ele duas coisas bastante distintas e mesmo dissociadas . Mais uma vez, devemos dar ao filósofo ao menos uma cota de razão. Não podemos responsabilizar Jesus pelas cruzadas, pelo genocídio de índios, pela escravização de negros, pela perseguição aos judeus no regime nazista, pela guerra do Iraque, pela Inquisição, pelo genocídio de camponeses que acompanhou a Reforma Protestante ou pelo pensamento fundamentalista, xenofóbico e genocida da ku klux klan. Contudo, à frente de cada um desses eventos, a cruz era o estandarte: os seguidores de Cristo, dizendo cumprir mandamentos seus, promoveram boa parte das desgraças humanas históricas.
Mas, se engana quem acreditar que as críticas de Nietzsche eram a respeito da violência engendrada por católicos, ortodoxos e protestantes. É possível que alguns desses atos fossem aplaudidos de pé pelo prussiano. Qual é a primeira e forte crítica que surge em O Anticristo contra o cristianismo? A tendência à piedade, à compaixão, que Nietzsche considerava a grande fraqueza humana.
Para ele, o cristão é a “grande besta humana” . O cristianismo é um modo de vida que valoriza os fracos, os incompetentes, dissemina a compaixão, inferioriza os fortes. E, sem a devida valorização dos fortes, sem o desejo de poder – raiz de tudo o que é bom, segundo o bigodudo – a humanidade tende a enfraquecer-se. Os fracos, em vez de receberem piedade e compaixão, devem ser aniquilados.
Se o leitor menos inteirado do assunto notar uma semelhança entre estas ideias, apresentadas logo no início de O Anticristo, e as bases do fascismo, não estranhe: elas realmente foram usadas na formulação ideológica do nacional-socialismo de Hitler e por outros ditadores da primeira metade do século XX, de Mussolini a Franco, passando por Salazar e chegando à América Latina com a simpatia de Getúlio Vargas e a competência carniceira de Pinochet. Hoje, muitos dizem que Nietzsche teve suas reflexões distorcidas para que estas atendessem ao real interesse da extrema-direita europeia. Depois veremos se isso é verdade ou não.
Verdade mesmo é que este pensamento voltado para a busca de poder, de elevação, de superioridade, de subjugar e eliminar os mais fracos, alastrou-se pela Europa na primeira metade do século XX. Se pensarmos no futurismo de Marinetti, que exaltava a guerra, as máquinas e execrava as bibliotecas, museus, as mulheres e etnias consideradas inferiores, veremos reflexos de conceitos nietzschianos, por exemplo. Ainda que o filósofo alemão não fosse um entusiasta da modernidade, posto que sua paixão e seus referenciais estivessem na Antiguidade Clássica e no Renascimento, nos parece óbvio que o poder, para ele a base do que é bom, é manifestado com maior destaque quando comparado a algo ou alguém que não dispõe do mesmo poder. É a óbvia experiência do contraste: para que eu me sinta belo, a figura do feio se faz necessária; no entanto, o mesmo ideal de beleza justifica que o feio, o pobre, o fraco, sejam exterminados. Isso fica mais claro quando pensamos que não há limites nesta busca pelo poder declamada por Nietzsche, onde a guerra deve ser exaltada, em detrimento da paz. Esta parte da lição, Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, Pinochet, Bush, Slobodan Milosevitch, Nicolai Ceausescu, Stálin, e alguns outros ditadores e/ou genocidas aprenderam muito bem. Quais foram as referências históricas de Nietzsche? Os ditadores e imperadores da Antiguidade.
Verdade é que estamos apenas nas primeiras páginas do livro aqui esmiuçado; também, sempre é bom lembrar, não há aqui nenhum tratado filosófico. Vamos prosseguir para ver a que conclusão chegaremos, e nossa opinião pode mesmo mudar, pois defendemos ardorosamente o direito do homem a mudar de opinião, sabendo que com isso concordarão Ferreira Gullar, Fernando Henrique Cardoso, Ronaldo Fenômeno, Eduardo Paes, Gilberto Kassab, Lula, Fernando Collor et caterva.

domingo, agosto 29, 2010

Agora vai!

O Anticristo é um pequeno livro, com pequenos capítulos. São aforismos, embora um pouco grandes para esse gênero textual. Os aforismos normalmente são escritos por pessoas que estão absolutamente convictas do que escrevem, pois encerram um juízo moral – termo que Nietzsche certamente rejeitaria. O autor do aforismo, quando não é anônimo, soa como arrogante, pois se apresenta como o senhor da razão.
Nesse texto, a partir de agora, pretendo contra-aforismar, ou seja: a partir de cada capítulo de O Anticristo, fazer algum comentário. Os “contra-aforismos”, assim como os aforismos, não primam pela humildade, pois também são escritos por pessoas convictas de algo. Normalmente são artilharia de defesa. Nesse caso, não é bem uma defesa de nada, pois, creio, Deus pode fazer isso sozinho e vem fazendo ao longo da História. O incômodo é meu, a intenção de questionar valores apregoados por Nietzsche é minha, o convite ao diálogo é meu. Não me ponho em pé de igualdade com meu adversário, pois, comparativamente, não tenho duas gotas da imensa represa de erudição do Bigode. Mas quero falar, talvez me divertir um pouco, jogar pulgas atrás de algumas orelhas. Se conseguir alguma dessas coisas, me dou por satisfeito.
Vamos começar?
I
Que hiperbóreo que nada! Somos mesmo é nietzscheanos! Somos muito fáceis de encontrar: nas igrejas, universidades, nos pampas, parlamentos, no cinema, no metrô... tem pra todo gosto e pra todo lado!
Temos grande dificuldade em perdoar; no máximo, escondemos nosso rancor ou nossa fraqueza em palavras e comportamentos passivos. E também somos péssimos para nos arrependermos de algo. Podemos até nos arrepender, mas assumir essa mudança de perspectiva diante de nossos erros é algo que pega muito mal em nosso meio. Bastaria para essa constatação prestar um pouco de atenção na quantidade de vezes que ouvimos frases do tipo: “não me arrependo de nada!”. Existe coisa menos cristã que não se arrepender dos erros? E fazemos isso porque não queremos parecer fracos. Existe coisa mais nietzscheana do que almejar parecer forte?

quinta-feira, agosto 26, 2010

Abraçado ao rancor

Comecei, ano passado, a fazer uma paródia do livro O anticristo, de Nietzsche. Parei porque vivo precisando suspender meus "projetos do espírito", como diria Mario de Andrade, para fazer outras coisas mais prosaicas. Não é um trataod filosófico, mas uma brincadeira, do ponto de vista de um cristão. O nome desse projeto é O Antinietzsche. Abaixo segue o primeiro capítulo, que se chama justamente "Abraçado ao meu rancor"


Nietzsche era de uma linhagem de pastores protestantes, incluindo o próprio pai, que morreu prematuramente. Na juventude, também pretendia seguir a carreira sacerdotal, tanto que chegou a se preparar para o ministério pastoral. Mas alguma coisa aconteceu, e hoje o bigodudo prussiano é dos pensadores preferidos entre ateus, tornou-se o filósofo da moda, cult, pop e faz suar frio uma boa parte dos cristãos de praticamente todas as denominações, ao menos os mais chegados ao exercício do pensamento – que provavelmente não são maioria, não. Também é verdade que alguns dos cristãos pensantes não suam frio quando são defrontados com a obra de Nietzsche; antes, fazendo uso do conselho bíblico de provar todas as coisas e reter o que é bom, encontram entre as linhas do filósofo, algo que se aproveite.
É verdadeira a afirmação de que Nietzsche se converteu; contudo, seu percurso foi contrário ao do que nós cristãos gostamos de valorizar: ele saiu de uma formação cristã protestante e embrenhou-se num “antiniilismo materialista pré-futurista e antepós-moderno” (eita ferro!) presente na base de muitos movimentos políticos e filosóficos que atravessaram o século XX e chega ainda bastante vigoroso – talvez mais do que nunca, a posteridade nos dirá – ao terceiro milênio.
Ao menos na obra O Anticristo, Nietzsche é bastante contundente, mesmo agressivo, em suas afirmações. Contrariando o princípio cristão de oferecer a outra face, pretendemos aqui revidar os golpes proferidos pelo filósofo mais famoso dos últimos tempos – o de todos os tempos continua sendo Sócrates, “seguido pelos seguidores” Platão e Aristóteles, pelo espanhol Vicente Matheus e pelos brasileiros Xico Sá e Nataniel Jebão.
A presente obra não é um tratado filosófico. Minha deformação é outra. O próprio bigodudo me viria com profundo desprezo, pois, apesar de não ser teólogo, estou “envenenado” pela visão cristã de mundo. Mas, embora este fato me descredencie diante de muitos pensadores, gostaria de confrontar algumas ideias nietzschianas com meus princípios. Assim como o prussiano não podia se livrar de suas lancinantes dores de cabeça, não posso me desvencilhar do que sou: cristão, protestante, batista, evangélico e santista fundamentalista, mais ou menos nessa ordem.
Para mim, digo desde o começo, O Anticristo é fruto de um grande rancor, misturado com um enorme sentimento de inferioridade e traspassado por uma visão imperialista de mundo. Também deve haver algumas pitadas de traumas pessoais, fora o lado “noia” do filósofo, que não pretendemos levar em conta, dado seu viés especulativo. Não nos interessa a biografia do filósofo, apenas as ideias que defendeu. Desejamos não apenas matar a cobra, mas também, e sobretudo, mostrar a cobra morta!

APRESENTANDO O SANTO

Este é um texto que fiz para um projeto que nunca foi pra frente, como a maioria dos projetos que fazemos. A ideia era convidar um cético que tem respeito pela fé alheia e um religioso (tipo o Pondé) que não é fundamentalista, nem tem vergonha de pensar (tipo o Ariovaldo Ramos. A certa altura, pensei em eu mesm ofazer o papel do crente, e é daí que esse texto brota. Não achei parceiros.

O santo peca, se alegra e estuda. O santo, sempre que pode, ri. O santo come carne, fritura e doces, inclusive no dia da paixão de Cristo.
O santo admira as artes, inclusive – talvez principalmente – as laicas. O santo lê Machado de Assis, Rubem Fonseca, admira Martin Luther King e Shakespeare.
O santo não vive no altar. Tem pés de barro e de vez e quando a cabeça oca. O santo é um saco vazio que para conseguir parar em pé pediu ajuda a Deus.
O santo não é católico. Diz-se cristão, protestante, batista e evangélico, necessariamente nessa ordem (mas talvez evangélico venha depois de cristão, ele tem dúvidas). Sim, o santo duvida, até mesmo, com bastante frequência, de coisas sobrenaturais. O santo não dança porque é tímido, não porque tema o fogo do inferno. Não bebe muito vinho porque é diabético e porque dá muito sono. O santo chora lendo poemas belos, de amor ou indignação; ouvindo canções, sacras ou não; quando vai ao teatro (muitas vezes tão caro), o santo amolece o espírito e sente-se mais próximo do divino.
O santo admira boas conversas, dispensa a superficialidade quando o assunto é sério, mas odeia cerimônia quando os amigos se reúnem em volta de uma pizza ou da churrasqueira.
Santo é devoto do Cristo, a quem admira e pede proteção. O santo é santista fundamentalista, mas não é torcedor doente, e sim saudável – ave, Millor!
O santo inventa piada, fala palavrão e ama estar ao lado dos irmãos (onde sente na carne o que é ser cristão).
O santo é crente e tem fé, em Deus e até nos homens! O santo não mistura as coisas, não.
Esse santo é meio doido, mas odeia não estar com a razão.

domingo, abril 04, 2010

creio

creio
que feito enlace entre nuvens e ares
devagar a gente se encaixe
como a lua frisada nas águas
e o que é amor,
guardado em fogo sob os mares,
virá em erupção,
iluminando céus e altares.

Páscoa para todos

O feriado de Páscoa chega ao fim nessa noite pós-chuva de outono. Chocolates, bacalhaus, vinho, vatapá, sorvete, bolos. Uma e outra igreja, algumas famílias e pessoas sozinhas se lembraram das motivações religiosas da festa. No mais, filmes cristãos com atores sofríveis pavimentaram nossa via crucis.
Sou protestante, mas tenho pra mim que não é necessário ser cristão para irmos além do coelhinho que entrega guloseimas na Páscoa. A origem da festa, segundo o Antigo Testamento, é um ato de resistência e de empenho pela liberdade, com uma grande ajuda do divino, mas com a fé e a união de um povo escravizado. Há uma série de palavras, símbolos e imagens que deixam a história muito interessante: o sangue aspergido nas portas, o passeio do anjo da morte, antes as 10 pragas, a disputa entre Moisés e os magos egípcios, a trairagem do faraó, que após liberar os hebreus colocou seus soldados no encalço do povo desarmado, o Mar Vermelho que se abriu... a história, de tão conhecida, contestada, ridicularizada, perde sua estética, sua literatura e seu encanto.
Você ainda não crê no Cristo ressurreto? Acha tudo que é religioso uma chatice imposta pelas classes dominantes para manipular o povo iletrado? Tem alergia a chocolate? Pense que sempre é bom celebrar a liberdade de um povo, comemorar a vitória do mais fraco oprimido sobre o mais forte – e desonesto – opressor. Poder fazer isso tendo à mesa família e amigos, e saboreando bacalhaus, chocolates, bolos, vinhos, é um privilégio. E o coelhinho, desde que saiba o seu lugar, não precisa ser barrado na festa!

domingo, março 21, 2010

via crucis

Ele fala, é verdade, eu sinto
Ele ensina, acalanta, eu mimo
Ele sente, outra vez, eu minto
Ele vem, me alimenta, eu vinho
Ele apanha, enquanto cochicho
Ele jorra, é amor, vomito
Ele morre, eu não, respiro
Ele volta e eu não me redimo
Me perdoa, pois é Divino.

sábado, março 20, 2010

Perdido no Rio de janeiro? Eu?!

Em janeiro do ano passado, quando fui ao Rio de Janeiro, pratiquei uma estranha e comum mania de homem.
A cidade era completamente nova para mim – só estive lá antes uma vez, a trabalho, durante um único dia – ou seja: um universo com suas próprias regras explodia em todos os meus sentidos. Não vi arrastão, tiroteio, vítimas de bala perdida, ressaca, muro da discórdia, enchente, traficante - acho que vi um traficante, mas falo sobre isso outro dia, que ele merece. Fiquei quase que o tempo todo entre Copacabana, onde me hospedei, e Leblon, com passagens por Ipanema, Arpoador e esticadas até a Lagoa Rodrigo de Freitas, Lapa, Corcovado, passando por Laranjeiras, Dona Marta, essas coisas clássicas de turista.
Se tudo era novidade, muitas vezes eu não fazia ideia nem de onde estava nem por ou para onde ir, mas ia provando e observando de tudo: a areia fofa e clara das praias, as estátuas de Drummond e Dorival Caymi – é dele mesmo, né? – os bares cheios de gente, as músicas, o ar abafado e denso como um torniquete, as ondas selvagens humilhando turistas desacostumados como eu, o cheiro de mar e de filtro solar, a vista do Arpoador diante de um oceano sem nada mais pela frente – o infinito! o infinito! – os itinerários estranhos de ônibus que vão mas não voltam pelo mesmo lugar, as hordas de vendedores de biscoitos globo (doce ou salgado, o sabor é rigorosamente o mesmo), de mate, de sorvete e guaraná – o capitalismo! o capitalismo! – a vista estrondosa e paralisante que se tem aos pés do Cristo – o delírio! o pavor! o êxtase! – a mistura cultural em torno dos arcos mofados da Lapa após um fim de tarde chuvoso – a diversidade! a sujeira! a bagunça! – as janelas abertas dos apartamentos, a ausência de pernilongos, os cardápios repletos de itens ausentes nas despensas, as pessoas que cuidam um pouco melhor do corpo para não fazer feio no verão – a vaidade! – o povo solícito, sempre disposto e acostumado a dar informações – o orgulho de ser carioca! – o ritmo desacelerado de vida pelas bordas da cidade – a vida! – e, para alguém descansando de uma rotina extenuante, devo dizer, não foram poucos os momentos em que senti, de verdade, a vida pulsando no corpo e na alma – a plenitude!
Agora, toda vez que eu me via fora da proa – perdido, nunca! – como bom homem que sou, morria seco, mas não pedia informação! Ou, para evitar morte trágica e besta em viagem de passeio, solicitava a minha companheira:
- Pergunta lá como a gente faz pra chegar em tal lugar!
É que esse negócio de pedir informação é coisa de mulher, todo mundo sabe...

sexta-feira, março 12, 2010

A tia velha que levou o Glauco

Ando me sentindo adulto demais. Claro que tenho saudades da adolescência, quando as preocupações eram se o dia seria de sol para que pudéssemos jogar futebol na quadra da escola, na pracinha. Também sinto falta da infância, quando tudo se resolveria no futuro, as guerras, a falta de grana para ir a algum lugar legal que eu via apenas nas revistas ou na TV, a Copa do Mundo que voltaria a ser nossa...
Mas me sinto adulto demais porque me parece que tudo ao meu redor é adulto e chato demais. O povo do sindicato que me cobra participação “consciente” na greve faz de tudo pra me convencer pelo medo e pela informação truncada; os políticos não vendem mais a ilusão da “esperança de um mundo melhor”, frase que eu ouvia sempre, em espanhol, na abertura de um programa sobre História; as músicas não têm mais nada de poético, lírico, criativo; as novelas já foram todas assistidas.
Os compromissos profissionais – a aula por preparar, as revisões por fazer, as folgas insuficientes, o trânsito – me tiram a vontade de escrever, roubam horas de lazer. Os parentes moram cada vez mais longe, os amigos tresloucados de outrora cada vez mais sisudos, as festas cada vez mais apressadas ou demasiadamente piradas. Parece que é muito difícil nos suportarmos, a nós mesmos e aos outros, sóbrios. E cada vez mais tem gente partindo...
Mas ainda, de vez em quando, eu conseguia escapar de tudo isso. Ainda há músicas legais, de ontem e de hoje; filmes que me transportam por algum momento da náusea do dia a dia, ainda mais quando no cinema (cabeça, blockbuster, não importa), há os contos, os poemas, as crônicas, a piscina, quando sobra tempo e dinheiro uma viagem, e os quadrinhos...
E que bom que há os quadrinhos! As tirinhas! Hábito adquirido na adolescência, as lia diariamente, nos jornais, vez por outra nas revistas da Circo Editorial, enquanto existiram. Era tudo meio adulto, mas bastante escrachado, uma delícia! Quando Chiclete com Banana, Piratas do Tietê e Geraldão deixaram de existir, ainda havia o consolo das tiras do jornal, que tiveram momentos especiais, de muita criatividade, que ainda me ajudavam, a cada manhã, a me sentir, ao menos por dois minutos, antes de sair para pagar alguma conta ou para bater o cartão do pão diário, nem tão adulto assim. Era uma pequena dose de ar fresco matinal.
Aí vão e matam o Glauco, pai do Geraldão e de tantos outros personagens, escrachado, um moleque de 53 anos, ao menos nas tiras – não o conheci pessoalmente, mas as referências são boas. O mundo ficou mais abafado, mais chato, mais adulto. Agora, se a esperança já não é algo que viva sem o senão, parte da molecagem para suportar a burocracia que nos acostumamos a chamar de vida, desapareceu. Agora, do traço explosivo e desbocado, fez-se o silêncio, frio, de gravata, pólvora e sangue.
Essa morte violenta, parece, é uma tia velha, recalcada e muito chata, que se apressa em nos tirar do quintal quando ainda dá tempo de curtir um pouco a brincadeira.

Trocando de colchão

Ontem eu vi o Paulo Miklos, dos Titãs, do filme O Invasor, saindo de uma loja de colchões, em um conhecido e badaladinho bairro de São Paulo.
Não estou mais na fase de me surpreender vendo gente famosa em situações prosaicas, e nem o artista em questão é um Michael Jackson ou uma Ivete Sangalo em termos de fama – se o assunto for talento as coisas relativizam-se até o infinito – mas vê-lo tão perto deu uma mexidinha em alguma parte da memória, dos sentimentos.
Passei a pré-adolescência crendo piamente que os Titãs eram a maior banda de rock do mundo e da História. Achava aquelas músicas do Cabeça Dinossauro e do Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas o que havia de mais revolucionário, independente, anárquico, político, libertário, inovador e raivoso jamais produzido na face da Terra. Queria ser um deles, tocar algum instrumento, gritar para plateias ensandecidas, falar palavrões, talvez até fumar um baseado, por que não? Achava aqueles caras o máximo! Eles eram o colchão que sustentava os meus sonhos!
Agora, vinte e tantos anos depois, após ver água passar por debaixo da ponte até de trás pra frente, o mundo não me permite mais desejar essas coisas com a mesma pegada de antes, se bem que não é raro me pegar, nos momentos de devaneios mais livres, diante de imensa multidão repetindo refrões de minha autoria – sim, nos meus devaneios todas as músicas legais do mundo são composições próprias – viajando pra levar música engajada, divertida, lírica, tudo ao mesmo tempo agora, para quem quiser ouvir.
Não ouço mais os Titãs com a mesma reverência religiosa de antes – sou devoto da arte que julgo ser boa, de qualquer dimensão ou religião, mas meu credo tem um Cristo e culto mesmo só a Ele – mas não desdenho da banda e ainda, quando rola, repito “porrada nos caras que não fazem nada”, “ratos/entrem nos sapatos/do cidadão civilizado”, “não precisa ser alguém/eu consigo viver sem/armas pra lutar” e outras muitas músicas que admiro. Meu colchão não é o mesmo da adolescência, mas ainda acomoda sonhos que não passarão de sonhos.
Ah, sim, o Paulo Miklos está em muito boa forma física. Nada que vi nele me gerou qualquer tipo de melancolia do tipo “nossa, o cara mais doidão dos Titãs agora tá aí, decadente, comprando colchão”. Vestido de modo jovial sem parecer ridículo, fazendo as coisas do dia a dia sem a menor pose. Não sei nada da vida pessoal dele, mas acho que, não deixando de levar em conta os percalços pertinentes de qualquer história humana normal e divertida, ele é um vencedor. Viveu da arte, viveu de uma brincadeira, vive ainda, e me faz pensar que, mesmo passando um bocado dos trinta – aniversário mês passado, cabelos brancos e aquela coisa toda – ainda posso correr atrás de um sonho ou outro que não seja deixar “tudo em dia”, pra citar outra do repertório titânico. O próprio Miklos, já passado dos quarenta, sem deixar o ganha-pão da música foi investir na carreira de ator, parece que ainda tem a capacidade de encantar, experimentar, ainda consegue encontrar colchões que lhe caibam. O vendo andando livremente pela calçada, me lembrei de outra música, de outra banda, que diz : “Eu sou meu”. E ainda posso buscar colchões que suportem o peso dos meus sonhos sem que arrebentem!

Serra e APEOESP: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come

O governo Serra, ao contrário do que vemos nas propagandas muito enganosas, não valoriza nem de longe a Educação. os salários pagos aos professores são vergonhosos, aviltantes, uma verdadeira humilhação para quem passou anos estudando e obteve uma qualificação específica. A divisão do magistério por categorias coloca toda a classe do magistério numa situação de conflito, cada um vendo o colega como um inimigo pronto para tomar seu emprego, e não como um colega de trabalho. a ideia de que o professor temporário, aprovado em prova classificatória, deverá ficar um ano fora da sala de aula é tão absurda e perigosa que poderá, nos próximos anos, afastar milhares de pessoas da profissão: ora, sem concursos regulares que atendam à demanda da classe, muito menos a necessidade dos alunos, e ainda com a “promessa” de trabalhar um ano, recebendo um salário ridículo, e de ficar um ano desempregado, já que as escolas privadas não absorverão toda a mão de obra excedente (se bem que é impossível que o governo possa manter esse rodízio se continuar aplicando as famosas provas: sempre haverá um descompasso) torna a profissão docente em um “bico”, em complementação de renda, em algo impossível de ser visto como carreira.
Por esse lado, a greve dos professores da rede estadual paulista é mais do que legítima, necessária, urgente!
Por outro lado, a APEOESP, que há pelo menos um ano e meio sabe que o governo pretende aplicar as provas para os professores temporários, passou todo o ano de 2009 sem nada fazer a respeito. Pede, apenas, que os professores não sejam avaliados, mesmo sabendo que o número de profissionais desleixados nessa área, que não cumpre com as mínimas exigências da profissão, é grande demais para ser ignorado. Sugere que o plano de carreira do magistério seja baseado apenas no tempo de serviço, o que não garante, em hipótese alguma, a qualidade do trabalho do profissional e discrimina os novos docentes. Além disso, a recusa às avaliações sugere à sociedade que o professor tem medo de ser, literalmente, posto à prova, e nos força a ouvir argumentos no mínimo bastante questionáveis, como “uma prova não avalia ninguém”, sendo que muitos dos professores que repetem esse mantra mal interpretado de algumas correntes pedagógicas não abre mão de uma avaliação escrita quando o assunto é “fechar as médias” de seus próprios alunos. Não é reivindicado a sério, como todos sabemos ser fundamental, que o professor tenha em sua grade horária um período voltado para capacitação constante, a famigerada “formação continuada” presente em todos os discursos, mas inviabilizada devido à enorme jornada que os profissionais da educação precisam cumprir. Para investir em sua formação pessoal, o professor precisa abrir mão de parte de seus ganhos, que já são bastante escassos.
Também é fato que o governo, ao avaliar o professor, precisa oferecer condições de que ele possa se manter atualizado. Pela deterioração histórica da profissão docente e da própria educação brasileira, pela qualidade péssima de boa parte das faculdades, é impossível cobrar formação adequada dos docentes sem oferecer condições de que o profissional realmente tenha acesso a essa informação. As oficinas pedagógicas precisam ser realmente atuantes, com profissionais gabaritados, precisa ser acessível a todos os professores da rede, os professores precisam frequentá-las não aos sábados e nas horas livres, mas dentro de seu horário normal de trabalho. A avaliação é fundamental para manter a qualidade da educação, mas só é justa após a formação adequada ser oferecida. Plano de carreira baseado apenas no tempo d serviço é praticamente um convite à inércia.
Tem mais.
A alegação do governo de que a greve dos professores não passa de um movimento político é uma aberração. Toda greve, toda manifestação coletiva, é política, e é saudável que seja assim. Causa estranheza um governo que conta com várias pessoas que lutaram e se organizaram contra a ditadura, apelar para um argumento tão alienado e vazio. Da mesma forma, proibir os professores “categoria O” que trabalham sob o tal contrato que não oferece benefícios, apenas obrigações e um compromisso preestabelecido de deixar o estado me 2011, é um ato praticamente fascista, além de anticonstitucional. Todo trabalhador tem direito de fazer greve, em especial o que está sendo profundamente maltratado, como e o caso do professor da rede estadual de São Paulo, seja ele efetivo, estável ou de qualque r outra categoria.
Contudo, constranger, amedrontar, ameaçar ou discriminar o professor que não faz greve, como têm feito alguns militantes da APEOESP, é algo tão arbitrário quanto a perseguição que o governo Serra tem imposto aos professores contratados. Os professores que temem perder seus empregos por conta da cláusula fora da lei que proíbe a greve, não devem deixar de trabalhar e deveriam ser apoiados pelos colegas que estão livres dessa imposição ditatorial. Em vez disso, o argumento da APEOESP é que de que esses professores que se recusam a participar ativamente da greve, por uma razão absolutamente compreensível, estarão todos desempregados ano que vem. Ficamos, os professores da categoria O, entre ameaças de cá e de lá.
Para encerrar, cabe ressaltar que o governo Serra, que finge se preocupar com a qualidade do ensino, mas que no fundo apenas se especializa em maquiar estatísticas e dados oficiais, não leva a sério a educação, pois tem garantida para as classes mais privilegiadas do ponto de vista econômico as escolas particulares e, posteriormente, um bom número de vagas nas universidades públicas – que, se depender dele logo cobrarão mensalidades. Por outro lado, a APEOESP, ao defender, numa generalização absurda, o mal profissional, ao fugir da avaliação e ao repetir um discurso demagógico que transforma o professor em massa de manobra, também não demonstra grande interesse em melhorar a educação do estado. se o único mérito do professor que deve ser levado em conta é o “tempo de casa”, se a avaliação é, para eles, um disparate, não faz sentido cobrar cursos de capacitação exigir melhores condições de trabalho, material didático e espaço de ensino adequado. Daqui a pouco – e tenho a impressão de que isso não tarda nada – pelo que vemos por parte do governo e por parte da APEOESP, não fará sentido ensinar ou aprender...

quinta-feira, fevereiro 25, 2010

ave, samurai

não fosse Leminski
o sol e as andorinhas,
das palavras, coitadinhas
jamais teceriam
os verões e as manhãs
(só os galos de mil esporas
cantariam para muros)

os refrões e os dicionários,
e as rimas, pobrezinhas,
tudo isso ficaria
porcaria sem a gíria
só poesia para otários

mas o polaco
sagaz-sábio
com a espada oriental
vem rasgando madrugadas
doce, ébrio e apaixonado
pula muros
beija galos.

domingo, fevereiro 21, 2010

Veríssimo em grande estilo

Os Espiões faz rir. Precisa de mais?

Gostando ou desprezando, é impossível negar a importância de Luis Fernando Veríssimo na cultura brasileira. Encontrar uma coleção de livro didático no Brasil não tenha ao menos uma crônica do escritor gaúcho é quase impossível; muitos de nós curtimos programas de televisão que estão relacionados a ele; somos muitos os leitores de suas colunas pelos jornais brasileiros e já houve períodos em que o filho de Erico Verissimo foi o autor brasileiro que mais vendia livros no Brasil, desbancando, por exemplo, Paulo Coelho. Aliás, é possível que essa popularidade, via lista de best Sellers e programas de televisão, seja o principal motivo de muitos torcerem o nariz para Luis Fernando Veríssimo. Infelizmente, quando o assunto é cultura, não são poucos os que associam sucesso a falta de qualidade.
É bem verdade que qualquer um que tenha como profissão a produção semanal de uma série de textos não acertará sempre – esta talvez seja a principal inconveniência para o escritor profissional: a demanda enorme de textos reduz a qualidade final do produto. Mas é de se notar que a quantidade dos trabalhos ajuda a firmar o estilo de quem escreve, que é facilmente reconhecido logo nas primeiras linhas, como acontece em Os Espiões, seu mais novo livro – que, aliás, figura em algumas listas dos mais vendidos.
Os Espiões não é um romance. Talvez seja uma novela. Mas eu diria que é uma típica crônica de Veríssimo, “esticada” o suficiente para termos em doses romanescas todas as características do autor. O enredo é o seguinte: um parecerista alcoólatra de uma editora fica intrigado com os originais de um livro – mal escrito, diga-se – a ponto de mover seus amigos de copo em direção à cidade de Formosa, localizada no interior do Rio Grande do Sul, para desvendar alguns “mistérios”. Nada de personagens complexas, esféricas, nada de enredo intrincado. Mas a diversão é garantida.
E é justamente aí que está o sabor da obra. Trata-se de um livro para lermos por puro divertimento. Apesar de alguns críticos o terem vendido como um romance policial, os “espiões” da obra andam aos esbarrões, com suas trapalhadas que pouco produzem. A paródia do gênero policial não tem outra função que a de provocar o riso.
O certo seria dizer que Os Espiões, o livro, a exemplo de boa parte da obra de Veríssimo, é um delicioso livro de humor, com as mesmas tiradas, hipérboles, ironias e eufemismos que caracterizam o autor, para citar algumas das figuras de linguagem que são explicadas nos livros didáticos com trechos de crônicas do escritor.
Na verdade, seja pela editora que lançou o livro – a imponente Alfaguara – seja pelo normal preconceito que paira sobre a facção chata da crítica, dizer que um livro de humor é bom e recomendável é sempre temerário. Essa gente sisuda que afasta o leitor comum da literatura, ao dizer, ou sugerir, que o que é engraçado não tem a “elevação” necessária para ser chamado de “boa literatura”. O próprio selo Alfaguara, acostumado a lançar obras "sérias", parece querer dar um ar mais "acadêmico" a Veríssimo. Ainda que não trate de temas “elevados” e que contenha as fissuras naturais em textos que são “esticados” demais – é notória a falta de “liga” nos momentos definitivos da história, não vou mentir – Os Espiões é uma leitura leve, divertida, saborosa e indispensável, para terror dos críticos de gabinete e delícia do leitor comum e bem-humorado.

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Dois passos adiante

O que tem demais esse tal de Encontro Marcado, que Fernando Sabino escreveu há mais de cinquenta anos? Uma história meio sem história, que vai apenas amontoando episódios na vida de Eduardo, desde a infância e adolescência – eita homem pra falar bem dessas coisas, esse Fernando Sabino! – até a idade adulta – no livro, o personagem não chega à velhice.
Livro meio de artista para artista, que vai mostrando as inquietações de um menino, jovem, homem, que não se contenta jamais com o mundo ao seu redor e sempre busca alguma coisa, que nunca sabe bem o que é. Nessa busca, Eduardo vai fazendo o que nós, os normais, gostaríamos tanto de fazer, mas não podemos, pois não temos alma de artista – e muitas vezes até artista tem que bater cartão ou assinar ponto. Eduardo ganha prêmios com seus textos – um deles recebido das mãos do ministro da Educação – vira campeão de natação, entra para a cavalaria, faz Direito, escreve para jornais, namora belas moças, tem um amigo de adolescência que se suicida, presencia o suicídio de uma prostituta que se atira da janela de um hotel, namora e casa-se com a filha de um ministro, muda-se de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro, onde vira servidor público e faz parte de uma roda de amigos que levam uma vida mais ou menos igual à dele: grandes expectativas, enormes vaidades, casos amorosos rasteiros, adultérios medíocres, bebedeiras vexatórias e quase nenhuma produção artística ou intelectual relevante, nem ao menos ridícula.
Durante todo esse período, Eduardo sente-se incomodado por não fazer nada que, na opinião dele, faça algum sentido. Considera-se escritor, mas suas criações literárias ficaram para trás, nos tempos da adolescência, e seus artigos escritos para jornais ocupam-se sobre o romance enquanto objeto a ser estudado, de maneira teórica, chata, mesmo, mas não chega nunca a escrever um livro. Entre seus amigos temos poetas – decadentes ou que ficam apenas no campo das promessas que nunca se realizam – pintores – que não alcançam destaque algum com seus quadros – jornalistas que não vão além da bajulação das autoridades ou das críticas incipientes, esperneando feito adolescentes.
Nesse ambiente segue Eduardo Marciano, entre as não realizações: entregue à bebida e à boemia, não consegue manter o próprio casamento de maneira saudável, sua mulher engravida, mas sofre um aborto natural – indicador da esterilidade artística de Marciano – seus amigos vão gradativamente se afastando, seguindo caminhos distintos, e o garoto ativo e cheio de energia do início da história vai dando lugar a um homem amargurado, que não completa seus projetos, que não faz questão de nada, que, nas palavras de Antonieta, sua esposa, é um “homem torturado”.
O casamento termina, Eduardo é tomado por uma súbita e arrebatadora paixão não correspondida por Gerlaine. A jovem não parece ter grandes interesses nele, além de mantê-lo sob seu domínio por mero capricho. Antonieta, cansada do hábitos do marido, o abandona, não sem antes manter um caso furtivo com um amigo de Eduardo.
O trajeto e as inquietações do protsgonista, que ficou ainda mais angustiado após a morte de seu pai, com quem mantinha uma relação bastante forte, são de franca decadência, com alguns poucos pontos de restauração, mas que nunca são plenas. Dentre suas dúvidas, é recorrente o questionamento sobre a existência ou não de Deus, já que, apesar da criação católica, Eduardo nunca esteve certo sobre sua própria fé.
Todas as inquietações de Eduardo formam um belo painel do que foi a geração de Fernando Sabino. Ora, nascidos no período entre duas guerras mundiais, após o surgimento das vanguardas europeias e do modernismo brasileiro, num período de “monoteísmo marxista” entre os intelectuais, todas as certezas cultivadas até então, na arte, na religião e no pensamento em geral, estavam em xeque. A sensação que muitos tinham era a de que algo precisava ser feito urgentemente, que o mundo precisava ser transformado, mas nada gerava uma certeza. Entre a grande ansiedade para realizarem grandes feitos e a dúvida sobre qual rumo tomar, muitos se perderam pelo caminho e foram, lenta e placidamente, sendo absorvidos pela sociedade, pelo sistema, pela inércia. Assim, Eduardo criança, autoritário, precoce e impetuoso, virou um homem fraco, sem iniciativa e consciente de sua inutilidade.
As gerações seguintes criaram a contracultura, o rock, clamaram por reformas, pediram o fim dos conflitos armados, lutaram por um mundo mais justo, solidário e democrático, mas acabaram com o mesmo tom de resignação que Eduardo Marciano. Fernando Sabino não se adiantou nas propostas de mudar o mundo, mas previu o marasmo que sucederiam toda a euforia que viria pela frente. Prever o fracasso da geração que ainda estava por vir, adiantando-se dois passos na História, é coisa que nem os maiores charlatões, sem o menor compromisso com a verdade e com a coerência, costumam fazer. É coisa para poetas, artistas, loucos e gênios, como Eduardo Marciano e Fernando Sabino.

domingo, fevereiro 07, 2010

Lágrimas e Letras

Hoje pela manhã assisti a alguns lances protagonizados por Robinho, do futebol de salão, aos sete anos, até jogadas memoráveis na seleção brasileira e no Santos(!). Confesso, com alguma vergonha, que me emocionei a ponto da lágrima dançar na borda das pálpebras.
Apesar do comportamento muitas vezes antipático do atacante – extremamente marrento – como torcedor do Santos que sou, tenho uma dívida com ele: títulos, jogadas de mestre, a volta do orgulho de torcer para o alvinegro praiano, pedaladas, tormento para corintianos, várias exibições de gala.
Claro que todo santista, todo corintiano, todo brasileiro sabe do que Robinho é capaz, mas nos últimos anos estávamos acostumados a ver notícias nada agradáveis sobre o jogador, que de futuro melhor do mundo estava passando para a pródiga categoria das promessas não cumpridas no futebol – vão de jogadores que despontam para o anonimato ao estádio do Corinthians. Robinho brigou em todos os clubes por que passou, badalou, mascarou-se: pedalava, pedalava e caminhava para morrer na praia.
O craque – alguém duvida que ele seja um craque? – resolveu voltar para o Santos(!) porque, segundo ele mesmo, estava muito infeliz dentro de campo e precisava estar “em casa” para voltar a dar show.
O atacante estreou hoje. Começou no banco e quando entrou deixou bem claro que estava fora de forma, lento, sem ritmo. A decepção pairava e eu já me preparava para ouvir provocações sobre o desempenho do jogador – “o triatleta: corre, pedala e... nada!
Numa jogada com Neymar (com quem eu já não contava mais e que agora me enche os olhos a cada partida), mostrou que estava de volta mesmo. Num lance altamente técnico, de letra (de letra!), Robinho fez um golaço, num clássico contra o São Paulo, em um dos goleiros mais importantes da história do futebol mundial, um “tal” de Rogério Ceni. Acho que ele está feliz. Eu estou feliz!
Ao final do jogo, confesso que me emocionei sem o menor constrangimento, a ponto da lágrima não se contentar com a borda da pálpebra.

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

MASCARADA

Você me conhece?
(Frase dos mascarados de antigamente)
- Você me conhece?
- Não conheço não.
- Ah, como fui bela!
Tive grandes olhos,que a paixão dos homens(estranha paixão!)
Fazia maiores...
Fazia infinitos.
Diz: não me conheces?
- Não conheço não.
- Se eu falava, um mundo
Irreal se abriaà tua visão!
Tu não me escutavas:
Perdido ficavas
Na noite sem fundo
Do que eu te dizia...
Era a minha fala
Canto e persuasão...
Pois não me conheces?
- Não conheço não.
- Choraste em meus braços
- Não me lembro não.
- Por mim quantas vezes
O sono perdeste
E ciúmes atrozes
Te despedaçaram!
Por mim quantas vezes
Quase tu mataste,
Quase te mataste,
Quase te mataram!
Agora me fitas
E não me conheces?
- Não conheço não.
Conheço que a vida
É sonho, ilusão.
Conheço que a vida,
A vida é traição.


é do Manuel Bandeira!

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

Fome de letra

Anos atrás, Marcelo Mirisola entrou no mesmo ônibus em que eu estava. Quando disse à pessoa que me acompanhava que aquele era um famoso escritor, o comentário foi:
- Famoso e tá pegando ônibus, uai?
Sim, digo, não, os escritores não são necessariamente abonados, inclusive boa parte dos famosos. Aliás, escritor famoso atualmente é quase uma construção literária: famoso mesmo é o Paulo Coelho, são as escritoras que conseguiram cair no gosto da galera sexualmente curiosa e olhe lá. Entre ganhadores de prêmios Jabuti e APCA, entre acadêmicos imortais, entre roteiristas de filmes célebres, entre autores renomados e dramaturgos descolados, são poucos os que precisariam se disfarçar para ir ao shopping num sábado à tarde. E outra: andar de ônibus não é, necessariamente, prova de fracasso financeiro, assim como ser um famoso escritor não é atestado de competência ou de conta bancária com sustânça.
Leia Mirisola e tire suas conclusões sobre fama, talento, grana. Tenho opiniões sobre ele, sobre a obra dele, mas deixa pra lá.
Agora, se não é pela grana nem pela fama esponjosa das celebridades, por que as pessoas ainda escrevem? De verdade, de fato, juro, isso pra mim é um escabroso mistério...
Possíveis motivos menos nobres: pegar mulher, poder fazer cara de inteligente, ter assunto em mesa de bar, dar entrevista – a segunda atividade mais almejada e praticada por escritores; exceções apenas encorpam as massas – conseguir uns bicos na publicidade, no jornalismo e nas casas de cultura, poder tirar foto fazendo pose de pensador sem soar muito ridículo, ter seu nome nos jornais e revistas sem ser na lista de pensionistas, aprovados em vestibular ou entre as vítimas de catástrofes naturais e artificiais...
Um motivo nobre para escrever? Sentir na carne da alma a ardente ferida provocada pelo arranhão da afiada unha que inquieta os espíritos menos complacentes.
Será que já posso fazer cara de inteligente?

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