sexta-feira, setembro 30, 2011

Dois passos adiante

A precisão histórica de Encontro Marcado, de Fernando Sabino

O que tem demais esse tal de Encontro Marcado, que Fernando Sabino escreveu há mais de cinquenta anos? Uma história meio sem história, que vai apenas amontoando episódios na vida de Eduardo, desde a infância e adolescência – eita homem pra falar bem dessas coisas, esse Fernando Sabino! – até a idade adulta – a história não chega à velhice do personagem.
Livro meio de artista para artista sem ser chato, que vai mostrando as inquietações de um menino, jovem, homem, que não se contenta jamais com o mundo ao seu redor e sempre busca alguma coisa, que nunca sabe bem o que é. Nessa busca, Eduardo vai vivendo o que nós, os normais, gostaríamos tanto de fazer, mas não podemos, pois não temos alma de artista – e muitas vezes até artista tem que bater cartão ou assinar ponto. Eduardo ganha prêmios com seus textos, um deles recebido das mãos do ministro da Educação, vira campeão de natação, entra para a cavalaria, faz Direito, escreve para jornais, namora belas moças, tem um amigo de adolescência que se suicida, presencia o suicídio de uma prostituta que se atira da janela de um hotel, namora e casa-se com a filha de um ministro, muda-se de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro, onde vira servidor público e faz parte de uma roda de amigos que levam uma vida mais ou menos igual à dele: grandes expectativas, enormes vaidades, casos amorosos rasteiros, adultérios medíocres, bebedeiras vexatórias e quase nenhuma produção artística ou intelectual relevante, nem ao menos ridícula.
Durante todo esse período, Eduardo sente-se incomodado por não fazer nada que, na opinião dele, faça algum sentido. Considera-se escritor, mas suas criações literárias ficaram para trás, nos tempos da adolescência, e seus artigos escritos para jornais ocupam-se sobre o romance enquanto objeto a ser estudado, de maneira teórica, chata, mesmo, mas não chega nunca a escrever um livro. Entre seus amigos temos poetas – decadentes ou que ficam apenas no campo das promessas que nunca se realizam – pintores – que não alcançam destaque algum com seus quadros – jornalistas que não vão além da bajulação das autoridades ou das críticas incipientes, esperneando feito adolescentes.
Nesse ambiente segue Eduardo Marciano, entre as não realizações: entregue à bebida e à boemia, não consegue manter o próprio casamento de maneira saudável, sua mulher engravida, mas sofre um aborto natural – indicador da esterilidade artística de Marciano? – seus amigos vão gradativamente se afastando, seguindo caminhos distintos, e o garoto ativo e cheio de energia do início da história vai dando lugar a um homem amargurado, que não completa seus projetos, que não faz questão de nada, que, nas palavras de Antonieta, sua esposa, é um “homem torturado”.
O casamento entra em coma profundo, Eduardo é tomado por uma súbita e arrebatadora paixão não correspondida por Gerlaine. A jovem não parece ter grandes interesses nele, além de mantê-lo sob seu domínio por mero capricho. Antonieta, cansada do hábitos do marido, o abandona, não sem antes manter um caso furtivo com um amigo de Eduardo.
O trajeto e as inquietações do protagonista, que ficou ainda mais angustiado após a morte de seu pai, com quem mantinha uma relação bastante forte, são de franca decadência, com alguns poucos pontos de restauração, mas que nunca são plenas. Dentre suas dúvidas, é recorrente o questionamento sobre a existência ou não de Deus, já que, apesar da criação católica, Eduardo nunca esteve certo sobre sua própria fé.
Todas as inquietações de Eduardo formam um belo painel do que foi a geração de Fernando Sabino. Ora, nascidos no período entre duas guerras mundiais, após o surgimento das vanguardas europeias e do modernismo brasileiro, num período de “monoteísmo marxista” entre os intelectuais, todas as certezas cultivadas até então, na arte, na religião e no pensamento em geral, estavam em xeque. A sensação que muitos tinham era a de que algo precisava ser feito urgentemente, que o mundo precisava ser transformado, mas nada gerava uma certeza. Entre a grande ansiedade para realizarem grandes feitos e a dúvida sobre qual rumo tomar, muitos se perderam pelo caminho e foram, lenta e placidamente, sendo absorvidos pela sociedade, pelo sistema, pela inércia. Assim, Eduardo criança, autoritário, precoce e impetuoso, virou um homem fraco, sem iniciativa e consciente de sua inutilidade.
As gerações seguintes criaram a contracultura, o rock, clamaram por reformas, pediram o fim dos conflitos armados, lutaram por um mundo mais justo, solidário e democrático, mas acabaram com o mesmo tom de resignação que Eduardo Marciano. Fernando Sabino não se adiantou nas propostas de mudar o mundo, mas previu o marasmo que sucederiam toda a euforia que viria pela frente. Prever o fracasso da geração que ainda estava por vir, adiantando-se dois passos na História, é coisa que nem os maiores charlatões, sem o menor compromisso com a verdade e com a coerência, costumam fazer. É coisa para poetas, artistas, loucos e gênios, como Eduardo Marciano e Fernando Sabino.
Há um livro, creio, que é um tanto herdeiro de Encontro Marcado, por retratar com a mesma precisão melancólica deste, o desencanto, dessa vez em euforia, de uma geração: chama-se O dia em que o cão morreu, de autoria de Daniel Galera. Assunto para outro texto.

quinta-feira, setembro 29, 2011

O grito de Clarice e a liberdade do capeta

Já avisava Clarice Lispector: há o direito ao grito. Já aconselhava o apóstolo Paulo: não use sua liberdade para dar lugar ao diabo.
Nem sempre o diabo é o ser das trevas, nem sempre gritar é necessário. Há o diabo de um grito vazio, expressando apenas um “olhem para mim, sou inteligente”, com uma cobertura bem esmaltada de malcriação.  De repente, vejo na internet levantar-se uma horda de gritalhões endiabrados, ora chutando cachorro morto, ora querendo falar mal de alguma personalidade com o intuito de parecer suficientemente descolado, suficientemente sábio. Dá sono e ligeira náusea.
Ninguém é obrigado a gostar dos cristãos, do aborto, do Chico Buarque, dos comunistas, do Marcos Bagno (muita gente nem sabe quem é), do Rock in Rio, da própria mãe, do capitão Nascimento, do Sol, dos dias nublados, de fantasiar-se de personagens de desenhos japoneses, dos homofóbicos, dos eutanásicos, do Reinaldo Azevedo, do Mainardi, de Machado de Assis, Paulo Leminski, de Los Hermanos, do diabo que a alguém carregue. O chato é usar o ataque agressivo, pueril, bullynico, para se afirmar, marcar território.
Não gostam de Chico Buarque, do Tiririca, de Schulman? Querem expressar o desgosto? Façam a partir de argumentos, não de xingamentos. Idem ibidem para tudo que exista no universo ou fora dele, do Google ao Bento XVI, passando por Neymar, a novela das nove, as gírias das ruas, os remédios genéricos, os políticos ou a escalação do Itacuruba.
Desdenhar de um comunista clássico nos dias de hoje é tão imbecil quanto vociferar contra a burguesia opressora. E paro por aqui, para não ser mais um gritalhão dos diabos a chutar cachorro que espuma rancor – que essa coisa deve ser contagiosa...

quarta-feira, setembro 28, 2011

Por que Marcelino Freire não é meu amigo

Não sei se existe um santo padroeiro dos escritores. Caso não haja, voto em um, vivo, que faz milagres vários: Marcelino Freire, defensor dos escritores, especialmente os obscuros, iniciantes, desconhecidos, deslidos, mas também dos consagrados.
O tamanho da camaradagem, da generosidade desse cidadão de três metades inteiras, meio pernambucano, meio baiano e meio paulista, já foi desmedido por muita gente, pelos bares da Vila Madalena, nos saraus e escolas das periferias, pelos eventos literários do país inteiro. Inquieto e carinhoso, Marcelino é o verdadeiro doce bárbaro, preocupado em atender a todos, colaborar com todos, prestigiar a todos.
E é fácil perceber que essa camaradagem retorna para ele em forma de mais generosidade, que ele costuma repartir conosco novamente. Marcelino é o responsável pela Balada Literária, evento que todo ano, ali por volta de novembro reúne vários escritores e artistas em mesas, peças de teatro, apresentações musicais que nos sacodem, estimulam, acariciam.
Marcelino diz que em vez de realizar a Balada Literária com um milhão, a faz com humilhação, convencendo escritores consagrados e demais colaboradores a participar da festa. Nessa, o cara trouxe a São Paulo, em 2007, o escritor angolano Luandino Vieira, para mim o ponto mais de todas as edições da Balada. Este ano o homenageado será o octogenário poeta concreto e muitas outras coisas Augusto de Campos.
Eu, particularmente, já fui alvo das benesses freirianas várias vezes. Nos conhecemos por causa de um texto que escrevi sobre seu premiado livro Contos Negreiros, em 2007. O cara leu o texto na internet, num blog escondido que eu mantinha à época, entrou em contato comigo, nos correspondemos algumas vezes por e-mail e, finalmente nos conhecemos em uma lanchonete da faculdade. Detalhes: o cara fez questão de ir até lá para que eu não perdesse aula e o meu texto nem era uma sucessão de elogios derramados, ficava no limite de ser o contrário disso – mas atestava o inegável talento de Marcelino em lidar com oralidade em seus textos feitos para serem entoados, ainda mais que lidos.
Pouco tempo depois ele foi até a escola em que eu trabalhava, nos cafundós de Interlagos, de graça, falar com duas classes para as quais eu lecionava. De graça, repito. A dona da escola, desavisada, ou desinteressada, não sei bem, sobre a importância de receber em seu arraial um dos recentes ganhadores do Prêmio Jabuti – tudo bem, o Jabuti é aquela coisa toda e Marcelino é muito mais que um escritor jabutizado – sequer designou um dos motoristas da escola para levá-lo de volta para casa. Sequer o recebeu. Ele voltou comigo, de trem.
Depois disso ainda que concedeu o privilégio de assistir a uma de suas oficinas, de graça, que eu não pude acompanhar por estar no meio de uma das minhas depressões profundas – mas as três aulas que vi foram suficientes para repensar muitas coisas sobre a minha própria escrita; o cara também é um professor brilhante.
Ah, ele também foi a grande estrela de um evento cultural que promovemos na igreja batista que eu frequentava, em 2009. De graça. No mesmo dia ele seria homenageado no SESC Pompeia, que reinaugurava seu palco e apresentaria uma peça inspirada em um conto de Marcelino, que mesmo assim foi ao nosso evento para não furar com a gente. Certamente chegou atrasado no SESC, para a nossa sorte.
Marcelino também foi ao lançamento do meu primeiro livro de contos, vindo direto do aeroporto, sem dormir.
Com todas essas histórias, fica muito claro porque não sou amigo do Marcelino: amizade, penso, é a convivência entremeada por cumplicidade, doação. O cara já fez tanto por mim, mesmo com a nossa convivência sendo mínima, e eu não me lembro de ter feito nada por ele. Acho que ele não liga, pois sabe que não é fácil ser amigo de um santo cheio de graça, de São Marcelino, padroeiro do escritor abandonado, do professor que não abandona os sonhos, do leitor inquieto. Ave, palavra.

terça-feira, setembro 27, 2011

Brancos de Alma Negra

Quando Literatura não é questão de pele

Na África colonial, a questão étnica estava intrinsecamente ligada à
independência, bem diferente do Brasil, onde tudo correu mais ou
menos distante – a abolição da escravatura se deu mais de sessenta
anos depois da Independência por aqui! Valorizar a cultura negra,
afirmar-se negro na África colonial, era mostrar-se contrário à
ocupação europeia, ou então, assumir-se como membro de uma “raça
inferior”, apropriada para o trabalho braçal e para ser subjugada
pelos colonizadores, mesmo após o fim da escravidão.
Isso pode soar estranho em tempos de massificação da cultura black,
quando vemos vários artistas negros brilhando na cena pop, mas nem
tanto. Afinal, como bem definiu o escritor Ferréz, no Brasil “todo
mundo quer ser black, mas ninguém quer ser preto”. Ferréz sabe do
que fala: de pele branca, optou assumir-se como negro e por isso
causa espanto em muita gente que desconhece a origem mestiça do
escritor. É que ser ou não negro é algo que transcende a mera
pigmentação, enquanto ser black é seguir um modismo, usar roupas e joias caras, apreciar ou produzir certo tipo de música já suficientemente diluído para agradar à massa, é ostentar um comportamento de celebridade neutra em assuntos
políticos, como bem percebemos nos ídolos da música que posam
para fotos rodeados de mulheres seminuas, dentro de carrões,
exibindo closets abarrotados de roupas caras.
Há quem acredite que essa ostentação funciona como uma espécie de
ação afirmativa na cultura de massa: se os brancos têm direito a ver
seus ídolos ocupando todos os espaços da mídia, comportando-se de
maneira frívola, medíocre, ridícula, os negros também devem ter a
sua “cota” de fama fútil. Na verdade, descobriram que os negros
também consomem, nada mais que isso. Posar como ídolo pródigo, seja
branco, seja negro, seja índio, não é uma opção pelo coletivo, mas
uma afirmação da cultura consumista e exageradamente hedonista. É, sem a menor dúvida, render-se a um sistema que não é bom para quem está alijado dos shoppings e das baladas caras. É precisar subjugar alguém para conquistar seu próprio espaço.
O maior problema da cultura black é que seus ícones não assumem
compromisso com o povo e com a cultura negra, ou com qualquer outro
grupo menos favorecido socialmente; ser black é apenas uma opção
superficialmente estética, midiática e esnobe, sem relação alguma
com a matriz africana, por exemplo. Não basta aparecerem negros na
televisão, em vídeoclipes cheios de luxo e luxúria, para dizermos
que a questão racial ganha espaço. Na música e no esporte, os negros
sempre foram reverenciados, sem que o racismo sofresse grandes
golpes, sem que atletas e artistas negros deixassem de constituir
uma exceção, uma elite. Essa mesma cultura black patrocina
afilamento de narizes, alisamento de cabelos e aberrações como
Michael Jackson, talvez o único caso de vitiligo em que a doença
apoderou-se de toda a superfície de seu corpo com espantosa
regularidade e ainda gerou o gradativo desaparecimento de seu nariz,
que afinou até sumir.
Na África lusófona, as relações eram bem mais difíceis, pois não
havia esse enganoso espaço na mídia de pseudovalorização da cultura
de matriz negra. Se nem os brancos africanos tinham privilégios
garantidos – eram os “brancos de segunda” – ser negro era ter
assegurado para sempre seu lugar nos porões da sociedade; era não
ter acesso a direitos básicos. Valia mais ser um “assimilado”,
provar que possuía mesa, cadeira, copo e cama em casa, ou seja, que
tinha algum nível de “civilização”, e assim poder prestar concursos
públicos, por exemplo, além de possuir carteira de identidade
diferenciada, “superior”. É da natureza do colonizador organizar a
sociedade em castas e alimentar-se da discriminação mais grotesca
possível, incentivando hostilidades, mantendo o povo separado e,
consequentemente,enfraquecido.
Só mesmo um profundo senso de pertencimento ao solo africano e a sua
cultura para, mesmo sendo branco, ainda que de “segunda” – o que era
melhor do que ser “mulato” ou negro – para abrir mão de privilégios
e engajar-se na luta pela independência das colônias, para
empenhar-se na afirmação da cultura local, cultura obviamente
negra, que em nada lembra o black pálido de butique atual que, é
bom salientar, está longe do black power de outros tempos.
Na literatura africana lusófona, há muitos exemplos de escritores
brancos que se alinharam com os negros, com os conterrâneos,
compatriotas. Isso significava participar de grupos clandestinos, de
atividades “subversivas”, correr o risco de ser preso e mesmo de
morrer em combates. Afirmar-se como negro não era apenas uma opção
estética, muito menos uma “questão de pele”: era assunto de vida e
liberdade, sem espaço para demagogia ou dúvidas. Em Angola, dois escritores se destacaram tanto na luta quanto na produção literária: Luandino Vieira e Pepetela. Atualmente, tratam-se de autores conhecidos mundialmente, respeitados,
referências quando o assunto é literatura angolana, reverenciados
por conta da militância anticolonialista que exerceram – é famoso o episódio
em que a União dos Escritores Portugueses foi extinta e o escritor Manuel da
Fonseca, seu presidente à época, preso, por premiar a obra de
Luandino Vieira, conhecido escritor subversivo da colônia, ele mesmo
já encarcerado. Mas, verdade seja dita, muita gente se frustra ao
descobrir que são dois escritores engajados politicamente, competentes, mas... brancos.
Questões étnicas não são facilmente resolvidas apenas por fatores
superficiais, como a pigmentação da pele e o formato do nariz.
Luandino Vieira, português criado nos bairros pobres de Luanda,
conhecedor, portanto, da realidade que recriou em sua obra,
preencheu seus livros com a língua e a cultura local; foi preso por
se colocar a favor da independência e do povo angolano; marcou no
próprio nome, Luandino – originalmente se chamava José Mateus Vieira
da Graça – a referência à terra que adotou como sua e pela qual
lutou para que fosse livre. Será que o escritor merece o olhar cheio
de desconfiança de alguns de seus compatriotas negros? Será que os
doze anos que passou encarcerado, divididos entre a prisão em Angola
e o campo de concentração em Cabo Verde não são suficientes para
deixar claro que Luandino Vieira não é um aventureiro buscando nas
tradições angolanas assunto para elaborar sua ficção e contentar
leitores estrangeiros caçadores de romances exóticos sobre um povo
desconhecido?
A questão racial sempre esteve presente na obra de Luandino, e o
violento racismo aliado à colonização igualmente violenta nunca
foram tratados como mero material estético. Para o escritor, era
muito claro que a independência e o fim da discriminação dependiam
da organização do povo e da manutenção de sua cultura, que em nada
devia à cultura europeia. Em João Vêncio: Seus Amores, a violenta
morte que o garoto Mimi sofre por manter relações homossexuais com
um colega negro, deixa claro que a questão racial não é detalhe e
que não há colonização “boazinha”; antes, discute de uma só vez dois
tipos de preconceito, o racial e o sexual, e deixa o leitor na
dúvida: para os assassinos de Mimi, o que era pior? A pederastia ou
a relação inter-racial? Em Luuanda, a surra que o jovem Zeca Santos
leva de um comerciante branco ao procurar emprego, por ser “filho de
terrorista”, e a humilhação que o mesmo sofre por morar num bairro
pobre, o que o impede de pleitear outro emprego, também
problematizam a questão da discriminação e não deixam dúvidas quanto
ao lado político e ideológico de Luandino Vieira.O tratamento dado à linguagem, o respeito à oralidade, traço marcante da cultura africana, a mistura de línguas locais ao português, técnica aprendida com Guimarães Rosa, a sabedoria popular
tratada com respeito, são outros aspectos que, além de embelezar o
texto do autor, colocam a cultura angolana em relevo, não a
subjugam, antes a enobrecem. Prova disso é a História da Galinha e
do Ovo, onde as mulheres de um musseque (bairro pobre), após
resistirem às investidas de várias personagens que representam a
intromissão do estrangeiro, conseguem, sozinhas, resolver a demanda
sobre quem seria a verdadeira dona de um famigerado ovo. Nem o colonizador, nem a polícia repressora, nem a igreja católica, nem o judiciário
corrupto, nem o dono das cubatas (casas) puderam, quando as mulheres
se uniram, deixando questões secundárias de lado, dominá-las,
enganá-las. A saída é pelo coletivo, pelo bem comum, pela
identificação, pela solidariedade.
O escritor Pepetela, também empenhado na luta pela independência
angolana, levou para a literatura a luta desigual e valente dos
angolanos contra o imperialismo lusitano e, depois, os horrores da
guerra civil que rachou o país e vitimou milhões de pessoas durante
décadas. O autor de As aventuras de Ngunga, história de uma criança
que acabou envolvida na guerrilha angolana, também foi vítima das
mesmas desconfianças que Luandino. Em seu livro A Geração da Utopia,
Pepetela mostra com bastante clareza os problemas por que os
brancos engajados na libertação de Angola passaram, representados
na personagem Sara, estudante de medicina que, frequentando a Casa
dos Estudantes do Império – local que agregava estudantes oriundos
das colônias portuguesas em Lisboa, incluindo o já independente Brasil – participava das reuniões que tramavam contra a ditadura salazarista e a colonização dos países lusófonos africanos. Em dado momento da história, quando os africanos residentes em Lisboa preparam uma fuga para a França, de
onde pretendiam organizar a resistência, Sara quase fica para trás,
apesar de todo seu engajamento pela na causa, apenas por ser branca,
enquanto seu namorado, completamente alienado, tem lugar garantido
justamente por ser negro.
Valorização da etnia e luta pela independência
andavam de mãos dadas, ao ponto de, quando algum branco se
empenhasse pelas causas da colônia, gerar grandes desconfianças. Um branco angolano podia ser visto por muitos como alguém sem
pátria, ou representante infiltrado do império, por mais que suas
atitudes provassem o contrário.
Ainda em A Geração da Utopia, aparecem os conflitos entre os negros de tribos diferentes – o famoso tribalismo, que não tem relação alguma com
músicas alegres de compositores brasileiros – e a total alienação de
alguns angolanos negros, indiferentes à situação política de seu
país, além da mudança de postura de personagens que preferiram, ao
longo da história, deixar a luta coletiva de lado para se empenharem
na busca de benefícios pessoais, traindo seus ideais. Detalhe:
Sara, a estudante e posteriormente médica branca, nunca deixou de
lado seus ideais da juventude.
A Geração da Utopia talvez seja a grande epopeia angolana, pois além
de ser uma história do coletivo, e não de simples trajetórias
pessoais, mostra com clareza um dos períodos mais importantes da
História recente de Angola, sem deixar de lado questões delicadas,
como o já citado tribalismo e a mudança de postura de alguns que se
tornariam os principais políticos do país, mantendo um discurso
progressista e um comportamento completamente burguês, no pior
sentido da palavra. O romance, na verdade, termina num tom bastante
pessimista, com negros que agem como brancos racistas, humilhando
seus pares, e ocupados em enriquecer às custas da parcela ingênua do
povo.
Pepetela, assim como Luandino, tem o mérito de falar sobre o povo
angolano não como um grupo fraco, dependente da ajuda externa,
tampouco como pessoas acima do bem e do mal, sem que, com isso,
diminua a importância da discussão étnica, central em boa parte de
suas obras. Aliás, as personagens desses dois escritores são, acima
de tudo, humanas, e trazem para o leitor a discussão racial com
arte, verossimilhança e rara competência, sem espaço para
maniqueísmos. E tudo isso porque ambos tomaram para si não a
estética angolana, mas a causa do povo angolano. Antes de serem
artistas, Pepetela e Luandino Vieira são cidadãos angolanos e
brancos de alma negra.
No Brasil, o escritor branco contemporâneo que mais se destaca pelo ”negrume” de suas palavras, especialmente pelo seu livro Contos
Negreiros, é Marcelino Freire. Certamente influenciado por Pepetela
e principalmente por Luandino, Marcelino aprimorou a transcriação da
oralidade no texto escrito, no conto que é feito para ser
declamado, e deu voz a personagens negras praticamente de carne e
osso, problemáticas, sofridas, algozes, vivas, nada maniqueístas.
Marcelino Freire é, salvo engano, o primeiro escritor brasileiro que
traz claras marcas da literatura africana, sem estereótipos, em seu
trabalho – basta ler o conto Nação Zumbi para perceber claramente
essa influência. Nele, vemos o Brasil voltando à África não como
país forte e soberano a caça de escravos, mas em busca de emprego e esmolas para diminuir a miséria que nos assola do lado de cá.
É pena que justamente do lado de cá do Atlântico, escritores
como Manuel Rui, Mia Couto, Noêmia de Souza, Ondjaki e tantos outros – independente da cor da pele – alguns até conhecidos, sejam vistos por boa parte do público mais como algo exótico e menos como literatura – talvez a exceção seja Mia Couto – e ainda não penetrem em nossa cultura a ponto de se tornarem
influência em nosso meio. A perda, certamente, é muito maior para
nós do que para eles, que além de produzirem literatura de primeira,
conhecem bem o que é feito por aqui, seja por brancos, seja por
negros, seja por mestiços – importa mais a arte e o engajamento na
causa certa do que a cútis, não é mesmo?

segunda-feira, setembro 19, 2011

O escritor, o mercado e a torcida

Um dos Encontros de interrogação de 2011, evento promovido pelo Itaú Cultural com uma série de escritores discutindo “coisas da literatura”, foi dedicado à desbastada, mas pertinente, questão do mercado. Participaram da conversa três prosadores e um poeta, renomados, premiados. Tudo foi bem estranho, pois a sinceridade dos debatedores não impediu um festival de meias verdades.
O poeta Frederico Barbosa (vale ressaltar que as opiniões dos escritores passaram pelo filtro da minha percepção; nada, aqui ou no mundo, é ipsis literis): disse que as editoras são monstros capitalistas que corrompem a literatura, publicam sem critérios, por favores pessoais, amizades venenosas e interesses espúrios. Luiz Ruffato, escritor premiado, curador de editora, organizador de antologias, jurado de concursos, prefaciador, orelheiro, palestrante etc., sempre gostou de dizer que vive da literatura – não de direitos autorais – e falou que adora o capitalismo e a democracia, pois a combinação de ambos permite ao povo ter acesso a bens de consumo, livros inclusive. Ruffato também lembrou – como sempre faz – que sua formação é de torneiro mecânico, filho de analfabeta e semianalfabeto – dessa vez não falou que o pai era pipoqueiro –, que em sua casa não havia livros e que em sua cidade natal apenas a elite tinha acesso a livros. Carola Saavedra, escritora de destaque, ainda jovem, lembrou que a literatura não é uma “arte barata”, pois a formação do escritor, que precede qualquer linha escrita ou pensada, custa caro e “alguém pagou” por isso. Também falou que o fato de começar sua carreira publicando por editora de prestígio não deve causar espécie, pois sua obra foi precedida por muito preparo. Falou ainda do peso das editoras grandes e que é muito fácil publicar hoje em dia: difícil mesmo é ser lido.
Ronaldo Correia de Brito, respeitado escritor refinado e premiado, falou da necessidade de se criar ardis para que a literatura alcance o seu público, e lembrou que é necessário construir canais para o escritor encontrar o seu leitor, e um desses canais – o mais óbvio, pelo menos – é a venda de livros.
Ninguém mentiu e acreditamos na sinceridade de todos. O que foi estranho, então?
Frederico Barbosa condenou ao inferno o escritor profissional, que vive de suas letras, e ignorou que um livro, para ser feito, precisa do trabalho de profissionais. As editoras, monstruosas ou não, precisam lucrar para continuar a produzir, e produzir inclui literatura essencialmente comercial, tsite mas duramente verdadeiro. Além disso, mão de obra especializada precisa ser paga: ilustradores, revisores, diagramadores, editores, o motorista da van, tudo custa dinheiro, não podem trabalhar apenas por amor às letras.
Carola Saavedra, ao afirmar que publicar é fácil, não conseguiu ver muito além de sua freguesia. Há um caminhão de pessoas que ainda convivem com aquelas cartas de rejeição padronizadas das editoras, sem saber se os seus originais foram realmente lidos. Pagar para publicar pode até ser uma alternativa, mas não serve para muita coisa além de reunir os amigos e tirar umas fotos, enfeitar o currículo ou afagar o narciso particular. Por outro lado, publicar por editora de renome para aparecer no jornal e depois ver seus exemplares mofando nos fundos das prateleiras de livrarias, escolas e bibliotecas, aguardando que um dia alguém vá até eles e entenda o sentido da vida, é romântico demais, pragmático de menos e bastante conformista. É preciso encontrar o leitor, mas também é preciso parir o leitor - e eu acho curioso que boa parte dos escritores fale de subsídios, de vendas de livros, mas não fale da formação de leitores, e muitos sequer se interessam pelo assunto.
Ruffato, ao elogiar o capitalismo e a democracia – numa retórica muito semelhante à de empresários da área da comunicação – não levou em conta que publicar, vender, quase sempre para programas governamentais de abastecimento de bibliotecas, ou, para ser preciso, de depósitos de livros embolorados, não significa que o número de leitores está aumentando. Devemos celebrar a liberdade para escrever sobre o que estivermos a fim e com as motivações que escolhermos, seja dinheiro, amor ou besteira, mas o capitalismo por si só não é capaz de agir no âmbito social, tampouco busca a justiça. Mas, na verdade, ao empresário do ramo editorial, abraçado ao capitalismo – nem sempre à democracia – se o dinheiro está entrando, beleza.
Ronaldo Correia de Brito, mais comedido que Ruffato e Barbosa, e menos constrangido que Carola (ou, pelo menos, mais desenvolto diante do público), usou de sua erudição com sabedoria, buscando aplainar os ânimos, mas pareceu não levar muito em conta a questão da formação do leitor. Como é médico, a carapuça do “vendeu-se ao mercado” nem de longe lhe serviu, o que é bom. Mas nem todo escritor teve sua sorte profissional: alguns, ai de nós, só sabem mesmo é escrever ou, pior ainda, lecionar! Aí, ao problema do escritor soma-se a questão da situação dos professores, e, nesse caso, fica difícil seguir escrevendo sem sentir aquele travo amargo entre a língua e o céu de enxofre da boca.
Frederico falou muitas verdades, mas ele próprio é um cidadão que vive da literatura. “Acusar” alguém de tirar seu sustento do meio editorial é estranho e injusto, a não ser que houvesse alguma informação extra na manga que não foi sacada. Também ficou a impressão, ainda que esta não tenha sido proposital, de que todo escritor publicado é um vendido, ou mau-caráter, ou tem uma dívida sexual com alguém. Infelizmente, e ainda não podemos fugir desse fato, publicar é, sim, uma chancela; por uma editora que tenha algum respaldo, mais ainda. Contudo, só a miopia justifica a afirmação de que todo escritor talentoso terá seu espaço no meio editorial. O caminho é tortuoso, complicado, tem, sim uma boa dose de amizade e troca de favor, e furar as relações já estabelecidas é mais difícil do que escrever pentalogias.
Porém, podemos, devemos buscar outros canais de contato com o leitor, e se conseguirmos verdadeiramente romper com o círculo vicioso das editoras, será um brilhante milagre – ou uma verdadeira tragédia, nem dá pra saber ainda. Não basta jogarmos um texto na internet, como é o presente caso, para encontrarmos nossos interlocutores; há uma cruel batalha por espaço tanto na rede quanto nas estantes. O escritor, o poeta, não são seres acima do restante da humanidade, mas têm necessidades especiais: de ócio criativo e de encontrar o seu público.
Debates entre escritores, ainda mais em eventos de expressão, sofrem de um mal endêmico: sempre haverá quem jogue para a torcida, preocupado em agradar a alguém. Tanto é verdade, que o clichê “ninguém pode dizer o que é bom em literatura” foi usado simultaneamente por pessoas que discordavam entre si, querendo, aliás, dizer coisas opostas.
De concreto, por ora, apenas a triste constatação de que algo vai mal, mas há muita gente se dando bem.

quinta-feira, setembro 15, 2011

Machado de Assis e o Zé Batidão

A crítica machadiana e a literatura marginal periférica


Ensaiando
Gênero textual não tem receita; ensaio, menos ainda. Não explicaremos o que é ensaio, não faremos ensaio sobre ensaio. Excesso de metalinguagem dói.
Lemos Adorno: mais confusão. Percebemos apenas, se percebemos bem, que ensaio não é texto científico, nem gênero literário. Adorno nos atordoa.
Em poucas palavras: ensaio, para nós, é preparação, tentativa, experiência. Nele inventamos, erramos, tudo pode virar outra coisa: podemos mudar de ideia, de rota; no ensaio, queremos entender e compartilhar opiniões e dúvidas.

Entre a ABL e as quebradas
Recentemente, o professor Antonio Candido elogiou, na FLIP, a crítica literária atual, empenhada em estudar autores não só vivos, mas em plena atividade. Para Candido, criticar clássicos cômodo, pois já existe um caminho muito bem pavimentado por outros estudiosos. O crítico que vai a Machado de Assis, por exemplo, terá farta fortuna crítica ao seu dispor e apenas lustrará pesquisas alheias. Já os autores em plena atividade carecem que estudiosos arrojados se debrucem sobre sua obra. O professor Antonio Candido tem razão. Mas é preciso levar Machado de Assis ao Bar do Zé Batidão.
É pouco conhecida a produção crítica de Machado de Assis, exceto pelos artigos sobre O Primo Basílio e os ensaios curtos Instinto de Nacionalidade e Às Novas Gerações. Ideias críticas são mais delimitados no tempo, precisam ser sempre complementadas, enquanto as obras literárias já chegam prontas – o que não lhe garante perenidade. A crítica se encaixa ainda mais precisamente na metáfora de João Cabral, do galo tecendo a manhã. E ainda há os rodapés, que graças a Deus não são obrigatórios em ensaios: o rodapé é o pé de galinha da literatura.
Machado não exerceu a crítica por toda a vida, mas nunca abandonou a reflexão literária: apenas passou a exercê-la dentro da ficção. Gustavo Corção afirma que Machado tinha um espírito crítico por excelência; logo, não deixaria jamais de refletir sobre o seu próprio oficio e sobre seus pares. Com o tempo, conquistou maior autonomia para opinar, na literatura sobre literatura, sem os dissabores que o crítico tradicional experimenta.
Uma das preocupações machadianas era a formação entre nós de uma literatura verdadeiramente nacional, para além dos modelos europeus adornados com um índio aqui, uma floresta ali. Para tanto, é necessário conhecer muito bem a realidade local e não cair no ufanismo ingênuo. Machado tecia elogios afetuosos a Basílio da Gama, autor do Uraguai, talvez o primeiro poema de matiz local – mas não genuinamente nacional, por haver uma porção a mais de Europa no texto que a necessária.
Assim como as grandes obras literárias, alguns textos críticos também têm algo a ensinar em seu tempo e às gerações futuras. Na crítica machadiana se destacam a valorização da profissão do crítico, os principais vícios dessa ocupação, e o respeito às convenções, um ainda que um tanto exagerado para os padrões atuais. Suas reflexões ainda têm algo a nos dizer, desde que consigamos passar por frases como “a musa emboca a tuba”, mais uma infinidade de “musas”, “capitólios” e congêneres. A crítica não pode ser negligenciada
A crítica pode ser desnecessária enquanto o escritor trabalha (ficar preso a convenções no ato da criação é um equívoco), mas é fundamental quando a obra circula. E a crítica não pode ignorar a obra. A literatura marginal periférica é um fato: seus saraus talvez sejam o fenômeno cultural mais surpreendente surgido nos últimos anos. Mas ainda não há quem verdadeiramente se disponha a estudar sua produção; do ponto de vista literário, a literatura marginal periférica é um fenômeno sociopolítico.
É preciso encontrar quem deseje entender os mecanismos dessa literatura, o que será bom para o leitor, que terá mais subsídios para sua leitura, e para os autores, que serão levados mais a sério e poderão refletir sobre as conexões e possibilidades de seu trabalho. Com uma crítica forte, a literatura marginal periférica (chamemos de LMF?) pode permanecer e cumprir seu papel.
Em sua ficção, engajado ou desencantado, Machado de Assis sempre viu na literatura um espaço de ação e observação política, mas nunca deixou de valorizar a questão estética. Por não ser panfletário, há quem afirme que o autor de D. Casmurro era alienado e elitista. Num outro extremo, transformam sua obra em uma panaceia intelectual: ele era afrodescendente, marxista, freudiano, liberal, niilista, nietzscheano, cristão, agnóstico, seria petista e tucano se vivo estivesse. Memórias póstumas Brás Cubas; serve para condenar e elogiar o sistema de cotas nas universidades.
A verdade é que não é fácil afirmar que Machado era um intelectual engajado na defesa dos oprimidos – escravos, pobres, mulheres (com estas há um pouco mais de condescendência, nos parece) e injustiçados em geral; mas também não podemos dizer de forma alguma que se tratava apenas de um cínico – na pior acepção da palavra – preocupado com sua trajetória pessoal. O contraditório Machado, ao mesmo tempo que tinha nítidas preocupações com o coletivo, também desenvolvera uma grande desilusão com a humanidade. Daí o ceticismo para com as “boas intenções” e uma boa dose de comedimento diante de alegrias rasgadas. A primeira lição do Bruxo para os adeptos da LMF é a de não ser óbvio, pois a sociedade também não é.

Literatura para quê?
O mais engajado dos escritores, que vê a literatura como veículo (não como fim) e que despreza a arte pela arte, caso seja minimamente zeloso de sua obra, refletirá e estabelecerá parâmetros estéticos. A crítica deve ser exercida por quem a ama; sem rancores, com zelo; sem absolutismos, com generosidade; sem bajulações, com honestidade.
Muitas vezes, o artista questiona a utilidade de sua própria arte, e mesmo quando brada “direito à inutilidade” estabelece um critério.Ao formular um juízo sobre si mesmo, o artista se torna um crítico, seu e dos pares, não necessariamente competente ou honesto. Se não considerar seu trabalho pertinente, o esquece e vai prestar concurso público, tomar aulas de pilates. Nunca é impróprio avaliar, e a primeira análise deve ser do próprio autor.
Literatura brasileira para quê? No século XIX a pergunta era necessária; achar a resposta, um imperativo: o país jovem precisava se afirmar. Sabemos que quatro séculos de colonização não desaparecem em um punhado de verdes anos de independência. E a língua, matéria-prima da literatura, é também a principal, inevitável herança deixada pela ex-metrópole. Sem poder abrir mão do idioma, nem da cultura que, costurada com outras, formou a nossa, o rompimento completo e absoluto com Portugal é impossível. Eça de Queirós, Camões e Fernando Pessoa são um pouco nossos, pois compartilhamos a mesma língua, assim como os africanos António Jacinto, Mia Couto, Noémia de Sousa e Luandino Vieira. Os primeiros não devem ser lidos como padrões a serem seguidos; os segundos, não podem continuar como uma “curiosidade”. Todos são escritores que merecem circular por entre nós, pela humanidade como um todo. Trocar uns por outros é nos mutilarmos a todos.
Machado de Assis proclamava a urgência da consolidação da nossa literatura, trabalho para várias gerações. O idioma, a alimentação, as roupas e tudo o que chamamos genericamente de “cultura”, cria a identidade de um grupo. A literatura é parte do que somos, e está encravada e nossa língua, nossa forma primária, fundamental de expressão. Mas o Brasil é formado por muitos grupos imbricados, logo, nada mais natural que existam muitas culturas – e literaturas – imbricadas, e que estas circulem sem restrições ou preconceitos.
Assim como não podemos afirmar que toda a obra machadiana é excepcional apenas por ser de Machado, não é verdade que todo verso cravado nos saraus de periferia é “da hora”. À crítica séria, cabe “guiar o gosto”, tanto em Machado quanto no bar do Zé Batidão. Para Machado, uma literatura brasileira forte deve ser nosso espelho – não necessariamente “realista”, a não ser na concepção de Lukács – do que somos. Românticos e modernistas pensavam assim; realista, em certa medida, também. Muitos fracassaram pelo excesso de idealismo, pela verossimilhança dilapidada ou pela demasiada crueza da elaboração.
Se na literatura do século XIX um dos problemas era o decalque da arte estrangeira, na LMF gritam os excessos de “retratos da realidade”: a ilusão modernista de “se escrever como se fala”, com muita gíria e pouca elaboração estética, os temas monocórdios, as tramas pouco criativas, (luta de classe, racismo, autoafirmação estereotipada, idealização das classes populares) e o desprezo pela “academia”, pelas “elites”, estão em toda parte.
Machado censurava a repetição de fórmulas estrangeiras, e acreditou, com variações de intensidade ao longo da vida, que a arte, além de retratar a sociedade, pode ajudar a moldá-la; arremedos de tendências estrangeiras colaboram para que o país também seja um arremedo. Clichês e repetição de temas levam à inércia, tornam escritor e leitor pusilânimes, não geram reflexão ou mobilização conscientes, acolchoam a área de conforto. No máximo, geram palavras de ordem.
Românticos, via de regra, conheciam a tradição: rompiam ou se identificavam com seus antecessores com conhecimento de causa; alguns marginais seguem o mesmo caminho: a maioria, no entanto, pensa que está fundando algo totalmente novo; aos críticos que realmente se dedicam a analisar suas obras, respondem que não devem ser avaliados com a mesma régua burguesa que mede a “elite”. Há cerca de um século, argumentos semelhantes foram usados por vanguardistas burgueses. Se há boa dose de razão por parte dos marginais, é fato que há rudimentos da literatura que perpassam qualquer tendência; e mais: quando entendemos o projeto do autor, podemos avaliar se ele obteve êxito ou não. Quando o projeto é obvio demais, a crítica, mesmo aligeirada, acaba acertando com facilidade.


Crítica para quê?
Já respondemos antes, nas palavras de Machado: para guiar o gosto. Mas guiar o gosto nos parece algo demasiadamente autoritário. Machado e seus narradores acreditavam na tolice do leitor; nós, na do consumidor.
Leitor e autor alegam não precisar de intermediários e que a crítica é um amontoado de opiniões pessoais motivadas por inveja e incapacidade criativa. O mito de que todo crítico é um artista frustrado ainda reina entre escritores mal avaliados. É verdade que há muita “crítica” que não é séria, aprofundada ou responsável. Mas também há muito “escrotor” – toda área tem seus picaretas.
Na verdade, a crítica especializada, hoje renegada a universidades, o que traz vantagens e inconvenientes, sempre foi parte do sistema literário. Análise séria e aprofundada não se reduz a comentários superficiais, mas, como diz Machado de Assis, procura alcançar “o espírito da obra”. É um trabalho que exige dedicação e deve servir de ferramenta para os interessados em literatura, especializados ou não.
Crítica não é catálogo ou fábrica de rótulos: ela aproxima autores, promove debates, indica trilhas a serem percorridas ou evitadas – a depender do que o leitor procura – e denuncia golpes, não de modo autoritário, mas como via de acesso ao conhecimento. Crítico não é guia turístico literário, mas alguém que revela as possibilidades. Criticar é ensaiar.
É nesse ambiente que a literatura se desenvolve de modo sadio. Sem que as ideias circulem, cada um fica refém de seu próprio gueto, todos são reféns de jogos publicitários e guerras de egos. O escritor não pode ter pudor de ver sua obra dissecada em público: havendo valor, ela sobreviverá.
A crítica evita que a arte seja diletantismo, fetichismo encerrado em bares e gabinetes. Autores que encastelam seus livros se privam de evoluir, têm visões distorcidas, normalmente exageradas, sobre a própria obra. Mas, como essa crítica se forma?
É evidente que a crítica não pode ter uma única voz. O autor de Provérbios afirma que “na multidão de conselhos mora a sabedoria”. Opiniões antagônicas podem ser complementares. Consenso e silêncio é que não colaboram.
Machado de Assis deu boas lições a esse respeito. Na verdade, mais do que observações sobre obras da época, algumas já superadas – observações e obras – chama a atenção a minúcia com que trata o próprio trabalho de análise literária. O texto mais rico a este respeito é O Ideal do Crítico, no qual Machado deixa claro que o trabalho do escritor não é estanque, mas evolutivo: ele não nasce pronto, não está acabado na primeira obra – salvo os verdadeiros prodígios – e precisa de auxílio para definir seu projeto literário. Vivendo apenas de aplauso ou indiferença, a autoanálise fica bastante prejudicada.
É fácil discordar da crítica desonesta e/ou despreparada; mas devemos saber que o crítico honesto e competente sempre anda um pouco atrás do artista, precisa de um tempo de maturação para entender a obra; rotular de antemão não é interpretar: é impor dogmas.
No século XIX, os modelos artísticos eram menos maleáveis e, consequentemente, a vida do crítico, razoavelmente mais fácil. Hoje, maneira de pensar a arte é mais problemática para críticos que para artistas. As novidades nem sempre são assimiladas prontamente e o descompasso leva anos para se ajustar – isso quando se ajusta. O distanciamento temporal é um grande aliado do crítico: as fortunas críticas transformam qualquer “citador” num belo exemplo da Teoria do Medalhão. Entretanto, obras contemporâneas não precisam aguardar no limbo durante décadas compreendidas. Paciência, apuro, estudo, além de respeito pela obra são indispensáveis para o bom trabalho do crítico; respeito ao autor da obra é sinal de boa educação e não há d atrapalhar.
Para Machado, três defeitos prejudicam fortemente a crítica: indiferença, camaradagem e ódio. Mais de um século depois, a trinca permanece. Muitos escritores, não sendo críticos profissionais, resenham obras alheias, distribuindo beijos e ferroadas. A relação de interdependência entre escritores, editores, livrarias, casas de cultura, programas de fomento à arte, também interfere. O engessamento azedo de alguns críticos, mais ainda.
As universidades, em tese, são mais imunes a essa, digamos, promiscuidade literária, mas nem sempre: há professores que pesquisam e escrevem e traduzem e editam, num círculo vicioso semelhante ao trinômio “miss, modelo e atriz”. Não que essas atividades sejam necessariamente excludentes, mas juntas exigem um exercício de autonomia e liberdade, além de um talento, nem sempre presentes. Não há um Otávio Paz e um Haroldo de Campos em cada campus.
A indiferença pode aparecer quando o crítico rejeita toda e qualquer produção de um estilo, por julgar aquela escola sem valor. São os que, por exemplo, ignoram os saraus de periferia, os letristas de rap, os compositores populares, o cordel. A geração mimeógrafo foi tratada assim em um passado relativamente recente e hoje muitos de seus representantes são publicados em edições especiais, de luxo, coleciona teses a seu respeito.
A camaradagem, doce veneno que impede a sinceridade, transforma qualquer draminha de Leonardo Pataca em angústias dignas de um Hamlet. O aplauso inconsequente faz o escritor se embriagar-se de elogios e lhe rouba a capacidade de refletir.
O ódio é cego para os talentos do inimigo – inimigo, sim! A adesão a estéticas distintas, relações pessoais problemáticas, opções ideológicas diferentes e até por origens sociais antagônicas alimentam o ódio, impedem a reflexão engordam a mesquinharia.
Por tudo isso, Machado aconselha que o candidato a crítico não se dedique a outro ofício; escritores críticos carregam peso extra. Mas críticos “puros” não estão livres da indiferença, do ódio ou da camaradagem, bem sabemos.
A LMF carece de críticos que respeitem essa estética e que a plantem mais fortemente no sistema literário. Precisa olhar para trás, para o que já foi construído na literatura brasileira, e se enxergar como parte da manhã que vem sendo tecida desde lá de trás, e que continuará adiante. Manhã de muitos galos, poetas, romancistas, contistas e críticos.

O Crítico dentro do ficionista
Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881, marca o início da maturidade machadiana. Nessa época, o escritor teria perdido “todas as ilusões sobre o homem” e o sinal dessa “epifania ao contrário” é o surgimento do defunto autor. Nessa fase, a preocupação com a literatura brasileira não desapareceu, mas acentuou-se e refinou-se na ficção de Machado.
Em 1881, Machado já não atuava como crítico: era ofício de muitos dissabores. Quando analisou O Primo Basílio, por exemplo, sofreu muitos ataques e precisou até escrever um segundo artigo se explicando. Muitos de seus leitores sequer entenderam a opinião de Machado; outros talvez tivessem razão em seus comentários; o desgaste era sempre grande. Machado, então, mascarou suas opiniões na ficção – ainda que fossem máscaras com fendas.
Logo nas primeiras páginas de Memórias, o crítico: Brás Cubas, escritor estreante, se compara ao Moisés do Pentateuco. Ambos, Cubas e Moisés, teriam narrado a própria morte.
Brás Cubas é um narrador ambicioso, mas não consegue escrever suas memórias com a criatividade e o ineditismo que desejara – todos os seu projetos fracassam ao longo do romance. Alardeia que contará sua história a partir do final, percebe incompetente para tanto e, de modo “genial”, “une as duas pontas da vida”, passando do funeral para o nascimento e abraça a cronologia tradicional.
No primeiro capítulo de Memórias Póstumas o recado do crítico é claro: há conflitos entre a vaidade e a capacidade de certos escritores. Comparando-se a Stendhal, Xavier de Maistre e Lawrence Sterne, o narrador prevê o fracasso de público do livro, mas coloca-se ao lado de grandes escritores. A “pena da galhofa e a tinta da melancolia” seriam refinadas demais para os leitores da época.
Machado reclamava da crítica despreparada e dos autores mal-formados, arrogantes, que almejavam figurar entre os grandes, mas produziam trabalhos pífios.
O prefácio de Memórias Póstumas de Brás Cubas também serve como uma espécie de “poética”: entre melancólico e galhofeiro, o autor passaria a escrever menos preocupado com a reação do público do que com a qualidade que pretendia alcançar – contudo, suas histórias ainda continham elementos caros ao público em geral e ao feminino em especial: amores impossíveis, adultérios, moças casadoiras etc. Há nesse novo Machado um projeto literário e o olhar atento para o público.
Memórias Póstumas de Brás Cubas é considerado o marco da segunda fase machadiana, mas alguns contos da primeira fase já indicavam o que viria: A chinela turca, de que falaremos a seguir, 1875; O machete, que veremos mais adiante, de 1878. O primeiro é uma brincadeira com clichês da literatura romanesc;, o segundo, uma arguta observação sobre o conflito entre popular e erudito.
Em A chinela turca, um jovem bacharel apaixonado é impedido de ir ao baile e se encontrar com, a sua amada e se vê obrigado a ouvir “um dos mais enfadonhos sujeitos do tempo”, major aposentado e diletante sem talento, ler um drama que escrevera.
A obra é maçante e confusa, de um “romantismo desgrenhado”; a inspiração viera após o inseguro autor assistir a uma peça “ultrarromântica”: ambas são passionais, de forte apelo popular; personagem idoso e admirador da escola romântica desconstrói a ideia de que os românticos são todos muito jovens.
A falta de originalidade do drama é denunciada de cara:
Nada havia de novo naquelas cento e oitenta páginas, senão a letra do autor. O mais eram os lances, os caracteres, as ficelles e até o estilo dos mais acabados tipos do romantismo desgrenhado.
No conto, Machado censura autores que repetem fórmulas, copiam estilos, macaqueiam estrangeiros, como já fizera nos artigos; mas aqui a ironia é livre, protegido que está pela ficção. Faz-se a crítica e poupa-se o crítico.
Sequestro, falso padre, casamento, testamento, assassinatos tudo acontece aos atropelos: difícil saber o que é parte do texto lido e o que é fruto do sono do ouvinte, vencido pelo desânimo e pelo tédio.
Os sonhos não têm compromisso com a verossimilhança. Muitas obras ultrarromânticas também não: seus adeptos desejavam fugir radicalmente da realidade e o sonho amenizou o sofrimento de Duarte, o protagonista do conto, durante a leitura chatíssima. Mas a realidade de um baile na companhia de sua amada era algo melhor que qualquer sonho. Em A chinela turca, a inversão entre o pragmático e o romântico é genial: não é a realidade que impede a realização do desejo, mas o sonho torto aliado a uma ficção ruim.
Inicialmente anunciada como peça de grande valor, a chinela turca tem logo sua riqueza desmentida: era apenas uma peça de valor sentimental. Os valores são todos condicionados: o baile, importantíssimo para Duarte, era secundário para Lopo Alves, o autor novel; já o drama representava muito para o autor e nada para a audiência.
Duarte foi chamado para opinar. Sabendo dos benefícios de que desfrutaria se fosse amigável, dada a ligação entre Lopo Alves e Cecília, a amada de Duarte, estava pronto para ser camarada. Bastava repetir elogios triviais que, caso os escrevesse em algum jornal, o tipógrafo já os teria prontos, como diz Machado.
O major diletante não tinha talento e conhecimento necessários para escrever uma obra de valor. João Maria, do conto Habilidoso, tinha talento (discutível), mas, desdenhando do fato de que “toda arte tem uma técnica”, “aborrecia a técnica” “ignorava as primeiras lições do desenho” e mantinha, desde a infância, o “sestro de copiar tudo que lhe caía nas mãos”. Sestro aqui pode ser lido como mania, falha, defeito, tique.
Um dos quadros de João Maria é assim apresentado ao narrador: “inspirado”, após visitar uma exposição, o artista pintou uma cena em que um conde esfaqueava outro conde: “rigorosamente, parecia oferecer-lhe um punhal”. Por ignorar a técnica própria da arte que abraçara, também desconhecia os defeitos de seu trabalho e valia-se apenas da observação, dos olhos, “que Deus deu a todos”. Como também se negara a estudar arte e não tinha entre amigos e familiares pessoas que entendessem de pintura, seguia valendo-se apenas do gosto, do instinto e dos elogios sem critério de quem o rodeava. Assim, criava confiando apenas no “gênio do artista”, termo que ignorava e por isso usava sempre habilidoso.
João Maria é dono de uma loja de trastes velhos em um beco. É bonito, mas descuidado, pois “a vida estragou a natureza”. Vaidoso, mas sem conseguir o respaldo da sociedade, contenta-se em pintar diante das crianças obres do beco, enquanto sua esposa e seu filho vivem na absoluta miséria. A vaidade do pintor é equiparada à da menina que, no início do conto, vem exibir um penteado à janela. Pintor e menina, igualmente ingênuos, buscam a admiração alheia.
Habilidoso bate pesado nos exageros de dois excessos da arte,bem observáveis na literatura ainda hoje: excesso de confiança no gênio e a ideia de que observar e reproduzir a realidade basta. A preguiça, que impede o artista de aprimorar seus talentos, e a vaidade, que sufoca a auitocritica, são apêndices dos defeitos.
A tentativa de João Maria de alcançar o trágico resultou no prosaico; isso costuma acontecer a autores que, desdenhando tradição e técnica, buscam retratar a realidade mediante “inspiração & sensibilidade” e entregam clichês mal-acabados, previsíveis.
Em Habilidoso, Machado também demonstra o que a falta de uma crítica especializada faz. Apenas o aplauso condescendente do povo não é suficiente. Sem ser posto de fato à prova, João Maria buscou maior reconhecimento apenas no público leigo e nem aí o alcançou; em vez de estudar, passou a contentar-se com a curiosidade das crianças do beco; em vez de trabalhar, abraçou a miséria.
Muitos escritores fazem opção semelhante (excetuando o abraço da miséria). Contudo, alguns alcançam reconhecimento do público condescendente e desprezam a crítica especializada, alimentando-se da própria vaidade e de tapinhas nas costas, desperdiçando o talento, caso haja talento.
Talento e senso crítico faltavam a João Maria e sobravam em Mestre Romão, personagem de Cantiga de Esponsais. Admirado por todos, Romão, por ser maestro de renome, sabia o que era pertinente em termos de música.
No entanto, passou a vida tentando compor uma única canção e morreu sem conseguir. Segundo o narrador, “há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas”.
Romão padecia de uma moléstia cruel que acomete a muitos que se sensibilizam com a arte: a esterilidade. A sensibilidade não se materializava. Entretanto, era ciente de suas limitações e incapaz de se contentar com pouco, diferente do habilidoso João Maria, cuja vocação tinha língua, mas era afásica. Nem todos os alcançados pela arte são necessariamente artistas. Nem todos que leem poemas são poetas. Machado não vislumbra cura para esse mal; melhor mesmo seria resignar-se. João Romão só descobriu isso momentos antes de morrer.
Outro músico, compositor, reconhecido pelo grande público, também sofria entre a vocação e o desejo. Pestana, de Um homem célebre, tinha vocação era falante, verborrágica, mas que ia de encontro às suas pretensões.
Célebre por causa de suas polcas, Pestana desejava compor algo que, diferente das músicas tão populares quanto descartáveis que fazia, ficasse eternizado. Sua ambição era bem maior que a de Mestre Romão, que desejava apenas compor.
Nos parece que a relevância da cultura de massa perdia peso para Machado de Assis diante da arte dita erudita. Apesar de não desdenhar completamente da cultura popular e/ou de massa, o Bruxo do Cosme Velho, que se servia do universo popular em sua obra, preferia claramente a arte vista como “elevada”. Em Um homem célebre, as polcas são tratadas como algo inferior pelo próprio compositor, e também pelo narrador: elas são um bom recreio, divertidas, mas nem seus nomes querem dizer alguma coisa, nem elas são feitas para durar: haveria uma arte mais elevada, durável, séria. Aproveitando a liberdade que o gênero ensaio nos dá, cravamos um juízo de valor: algumas vertentes de axé music e do chamado funk carioca seriam a “evolução degradada” das polcas do século XIX.
Pestana costumava gostar de suas composições enquanto elas nasciam – e eram compostas muito rapidamente – nos primeiros dias de execução pela cidade, depois passando a odiá-las.
Sempre houve escritores vocacionados para o popular ansiosos por reconhecimento “embasado”; entre eles temos poetas românticos contemporâneos ou pouco anteriores à época de Machado. Contudo, nos parece que era mais comum, e mais desagradável, escritores que viam em suas obras efêmeras faíscas de genialidade. Também havia, e há, escritores que, sendo brasileiros sob todos os aspectos, buscam criar peças totalmente inspiradas em paisagens e sentimentos estrangeiros, adaptados forçadamente ao ambiente local, produzindo efeitos demasiadamente artificiais; outros, olhando para o mercado externo, criam histórias que se passa no exterior, ou exageram na cor local, para agradar aos leitores sedentos de exotismo.
Pestana não buscava a artificialidade e seu exotismo pessoal era espontâneo, mas sofria com seu conflito: não ia além das polcas feitas em escala quase industrial, para consumo rápido, cujos nomes tinham apenas de ser engraçados ou fazer referência a algum acontecimento recente, ou seja: deveriam ajudar a vender.
O ar grave que o compositor ostentava, cabelos compridos, olhos fundos, todo ele vestido de negro, contrastava com a alegria de suas músicas; sua ambição destoava de seu talento.
O desejo de Pestana nunca se realizara. O máximo que conseguiu foi, achando criar algo totalmente original, reproduzir uma melodia que se escondera em suas recordações. Dos best seller aos saraus, isso é muito comum: mas nem todos são nobres como mestre Romão e João Pestana.

Encerrando
A música foi um excelente artifício usado por Machado de Assis para exercer sua veia crítica dentro da ficção. Não que ele se especializasse em analisar polcas, valsas e óperas; mas com sua famigerada habilidade em trabalhar a ambiguidade, Machado presenteia o leitor com suas reflexões sobre o fazer artístico.
Nesse sentido, é emblemático o conto O Machete. Nele, não há somente reflexões sobre a relação entre a música erudita, representada pelo violoncelo, e a popular, encarnada no machete: a própria sociedade que estava sendo formada lidava com essa relação, e a literatura não escapou. A ideia de compor um concerto para violoncelo e machete soa absurda para os personagens – e inusitada para os leitores da época, muito anterior à antropofagia. No conto, há um triângulo amoroso, onde uma jovem casada com o violoncelista apenas admira a sua arte sem compreendê-la profundamente, mas que se encanta com o machete, a ponto de apaixonar-se pelo seu dono e fugir com ele. Há um respeito maior pelo erudito, clara preferência machadiana, mas o popular se impõe. Ao mesmo tempo, a timidez excessiva do violoncelista abre espaço para machete e “macheteiro”. Talvez, melhor mesmo fosse a conciliação, que nos daria algo mais original. Ah, se o violoncelista fosse menos isolado e mais observador de sua sociedade, mais disposto a “misturar-se”, quanto sofrimento seria poupado. LMF, crítica: o que querem, o que podem?

Esclarecendo
30 mil caracteres nos sufocaram; o texto teve mais da metade extirpada, engavetada para outros momentos. Por isso, as notas de rodapé foram dispensadas.
As fontes de consulta foram: Alfredo Bosi (A máscara e a Fenda, Folha explica Machado de Assis), Raymundo Faoro (A pirâmide e o trapézio); a crítica machadiana foi lida na internet e nas Obras completas da editora Nova Aguiar, de onde também tiramos Habilidoso; os demais contos, mais o ensaio de John Gladson, O machete e o violoncelo, da coletânea de contos da Companhia das Letras, em dois volumes. Os romances foram lidos em várias edições diferentes.

sábado, setembro 03, 2011

Bodas de papel?


A louça mergulha na espuma
E a gordura se espalha pela cuba
Da chaleira a água grita
Querendo mergulhar no arroz

E o amor diário posto à mesa
Servido quente como pão fresco
Areja o que eu penso
Ser o casamento.

sexta-feira, setembro 02, 2011

A poesia do poema de João Cabral


Aquela não é a poesia de João Cabral
Mas é o poema de João Cabral
Sem poesia

Aquele poema de João Cabral
Sem lágrima ou brisa é João Cabral
Vem do rio

Aquele ritmo de João Cabral
Capiberibe, cão,
João Cabral, Severino

Apenas construída tua obra?
Compasso, esquadro e marreta?
Sem sorriso...

É parede o que faz João Cabral
Concreto, tijolo e aço,
Madeira que mal respira
Sem música, ao vento irrita

Muito feia parede, João Cabral
É feiura que feiura grita
Esgarça o mundo sem pluma
Esconde a beleza morta que vibra
Na alma do homem sem riso, sem rio

Feiura entalhada que é vida
Vibrando na corda que rima
Teimar, puro verso que é lindo
Teu poema, a poesia
João Cabral...

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