quarta-feira, abril 25, 2012

Por que não tive sogra

Durante oito anos – quase exatos – minha sogra não seguiu os estereótipos comuns ao cargo/parentesco. Nem ciúme nem chatice, nem metidas de nariz em locais privados. O sorriso fácil e para ela, os problemas podiam esperar ou nem eram tão graves assim. como bônus, o afeto pelos animais. As falas, de uma franqueza assustadora, surpreendiam e levavam facilmente ao riso diante do inusitado. Com ela, a vergonha nunca cruza a fronteira do desagradável. No dia 30 de março a minha sogra me atrapalhou pela primeira vez. Eu me preparava para concorrer a uma vaga no mestrado e ela, com um capricho inusitado quase estragou tudo. Justo em um momento como esse, daqueles inadiáveis, a sogra quer cumprir seu papel de estraga-prazeres? Por que ela não permaneceu como sempre fazia, me dando razão, me defendendo das gangorras hormonais da minha esposa, achando tudo engraçado, oferecendo conselhos desconcertantes, nos deixando rubros de uma vergonha divertida? A partir daquele dia ela, e tudo ao redor, mudou. Nunca mais a vi sorrindo, nem sussurrando, nem brincando com os animais. Como foi algo inusitado e muito diferente de seu hábito, fiquei, a cada dia, aguardando que ela voltasse ao “normal”, risse das graças de suas filhas e netas, trocasse as coisas de lugar. Aguardei para breve que voltássemos, eu e ela, a trocar olhares cúmplices e marotos quando irritávamos o nosso elo, minha esposa. Alguém precisava fazer alguma coisa, aquela mulher precisava voltar ao que era, abrir os olhos para nós, sorrir, cantarolar. Mas nada a deixava animada. Nós só não a abandonamos porque a “dona veia” tinha crédito, era amada por muita gente, e já passara por duas crises idênticas cerca de trinta anos antes, e tudo voltara ao normal. As acontece que o aneurisma dessa vez veio com tudo, violento, desagradável, angustiante, moendo qualquer alegria que estivesse por perto. Em tudo contrário ao que, ao menos nos últimos oito anos, sempre foi a minha sogra, que, por sua vez, sempre agiu de um modo muito distante do que a gente se acostumou a esperar de uma sogra. Em poucas horas saímos da preocupação para o desespero; em quase vinte dias alternamos fé e dor, até que ela decidiu nos deixar. Mas nos parece que isso só aconteceu quando finalmente nos conformamos. Nem na hora de morrer ela soube ser uma sogra tradicional, inconveniente; suportou a sobrevida até que aceitássemos sua morte. Mas era a minha sogra, a que me fazia sentir um pouco especial, diferente mesmo, por não poder reclamar da mãe da minha esposa para os amigos. Até cheguei a ensaiar uma história bem desagradável sobre ela, a mulher não gostava de futebol, vivia solicitando a presença da filha em toda e qualquer situação, reclamava do meu salário, da minha profissão pouco rentável, me achava antipático, qualquer coisa que pudesse render ao menos uma crônica pouco inspirada. Mas eram mentiras tão discrepantes que ninguém que a conhecesse me lavava a sério. O único defeito da veia, que aliás foi transmitido à sua descendência, era o Corinthians. Infelizmente, devo dizer que a única coisa chata e desagradável, bem digna de sogra que a Eva Generosa fez foi morrer prematuramente e lançar sobre mim uma dor tripla: a de ver a minha família sofrendo, de segurar as pontas enquanto a pessoa que eu mais amo sentia a pior das dores – a da despedida da mãe – e encontrar na minha própria alma um vazio do tamanho das risadas que demos juntos. O que ficou de consolo? A minha esposa, cuja gargalhada a cada dia se parece mais com a da mãe e a esperança de ouvir o riso original algum dia, em algum lugar especial preparado por Deus – que nós acreditamos em Deus e em sua misericdórdia.

sexta-feira, abril 13, 2012

A bênção de ser santista

Nascer, viver e no Santos morrer
É um orgulho que nem todos podem ter


Não sou de Santos, não moro lá não pretendo findar os meus dias naquela cidade. Mesmo assim, as vibrações futebolísticas que vêm de lá me arrebatam como nenhum outro lugar do mundo pode fazer.
Ninguém saberá explicar o que que a Vila tem. Pelé, Clodoaldo, Canhoteiro. Gilmar, Mauro, Juari, Pita. Chulapa, Dema, Edu, Coutinho. Passei a infância e a adolescência toda ouvindo provocações contra o meu time, coisa do passado, velharia, diziam. Mas nenhum time tem passado semelhante.
De fato, nos meus verdes anos, não era olhando para o campo que encontraria motivos para torcer pelo time da Vila. Trata-se de herança paterna, de memória afetiva e coletiva, pois meu pai, tios e primos mais velhos viram Pelé e seu regimento conquistar espaços, títulos e mística em uma época que o marketing contava bem menos que a habilidade. Eu, enquanto via Rodolfo Rodrigues precisar trabalhar triplicado para compensar a inópia dos jogadores de linha, me alimentava de alguma esperança de que, no futuro breve, alguma fagulha do passado resplandeceria nos gramados.
Aí apareceu Giovanni, que a história cruelmente – a história e um juiz de honra duvidosa – não deixaram vencer um campeonato brasileiro. Giovanni era gênio e deu aos santistas, que já andavam cabisbaixos há anos, uma vaidade bem explicável. Ainda éramos torcedores de um time mágico, casa de bambas, súditos felizes do único rei do futebol. Não, a nossa hora não chegaria, pois o Santos já havia se tornado atemporal. Apenas voltaríamos, em breve, ao nosso lugar de direito: o topo do futebol brasileiro. Mas não havia títulos.
Então Diego, Robinho, Elano, Renato, Léo. Então vitórias, títulos, arte. Voltamos de vez.
E agora, como não bastasse, Neymar, Ganso, Arouca – Wesley e André, que passaram rapidinho por aqui, onde tiveram seus melhores momentos – títulos, a reconquista da América.
Agora, todos sabem por que somos santistas. Não é apenas pelo passado de glórias. Não é imposição ou persuasão paterna. Não é apreço pelo sofrimento, queda pelo mais fraco, tendência arqueológica. Somos os privilegiados, os eleitos para nos deliciarmos com pedaladas, bicicletas, dribles, gols de placa, irreverência, passes de gênio. Somos os que podem, a cada jogo, sorrir, não pela tática, não pela “eficiência” do 1x0: somos a especial plateia do maior espetáculo da terra. Todos podem ver uma jogada brilhante de Neymar, um passe mágico do Ganso, uma bela defesa do Rafael. Todos, até hoje, podem se deliciar com as jogadas de Pelé, a bomba de Pepe, a força do Chulapa. Todos podem provar da elegância discreta de Giovanni. Mas todos precisam saber que cada lance de mestre desses craques foi, é e será para nós, os alvinegros da Vila Belmiro. Nós, os que temos orgulho de sermos santistas sem sermos de Santos, mas do Santos. Nós que, como diz o hino oficial – o clube é tão gigantesco que acabou tendo mais de um hino – mantemos a dignidade, sejamos vencidos ou vencedores. Nós que há um século já nascemos vencedores.
Outros times brasileiros já comemoraram seus centenários, todos de forma melancólica ou decepcionante. Não há time como o Santos, o abençoado Santos que nos abençoa com a sua história que continua a ser escrita, que conta, em seu centésimo aniversário, com os dois maiores craques brasileiros da atualidade para apagar as velinhas. Os presentes, já nos deram muitos, mas, cá entre nós, aguardamos para dezembro a redenção final. Caso a dádiva seja alcançada, nós, os santistas, podemos até deixar de torcer, pois o futebol, que, desconfio, tenha sido inventado para que o Santos pudesse brilhar, já terá cumprido sua função na história.

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