sexta-feira, dezembro 17, 2010

A doçura que não serve

O diabetes me fez chorar duas vezes. Quando dei a primeira picada no dedo e li 274, em jejum(!), desabei. Chegara a minha vida uma doença que, eu estava convicto, me mataria em breve, mas antes me levaria, no ritmo de um torturador experiente, os pés, depois as pernas, depois a visão e por último os rins. Mas eu chorei mesmo ao me dar conta de que “nunca mais comeria uma trufa”.
Foi ao telefone, dando a péssima notícia à Heloíse, dez quilos mais magro que de costume, bebendo uns 30 litros de qualquer líquido doce que existisse na casa por dia, dormindo de 12 a 16 horas diárias, sem forças para dar quinze passos sem precisar me sentar, de preferência me deitar.
O tempo passou, tive um longo período do que os médicos chamam de “lua de mel”, intervalos de tempo em que o diabético tem uma glicemia bem controlada e pode até, vez ou outra, com muito cuidado, comer mesquinhas porções de açúcar. Vez por outra, aliás, eu era obrigado a comer açúcar, pois a glicemia baixava demais, e aí o risco era de entrar em coma e morrer rapidíssimo, mesmo. Depois, dei uma grande relaxada, a glicemia voltou a níveis que exigem cuidados, tive dificuldades para controlar os impulsos de devorar tudo que é delicioso e pode me matar, da batata frita ao bolo trufado. Nunca mais um caldo de cana regando aquele pastel de feira? Mas, sofrendo aqui e ali, levando cinco injeções de pequenas doses de insulina por dia, nadando e fugindo de situações de estresse, que, segundo alguns, é outro gatilho da hiperglicemia, o excesso de açúcar no sangue, vim vivendo. Casei, continuei dando aulas, escrevendo, aliás, faço minha estreia em livro logo, logo, viajei, me reconciliei, ganhei amigos novos. O diabetes existe e apavora, mas tomando cuidado – o que nem sempre faço, é verdade – a gente pode viver, sim. Na verdade, eu fiz um pacto comigo mesmo: o de não morrer, muito menos em decorrência do diabetes. Espero cumpri-lo, ao menos em parte.
A segunda vez que o diabetes me fez chorar, essa doença irritante e democrática, que pode ser escrita de todas as formas e com todas as concordâncias imagináveis e que pode atacar todo mundo, em todo lugar, foi quando descobri que não posso ser doador de sangue. Eu já desconfiava, mas retardei o quanto pude a confirmação; doía supor que eu não poderia ajudar a alguma pessoa com esse ato que considero de pura nobreza. Sempre que aparecia alguém precisando de doadores eu tentava convencer os outros a se encaminharem a um banco de sangue, mas eu mesmo não ia. Enfim, fui tirar a dúvida e descobri que, por ser insulinodependente, não posso entregar meu sangue para salvar a vida de ninguém. Ele é doce, mas não pode ser compartilhado. A única pessoa que ele pode manter viva sou eu, a mesma pessoa que ele pode matar.
Desabei diante da constrangida enfermeira, que aguardava silenciosamente o choro espremido e envergonhado de um homem adulto que nem estava doando sangue para alguém especificamente, apenas estava interessado em ajudar – com medo de passar mal, com pânico de agulhas que colhem sangue, mas disposto a doar.
É mais fácil viver sem comer trufas de chocolate do que com a amarga sensação de que o seu sangue não serve, de que, para aquela situação específica, para aquele gesto incômodo, mas fundamental, de uma generosidade tremenda, você é inútil. Há outras mil, outro milhão de coisas que podemos fazer pelo próximo, mas doar sangue, compartilhar o líquido rega a própria vida, não podemos. Não poder doar, sei na pele, nas minhas veias intocadas e no meu sangue egoísta, dói tanto quanto não receber algo fundamental para continuarmos vivos. E, além da dor – vou me recuperar, claro – dessa impossibilidade, ficou o sofrimento pela vergonha pós-morte de que, certamente, meus órgãos não servirão pra muita coisa – afinal, todos eles levam o meu sangue melado.
Muita gente doa para faltar ao trabalho. É um ato aparentemente espertalhão e egoísta, mas o resultado prático é o mesmo de quem doa por amor. Há quem não doe por questões religiosas, o que é um absurdo. Jesus doou o corpo inteiro e deixou bem claro que não há nada mais importante do que a vida.
Espero não chorar novamente por causa do diabetes. Aprendi uma receita deliciosa de trufa diet – e conto com o esforço dos leitores para que os bancos de sangue fiquem tão cheios que a minha colaboração não faça a menor diferença.

quinta-feira, dezembro 09, 2010

Bandejão

a fome enfeita a estante do intelectual
preenche a tela do cineasta
plastifica o verso do poeta
catapulta as vendas do jornal
alavanca o ibope da novela
municia metralhadoras e peixeiras:
a fome nos farta.

Servir bem, servir sempre

a mão de quem?
costura o strass
enrola o baseado
recolhe a verdura
etiqueta o produto
folheia a bíblia
prepara a picanha
amacia a massa
recolhe o lixo
maneja o controle remoto
levanta copos
aplica massagens
atende o interfone
abre os portões
espanca os perdedores
dispara no escuro
encerra uma prece
rodeia sua ceia
e não foi convidado?

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