Não precisamos dizer que o senso comum traz alguns problemas
significativos − isso também é um grande senso comum. Também não afirmaremos
que o senso comum não é um mal em si mesmo e que ele tem sua função no
pensamento humano − todos percebemos isso com facilidade. A questão é saber o
lugar e a utilidade de cada coisa.
Desde quando me converti ao protestantismo ouço falar que o
grande mal das religiões é a religião. Tá legal, não exatamente com essas
palavras, mas, sem perceber, dizem exatamente isso. Entre as igrejas cristãs
essa fala é muito comum. Demonizam o que chamam de religiosidade como se ela
fosse o maior mal sobre a Terra. Sacralizam e dessacralizam coisas, hábitos,
lugares, promovem uma verdadeira dança das cadeiras com relação a tudo que nos
remete ao divino, com tudo que faz parte do âmbito religioso. Falar mal da
religião virou o maior clichê inclusive entre os religiosos que têm vergonha de
sê-lo.
Essa confusão, essa resistência em chamar qualquer prática
religiosa de religiosa (eita ferro!) é bem comum entre os cristãos. Nas
universidades, nos espaços acadêmicos, essa frescura não existe. Tudo que busca
manter contato, entender, apreender aquilo que não está neste mundo real (no
sentido de existir de fato, mais no sentido platônico, em oposição ao mundo
ideal), concreto, visível, tangível, esquadrinhável, é chamado de religioso.
Temos a filosofia da religião, as ciências da religião, a teologia entre elas,
e tudo funciona sem crise, resistência, recusa. Só os religiosos não gostam do
termo religião.
Isso acontece devido a vários fatores, desde a vergonha
intelectual por fazer parte de algo que nem sempre é considerado sério e
respeitável no meio acadêmico, seja por não querer ser comparado aos religiosos
mais ingênuos e rústicos, ou aos mais nítidos estelionatários da fé que grassam
em todo o Ocidente e ao menos em boa parte do Oriente também. Em muitos
ambientes, a religião é o espaço dos tolos, dos menos privilegiados do ponto de
vista intelectual, dos que aderem facilmente ao comportamento de rebanho.
Ninguém que almeje o respeito acadêmico quer fazer parte de um rebanho.
Também existe, dentro de ambientes religiosos, os que
afirmam não ser religiosos por identificarem neste contexto a repetição
exaustiva de rituais, de práticas mecânicas que nada teriam a ver com o
relacionamento direto e verdadeiro com o divino, com Deus propriamente dito.
Esses acreditam não estar dentro de um contexto religioso porque, pensam, com
eles a relação com o divino é tão genuína, tão intensa, tão corriqueira, tão
honesta, tão cerebral, que não precisam de nenhum tipo de ritual, de nenhuma
prática mecânica para se integrarem com Deus, que não está distante, mas bem
aqui pertinho.
São estes dois modos de lidar com a religião fingindo que não.
No segundo caso, muitos são os picaretas que fazem uso desse discurso,
especialmente no meio evangélico, para poderem se separar das "outras
religiões", especialmente do catolicismo, tão cheio de rituais e
mediações. O curioso dessa visão de mundo é que justamente estes que tanto
criticam a religiosidade que veem nos sacramentos, missas e feriados, práticas
milenares da igreja católica, não passam muito tempo sem inventar os seus
rituais pessoais, de acordo com seus interesses do momento. Multiplicam-se as
fogueiras santas, os cultos de milagres, os jejuns da vitória, os cultos de
libertação, as orações nos montes, os sete passos para o êxtase cósmico de
Israel, a toalhinha suada de Emaús, o tijolinho da muralha de Jericó, o cheque
voador da promessa, ou o cheque da promessa voadora… Para se libertarem da
religiosidade e seus rituais, criam uma série de novos, ou melhor, de requentados
expedientes religiosos, cada vez mais esdrúxulos.
Já no primeiro caso, a coisa assume uma complexidade maior,
complexidade que nem sei se consigo desenvolver aqui com a clareza e
competência necessárias. Mas ao menos um ponto me parece ser bem claro: há um
grupo de religiosos que, consciente do preconceito que a religião sofre nos
ambientes intelectuais, como por exemplo nas universidades e entre artistas,
simplesmente prefere não receber o carimbo de "religioso", o que de
imediato lhe traria a pecha de pouco inteligente, ingênuo, desinformado, alheio
à ciência etc.
Esse grupo, que não enfrenta essa situação sem passar por
uma crise, luta contra uma série de paradigmas e tenta agrupar em um mesmo
balaio esferas da vida humana que ao longo da história se tornaram
inconciliáveis. Se houve um tempo em que a ciência era desenvolvida e
estimulada dentro da igreja, chegou um momento em que, para manter sua
independência e seguir sua trajetória mais ou menos livre de intervenções e
ideias pré-concebidas, a ciência em geral precisou romper com a tradição
religiosa, o que, a meu ver, só fez bem a cientistas e religiosos.
Porém, ainda hoje há quem busque na ciência, digamos laica,
pontos de apoio que sustentem a sua fé, ou que pretendem lidar com a teologia
não como um recurso para lidar e entender um determinado tipo de fé, mas como
se teologia fosse um mero ramo da filosofia − o que até pode ser verdade para
os que não têm fé e se ocupam da teologia como um objeto de pesquisa. Todo esse
esforço, me parece, tem o propósito de não ser confundido com os místicos
desenfreados, ou com os estelionatários da fé. Barateiam a tradição e tentam romper
com os rituais − acredito que não existe religião sem seus rituais e dogmas −,
além de questionar praticamente tudo que faz parte da religião, pois se não são
pessoas religiosas, não podem manter práticas religiosas.
Contudo, não há nada mais religioso do que o desejo de se
comunicar com Deus, não há nada mais religioso do que acreditar em algo cuja
existência e verossimilhança não se podem provar. Pecado, necessidade de
redenção e justificação, crer na vida após a morte de modo a transformar a vida
antes da morte, tudo isso não pode deixar de ser visto como práticas
religiosas, porque o são. Encontrar novos nomes e mesmo novos meios de lidar
com o divino não vai transformar a religião em outra coisa.
Sendo assim, o sacerdote que afirma deixar de ser evangélico
para pregar o Evangelho para os evangélicos não vai além de um simples jogo de
palavras, jogo, aliás, de pouco efeito prático. Evangélico, na essência do
termo, é quem tem a preocupação de evangelizar. Cristão é quem segue a Cristo,
suas ideias, seus mandamentos, além de crer na própria divindade do Messias. Evangélico
não é, nunca foi, embora haja muita confusão, quem frequenta ou é membro de uma
igreja que se apresenta como evangélica. Religioso não é apenas quem pratica
uma série de rituais esvaziados de significado; este, no máximo, será um mau
religioso, sem compreender o que está fazendo e, consequentemente, sem alcançar
aquilo que tanto deseja.
Em vez de se preocupar em não ser identificado com esse ou
aquele grupo, de se empenhar em fazer com que suas práticas religiosas sejam
prestigiadas entre cientistas, por exemplo, vale mais o empenho em ser
religioso e evangélico por inteiro, na essência que essas palavras carregam em
si. Afinal, para quem acredita na mensagem de Cristo, os homens seguem
precisando ser religados com Deus, ou seja, precisam conhecer as Boas Novas.
Não são os nomes que precisam mudar: os mesmos nomes de sempre precisam
resgatar seus significados originais, ou então, daqui a algum tempo,
precisaremos criar novos nomes para esconder problemas antigos.
Quando o assunto é religião, repisar os clichês não vai nos
ajudar. Falar mal da religião em geral e se afirmar não pertencente a um
determinado grupo, almejando ser visto como alguém de casta superior, não
combina com a mensagem do Evangelho e apenas confundirá ainda mais os que estão
de fora. É preciso restaurar o que está quebrado, limpar o que está sujo,
resgatar a coerência e o respeito perdidos. OU então, passaremos a vida
inventando novos nomes para fraquezas antigas, novas túnicas para adornar
vaidades eternas. Reconheçamos a degradação, mas busquemos a regeneração, assim
como Jesus já fez por nós. Abandonemos o senso comum de que Jesus é bom,
religião é ruim. Só de pensarmos em Jesus e de querermos nos aproximar dele já
nos fazemos irreversivelmente religiosos − nos cabe apenas escolher entre a
religiosidade sincera e autêntica e a religiosidade senso comum, fria, falsa,
friável.
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