Gala, gol e glória
Há momentos na vida em que o futebol é a coisa menos
importante do mundo, como, por exemplo, a quase totalidade da vida, tirando os
momentos em que o futebol é importante.
2013, por exemplo, não é um ano para ficarmos muito atentos
ao futebol, eu pensava enquanto meu time, o Glorioso Alvinegro Praiano, passava
pelas partidas sem empolgar nem ao mais doente santista. E depois, o Neymar foi
embora, não chegou ninguém capaz de nos animar.
Mas havia a seleção e uma Copa das Confederações em casa! Boa
bobagem esse negócio de Copa das Confederações. Um evento que serve apenas como
teste para sabermos se os estádios estão em condições de receber essa gente
endinheirada. E a seleção, tão fraquinha
que andava,coitada, com um jogo feio e pouco eficiente. E tem mais: jogar em
casa, no caso do Brasil, significa ter obrigação de jogar bem, sob pena de
receber um temporal de vaias antes da metade do primeiro tempo! Nosso apoio à
seleção sempre foi condicionado a grandes apresentações, a apresentações
esforçadas, pelo menos, com muita raça onde faltar talento.
Aí os jogos começaram. Houve boas partidas, más partidas, um
time amador, o do Taiti, muito simpático e pouco habilidoso. Havia, nos jogos
do Brasil, o adorado e vaiado Neymar. E havia críticas a esse e aquele jogador,
esquema, postura. Tudo meio como sempre, meio sem valer a pena.
Mas, além dos jogos, dos gols, das falhas, havia uma
multidão nas ruas. E essa multidão não estava tão interessada em Neymar, gols
copas: a multidão clamava por um novo país, por uma nova mentalidade, uma nova
postura. Aí é que o futebol perdeu muita importância, mesmo!
O preço das tarifas de ônibus, a corrupção endêmica, os
superfaturamentos das obras para a Copa, o povo do lado de fora da festa,
convidado para ficar nas ruas, para ver de longe uma festa para outros povos,
tudo isso mexeu com os brios da população muito mais do que o medo dos passes
calibrados dos espanhóis, a marcação competente dos italianos, a catimba fria
dos uruguaios. O povo foi às ruas exigir honestidade, justiça, respeito, coisas
que nem sempre acontecem no futebol, seja pelo imponderável tão presente nos
gramados, seja pela fome desmedida de dinheiro, poder e holofotes dos cartolas.
O futebol que esperasse.
Mas então, eis que chegamos à final! Ao lado dos espanhóis. E
os espanhóis eram os francos favoritos, os donos do futebol mais moderno, da
eficiência tática, da hegemonia do momento.
Poucos minutos antes da partida, o Binho, amigo de décadas e
fanático por futebol perguntou se eu via alguma chance para a seleção
brasileira. Disse que a única chance seria comprarmos o jogo. Eu, sabidão,
repetia apenas o que o bom-senso já vem dizendo desde pelo menos um ano, quando
os espanhóis humilharam a Itália na final da Eurocopa com um inquestionável 4 x
0. E outra: a Espanha não faz duas partidas ruins seguidas, e como já havia
saído de uma disputa de pênaltis contra a Itália, nossas chances simplesmente
não existiam.
Aí tivemos a partida. Arrepios e lágrimas durante a execução
do hino nacional brasileiro. Bombas de efeito moral e gás de pimenta do lado de
fora do estádio. Diante da televisão, muitos brasileiros deram as mãos ao mesmo
tempo aos jogadores e aos manifestantes que estavam ao redor do estádio pedindo
um país mais honesto − a honestidade já bastaria para começarmos a construir
uma nação diferente.
Uma dose de sorte,
uma pequena lambança na área espanhola. Coquetel molotov e caveirão ao redor do
Maracanã. Um gol esquisito de Fred. Aí,
Deus seja misericordioso, largamos involuntariamente as mãos dos manifestantes
para abraçarmos a seleção brasileira, em noite e gala, glória e gols nos
Maracanã.
Os espanhóis atônitos assistiram à exibição de gala dos
canarinhos-feras de Felipão. E, como nós desejamos que aconteça com o Brasil,
assim foi com a seleção: os criticados, injustiçados, indesejados, se
redimiram, foram regenerados e voltaram a ter seu valor reconhecido. O criticado
Oscar deu passe certeiro. O craque Neymar fez gol furioso em cima da falsa
fúria − esses espanhóis, ganhando ou perdendo, estão mais para algum animal
polar. O ainda mais criticado Hulk participou de dois gols. O injustiçado David
Luiz fez a maior jogada que um zagueiro pode fazer em sua carreira. Fred fez o
que sabe fazer. E o Brasil quase todo iluminou-se, houve uma enxurrada gloriosa
de alegria, dessas que lavam alma e nos atordoam.
O jogo acabou, nossa
alegria permaneceu. Analistas avisam enervados que Copa das Confederações é uma
coisa, Copa do Mundo é outra. Eles têm razão. Mas antes de nos preocuparmos com
a Copa jogada em campo, vamos nos ater aos orçamentos dos estádios, ao dinheiro
público que, emprestado ou não, está servindo a interesses meramente privados. Vamos
nos lembrar dos que protestaram do lado de fora, protestemos com eles, que a
hora é essa. Deixemos essa noite "3G" emoldurada na parede da
memória, voltemos a ela sempre que precisarmos elevar nossa autoestima. Mas voltemos
a exigir um país novo, pois o momento de colocarmos o futebol em primeiro lugar
foi delicioso, mas já passou.
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