Os abolicionistas corriam para os portos brasileiros receber
os navios negreiros com vaias e hostilidades os escravos? Imagino que não, dentre outros
motivos, porque os escravos, os escravos de fato, não passavam de vítimas de um
sistema hostil e vergonhoso.
Os ex-escravos iam receber os imigrantes europeus que vinha
para o Brasil trabalhar nas lavouras com hostilidades e vaias? Imagino que não,
entre outros motivos, porque sabiam que aqueles homens corriam atrás do próprio
sustento e, se faltava uma política de acolhimento dos novos homens livres ao
mercado de trabalho de uso de mão de obra escrava, a culpa não era dos
imigrantes.
Os médicos brasileiros vaiam os médicos cubanos que vieram
para atuar em áreas onde ninguém quer ir. Os médicos brasileiros os chamam de
escravos, usam de toda sua força e fúria para hostilizar um grupo que não está
tomando o trabalho de ninguém e que, se é que há alguma coisa parecida com escravidão
nesse caso, os responsáveis são os governantes cubanos, não os médicos que
vieram para cá.
A crueldade ganha requintes diabólicos quando observamos nas
imagens de um ato de covardia − e não de reivindicação − médicos brancos e
vestidos de branco, com brincos e colares e relógios caros, que foram até o
local e voltarão aos seus lares e consultórios particulares dirigindo carros
caros, alguns de luxo, mesmo, chamando de escravo médicos negros, que não
pilotam carros de luxo, que não podem usar joias raras, que não trabalham em
consultórios particulares.
O que querem esses médicos furiosos? Não querem "reserva
de mercado", pois não pretendem trabalhar nos rincões abandonados pelo
governo e por eles mesmos; não querem apenas que os médicos façam o tal "revalida",
pois se a questão fosse apenas referente à prova, não iriam xingar colegas de
profissão − ou os "doutores" brasileiros, a maior parte deles sem
doutorado algum, pensam ser superiores aos médicos cubanos, argentinos,
portugueses e espanhóis?
Aqueles médico pensam fazer parte de um seleto grupo
meritocrático e que por isso estão acima de qualquer tipo de comparação,
desafio e não acreditam que devam prestar algum serviço à população; a
população, nesse caso especialmente a doente e desamparada, existe para que eles
possam exercer a profissão, ou seja: os doentes devem servir ao médico, e não o
contrário. Eles querem escolher os doentes e não querem que os não escolhios
sejam tratados por mais ninguém.
A mentalidade desses médicos enfurecidos me lembra não
apenas o vídeo que circula pela internet com a professora − e doutora de fato −
Marilena Chauí criticando a classe média. A julgar pelas respostas furiosas
tanto de membros da classe média quanto dos proletários que gostam de pensar em
si mesmos como membros de uma elite pensante e econômica brasileira, penso que
ela acertou na mosca. Também não posso deixar de contar um pequeno episódio
ocorrido com um colega de trabalho meu, em uma famosa quermesse da Bela Vista.
Em uma fila para comprar, sei lá, uma quermesse, tendo seu caminho obstruído
por um senhor de meia idade, vestido elegantemente, solicitou várias vezes
passagem, sendo todas as vezes ignorado. Já irritado, tomou a frente do
distinto cavalheiro, e foi xingado de todos os nomes, inclusive de
"malvestido". Uma garotinha macérrima e vestida com espalhafato que
acompanhava o velho cavalheiro, disse a frase perfeita para a situação:
− Você sabe com quem está falando? Sabe quem ele é? Ele trabalha
na melhor empresa da cidade de São Paulo!
Sem querer generalizar, claro, mas tomando os baderneiros de
jaleco que ofenderam seus colegas cubanos, o cavalheiro de nariz empinado e sua
coleguinha deslumbrada como referencial, penso que Marilena Chauí só disse o
óbvio. E continuo temendo pelas pessoas que, como eu, dependem da saúde pública
para se cuidar…
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