Acredite se quiser, fui ler a sério Manuel Bandeira só no
primeiro ano da faculdade. Não sério no sentido chato/acadêmico, desses que
viram o texto do avesso e tiram dele qualquer prazer possível: sério que eu
digo é com a consciência da autoria, é sabendo que O bicho, Vou-me embora pra
Pasárgada, Os sapos, Pneumotórax e outras joias da poesia
brasileira eram todos poemas do mesmo Manuel Bandeira. Sério seria conseguindo
estabelecer relações entre esses textos, descobrir uma lógica, uma visão de
mundo.
Não fui um grande leitor de literatura, e talvez ainda não o
seja. Primeiro o rock e depois a MPB foram as caçambas onde despejava meus
sentimentos, minhas dúvidas, meus demônios pessoais. Antes de tudo, a música.
Logo nos primeiros dias de estudante de Letras, o que
continuo sendo até hoje, adquiri o essencial Estrela da Vida Inteira, por causa da importância que um professor
lá atribuiu a ele. Trata-se de uma verdadeira constelação de poemas da mais
pura sensibilidade, despida dos trajes oficiais da poesia. Ali é possível
encontrar parnasianismos e simbolismos tardios, sonetos martelados, mas não
falta a dose por vezes homeopática do mais sincero lirismo. Livro para a vida
inteira.
Passei um pedaço da eternidade na faculdade. Em um daqueles
efervescentes anos em que estive preso à graduação − hoje os grilhões e as
musas que me confinam na academia são outros − conheci um amigo, colega de
curso e de ocupação. Gente boa, tímido, em dúvida sobre seguir a carreira
burocrática de servidor público do Banco do Brasil ou embrenhar-se na fauna-flora
semisselvagem das salas de aula, esse colega precisava escrever trabalho sobre
Bandeira. Emprestei minha Estrela.
O prédio da faculdade é grande e feito para os desencontros.
As vidas nos arrastam por corredeiras sem destino certo. Perdemos contato,
perdi meu livro.
Não comprei outro exemplar, sei lá por quê. Talvez esperasse
que um dia encontrasse o amigo, que me pediria desculpas e devolveria aquele ou
um outro exemplar qualquer, talvez até um raríssimo autografado pelo poeta menor
menormenormenorme, como diria Zé Paulo Paes. Também porque a grana sempre anda
curta, também porque a internet nos supre no aperto. Mas sentia falta do tato
sagrado daquelas páginas que me entendiam e me explicavam. Ainda que Bandeira
tenha chegado inteiro apenas na faculdade, seus poemas me ajudavam a não perder
o viço de leitor não profissional, de admirador não exatamente da técnica, mas
daquela outra coisa que a gente nem consegue medir ou rotular com precisão,
aquele sopro que nos faz apenas sorrir ou chorar, apenas gozar a bênção de ler
um bom poema.
As vidas seguem galopando, quando a gente vê passou mais de
uma década e a gente está casado, passando lua de mel em Natal, hotel bacanudo.
E a surpresa foi encontrar aquele amigo da faculdade que acabou, por razões
presumidas e perdoáveis, ficando com o nosso livro do Bandeira. Ele estava
passando férias com a esposa, mais funcionário público do que nunca,
bem-sucedido, certamente feliz − quem não ficaria feliz em Natal, com aquele
sol e aquele mar, as dunas, os camarões e macaxeiras, com aquele cheiro de
felicidade envolvendo a cidade? Trocamos sorrisos, cumprimentos, espantos
espontâneos, sinceras manifestações de apreço, apresentações e ele falou do meu
livro, que estava com ele, que devolveria, por intermédio de seu irmão, que ainda
morava no mesmo bairro que eu. Disse que não precisava, que eu compraria outro,
que não faria sentido nos encontrarmos em terra distante, desfrutando da
felicidade das férias, eu ainda mais, no cume da felicidade de estar celebrando
o amor da vida inteira, e ficarmos falando de livros perdidos, esquecidos ou
não devolvidos. Que ele deixasse pra lá.
Mas meu amigo, honesto, insistiu. Anotou telefone, acho, ou
me pediu que anotasse o dele, não lembro, meu livro chegaria até mim, são e
salvo, após tanto tempo. Era um livro do Bandeira, Estrela da vida inteira, não poderia ficar com quem não era seu
dono legítimo. Uma estrela que brilha sozinha no céu dos poetas, pela solidão
que o abraçou quase que a vida toda, pelo talento sem par com que costurava seus
poemas, pela alegria melancólica, pelas danças travadas com a morte. Bandeira e
sua estrela não têm dono, todo mundo sabe disso.
Era o Manuel Bandeira querendo participar de um dos pedaços
mais felizes dessa minha vida, passando para dar um oizinho, solidário. A vida
ainda continua escorrendo, até quando Deus quiser, o irmão do meu amigo até
hoje não trouxe a encomenda, e Bandeira não me larga, necessário na sala de
aula, essencial nas leituras solitárias. Manuel Bandeira está sempre presente,
mesmo que seja em forma de estrela oculta. Sem ressentimentos, preciso
encomendar outra Estrela da Vida Inteira.
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