A diferença entre racismo e mimimi
A cena mais forte já produzida pelo cinema brasileiro − é
bom começar com afirmações definitivas, nos fazem sentir importante e sábio, a
despeito de toda nossa ignorância sobre o assunto em questão − está no filme Ó paí, ó, de Monique Gardenberg. Uma das
maravilhas da internet, especialmente para escritores preguiçosos, apressados
ou incapazes de fazer uma boa descrição − sou muito de tudo isso − é que ela
pode nos dispensar do sacrifício e nos permite mostrar direto aquilo de que
estamos falando. É disso que estou falando:
Racismo não é apenas colocar um "apelido" em
alguém. É, entre muitas outras coisas, manipular a história e a ciência para
rebaixar o outro e dar a si mesmo um lugar de honra. "Explicitar" a
inferioridade dos outros é a desculpa quase perfeita para justificar desmandos,
injustiças, para "legitimar" genocídios e toda sorte de atrocidade.
Mas é fácil perceber que o racismo é mais eficiente quando a
própria vítima do preconceito o introjeta e passa a viver pautado pela própria
discriminação que recebe como sendo algo natural. Dá bem mais certo e é bem
mais econômico do que a guerra, além de confundir bem mais as pessoas em geral.
Desde criança ouço duas afirmações sobre racismo que sempre
considerei, para ser franco, abjetas. A primeira delas acerta na afirmação, mas
esconde uma sordidez absurda: "não é só o negro que sofre
preconceito". É claro que não é só o negro que sofre preconceito. Mulheres,
indígenas, ciganos, evangélicos, judeus, católicos, umbandistas, homossexuais,
espíritas, capoeiristas, sambistas, policiais, professores, literatos, mestres
de obras, serventes de pedreiro, encanadores, garis, funcionários públicos,
nordestinos, gaúchos, imigrantes, brasileiros em geral, analfabetos, pobres
etc., todos são vítimas em potencial de ações discriminatórias. Até aí, e daí? O
problema é quando a pessoa que traz essa constatação brilhante à tona, a de que
não é só o negro que sofre preconceito, usa exemplos que normalmente carecem de
reflexão mais profunda.
Acabo de ler, por exemplo, a "observação" de que,
se em uma briga de trânsito, um negro for xingado de macaco e retrucar ao seu
oponente branco o chamando de "branquelo azedo", os dois incorreram
em racismo. É fato que ambos foram grosseiros e que tiveram atitudes
reprováveis. É fato que cada um dos agressores, ao se sentir ofendido em sua
honra pode buscar, amparado na lei, a reparação que julgar proporcional à
injúria sofrida. Mas também é fato que o peso da ofensa é maior na medida em
que ela acompanha uma série de práticas históricas na sociedade que
discriminam, humilham, e separam as pessoas em "castas". Chamar
alguém de macaco, é dar a ele características de um animal irracional incapaz
de pensamentos elaborados, muitas vezes dócil e fácil de domesticar. É dizer ao
injuriado que ele é inferior e deve se colocar em seu lugar de "quase
coisa", é afirmar que o "macaco" em questão até pode ser aceito
na sociedade, desde que saiba se comportar, não pretenda estar no mesmo nível
dos seres "plenamente humanos" e respeite os "superiores".
Aquilo que parecia ser apenas um "xingamento em momento
de fúria", algo grosseiro, mas inocente, revela toda uma visão de mundo
compartilhada surdamente por boa parte da sociedade. Já, chamar alguém de
"branquelo azedo", é sim, uma grosseria enorme e igualmente
imperdoável, mas o peso histórico desse xingamento não envolve escravidão,
violência policial, discriminação no mercado de trabalho. O branquelo azedo é
menos parado pela polícia, é representado positivamente na mídia, geralmente
não é discriminado no mercado de trabalho.
Já vi brancos serem hostilizados em grupos de negros. Já vi,
por exemplo, cantores brancos extremamente competentes serem humilhados em
corais onde predominavam cantores negros, com piadinhas de péssimo gosto, com o
cantor branco sendo ignorado e repreendido a todo instante. Naquele caso, os
negros se julgavam superiores ao branco, negando a ele condições de exercer, no
caso a sua arte. Já vi nas poucas quadras públicas onde é possível jogar
basquete brancos e mestiços "desbotados" − como eu − serem
hostilizados e até proibidos de jogar, fora terem de ouvir "gracejos"
racistas a todo instante. Foram situações grotescas, absurdas, que merecem
repúdio. Mas não podem ser comparadas em alcance e número de ocorrências com o
racismo que ocorre contra negros ou qualquer um que não seja branco, ainda que
azedo. Não pretendo discutir aqui se a postura dos membros do coral ou dos
"basqueteiros" foi uma espécie de resposta histórica às discriminações
e abusos contra negros, nem que, sendo eles ainda discriminados em boa parte da
sociedade, ali seria um dos poucos ambientes onde seus talentos e culturas
poderiam ser devidamente valorizados. Não creio que todos os atos de todas as
pessoas são conscientemente políticos, ideológicos ou contestadores; também não
credito que o erro de lá é o salvo-conduto de cá: nesses casos, houve sim, a
despeito de qual teria sido a intenção dos envolvidos, preconceito racial, que
pode ter acarretado problemas emocionais significativos aos que não conseguiram
lidar de forma saudável com a discriminação que sofreram. Agora, daí a querer
colocar na mesma balança as consequências do racismo histórico e com a
conivência de tanta gente importante, com o xingamento covarde feito em uma
briga de trânsito já é demais. Querer equiparar a grosseria racista com as
discriminações praticadas no trabalho, na mídia, nas escolas é um disparate.
Ignorar que durante anos os negros foram retratados ou como escravos, ou como
marginais, ou como serviçais, o que só reforça o imaginário popular de que eles
são mesmo inferiores do ponto de vista intelectual, fazendo sucesso apenas em
áreas restritas da música e dos esportes, é hipocrisia. Rotular o negro que ao
se sentir ofendido ou injustiçado de "coitadinho" e
"folgado" é vergonhoso.
A segunda afirmação que me causa náuseas é bem menos
discreta: "o preconceito começa com o próprio negro; eles têm preconceito
entre eles mesmos!". Aqui a hipocrisia é bem menos sutil. É como se
dissessem "se os próprios negros se tratam de forma grosseira e racista,
por que eu, que nem negro sou, não posso, por exemplo, contar piadas racistas?".
De fato, conheci mais de uma pessoa negra que tinha opiniões
racistas sobre os próprios negros, inclusive na minha família. Mas, em vez de
considerar o comportamento dessas pessoas uma prova cabal de que a
criminalização do racismo é algo incoerente, vejo com clareza que o pensamento
racista que emanou das classes superiores desde, sei lá, Cabral, continua firme
e operante. Refletir sobre o que leva uma pessoa negra a discriminar sua
própria etnia e origem, ninguém quer, né?
Separar racismo de bulllyng (o que também é um problema
gravíssimo e até pode estar misturado com racismo que deve ser combatido com
seriedade, mas é outra coisa), ou do mero mimimi de quem não sabe o que é ser
constantemente suspeito por causa de sua irremediável cor de pele é algo de
grande urgência.
Finalizo lembrando os nomes de dois raps dos anos 90. O
primeiro se chama A cor da pele não
importa nada feito por artistas brancos que faziam parte do pioneiro
movimento hip hop em São Paulo; o segundo, feito pelo rapper negro Dexter, é uma
resposta aos realmente bem-intencionados rappers brancos e se chama A cor da pele não importa o caralho.
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