O acúmulo de teorias e ideias pedagógicas ao longo de muitos
e muitos anos − penso em algo em torno de cinco séculos, mais ou menos − nos
faz perceber, neste momento da história, que a educação nunca correu tanto
risco de, inexistindo qualquer evolução sensível nas últimas décadas, ir
correndo abraçar os retrocessos como se estes fossem a tábua de salvação, se
não da educação como um todo, ao menos da paz de espírito − alguns de porco, é
bem verdade − do corpo docente e dos governantes em geral − esses suínos por
excelência.
Em primeiro lugar, o número de professores que marejam os
olhos quando pensam na repetência é cada
vez maior. Já existem inclusive professores que têm saudade de algo que sequer
viveram, posto que a aberração da aprovação automática já existe há tempo
suficiente para ter ajudado a de-formar muitos mestres da atualidade.
Aliás, é bom frisar: aquilo que muitos chamam de progressão
automática jamais foi nada além de aprovação automática. A progressão prevê um
novo paradigma de organização das turmas, muito diferente do sistema seriado.
Na progressão continuada, a avaliação não é usada para aprovar ou reprovar ao
final de cada ano ou ciclo, mas para indicar quais caminhos o aluno deve
percorrer. A progressão continuada também prevê um novo modo de organizar os
currículos, menos enraizados na questão dos conteúdos e mais voltados às
habilidades e competências, palavrinhas bonitas e já esvaziadas de significado,
de tão desgastadas e violentadas pelo discurso pedagógico vigente, sem que haja
as mínimas condições reais de que habilidades e competências sejam realmente
trabalhadas e desenvolvidas.
Vivemos mais do que nunca de arremedos e simulacros, algo
tão combatido por Paulo Freire; aliás, muitas críticas do atual "sistema
educacional" são atiradas sobre Paulo Freire, sendo que ele, que não vive
esses tempos sombrios, já criticava com veemência o que somos obrigados a assistir hoje, como
aparelhamentos, educação bancária, ensino a serviço das elites, falta de reflexão
e autocrítica por parte de quem se acredita "de esquerda". Simulamos
trabalhar as habilidades dos alunos, mas na verdade esperamos que eles sejam
competentes apenas para realizar nossas provas e demais avaliações tradicionais
e sem valor fora do ambiente escolar.
Os professores são obrigados a repetir um discurso inovador
sobre educação, mas a prefeitura de São Paulo acaba de voltar a tratar provas
bimestrais e lição de casa como fetiches e panaceias que, já estamos bem
cientes disso, não resolverão aquilo que esperamos que resolvam − vale lembrar
que lição de casa e provas já fazem parte da rotina de muitos alunos e
professores; eu mesmo trabalho com ambos, sem esquecer de lidar com outros
instrumentos de avaliação. A conversão errada nos enfiou a todos na contramão
do futuro e do aprendizado com propósitos relevantes.
Tenho a sensação de que todas as teorias sobre educação, ao
menos todas as verdadeiramente relevantes, já foram estabelecidas,
incorporadas, domesticadas, adoçadas e, de tão distorcidas na prática, viraram
nosso terror e amargura. O que conta agora é buscar caminho para efetuá-las de
acordo com cada realidade regional, de bairro, de sala, de aluno, até. Levar a
realidade local em conta, aliás, já é parte de uma teoria sobre educação.
Reprovar, na maioria das vezes, é apenas uma força de coerção e de vingança.
"O cara que não fez nada o ano inteiro não pode passar". O que
precisamos descobrir é se esse cara aprendeu alguma coisa positiva que lhe será
de algum modo útil ou caro ao longo de sua vida.
A briga não deve ser pela reprovação, mas por instrumentos
que auxiliem na disciplina e propiciem um ambiente propício para a relação
ensino-aprendizagem − que um não existe sem o outro já virou clichê sem ser
devidamente problematizado e levado em conta no cotidiano escolar. A prova,
mensal, bimestral ou seja lá o que for, é um instrumento de avaliação que já
foi demonizado e agora ressurge como uma espécie de redenção; mas se ela não é
a vilã do sistema escolar, tampouco pode ser considerada sua redentora. Ela é
apenas um instrumento de avaliação que serve em algumas situações e é opressiva
ou inútil em outras. A lição de casa pode ser uma necessidade de um determinado
contexto pedagógico e pode também não passar de um castigo bobo ou uma espécie
de satisfação aos pais que ao verem seus filhos atarantados com cadernos e
livros pela casa terão a sensação de que seus filhos estão aprendendo, mesmo
que as lições de casa sejam tão trabalhosas quanto burras e sem sentido. Mas,
para quem "relançou" a prova bimestral e a lição de casa como
propostas pedagógicas, certamente quer lidar mais com as sensações e menos com
os problemas de fato.
Por fim, vale ressaltar que educação, sempre e sempre, é um
ato político. Política sempre exigirá escolhas, tomadas de decisão e de partido,
ainda que rejeitemos os "partidos políticos", que na verdade nem
merecem esse nome e deveriam ser chamados de "partidos fisiológicos".
Escolher um lado e tomar decisões significa necessariamente que não é possível
agradar a todos, ainda que em assuntos públicos, devamos trabalhar para todos. A
atual proposta da prefeitura de São Paulo propõe medidas que pretendem agradar
a gregos e goianos, mineiros e troianos: por um lado quer mostrar aos
professores que com a volta da retenção, da lição de casa, da prova bimestral e
do TCC, pretende "disciplinar" os alunos e permitir que os
professores possam voltar a lecionar de verdade. Por outro, pretende mostrar
aos pais que os professores terão de trabalhar de verdade, como se passar prova
e lição de casa fosse sinal de "trabalho verdadeiro" por parte dos
professores; alguns dos colegas mais preguiçosos, omissos e acomodados que
conheço trabalham justamente em cima da prova e da lição de casa. Enquanto isso,
por debaixo dos panos, cria mecanismos para que as retenções não sejam em
grande número, querendo vincular os rendimentos do magistério aos números de
aprovação.
Não poderia haver conduta mais covarde. Com medo ou vergonha
de assumir que realmente a retenção é um
retrocesso, a prefeitura berra que ela voltou, mas vigia e pune o professor que
reprovar acima do "esperado". Assim, o governo fica bem com órgãos
internacionais ao menos no plano das intenções, embora provavelmente continuará
a ostentar níveis vergonhosos em qualquer tipo de avaliação de sistema escolar.
Mas condições reais de trabalho para nós, os professores, e criar ambientes
verdadeiramente adequados para o
aprendizado, o governo não quer dar, não.
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