Se no futuro, por algum entediado e infeliz acaso, alguém
vier a ler este texto, pensará em nosso primitivismo. Sim, a FIFA e a sua cartolagem
"esgota" que escorre da Suíça para os campos mais remotos do globo
terrestre, no Burundi e em Roraima, em Wembley e no Mané Garrincha, vai fazendo
o esporte bretão perder o charme, ficar chato e arrogante. Não fossem Messi,
Neymar, Cristiano Ronaldo, Di Maria, Fred, Pedro, Van Persie e tantos outros
donos da bola, a própria bola já estaria perdida.
Amo futebol.
E, como eu dizia, é possível que a linha evolutiva da
humanidade um dia torne esse amo sem sentido, como ficou sem sentido as
críticas do gênio das letras Graciliano Ramos sobre o futebol. Ele preferia rasteira, nosso verdadeiro esporte nacional.
As multinacionais da indústria de material esportivo, as vorazes empresas da
mídia, podem, em tempos de crítica aguda, matar o amor em geral. E a linha
evolutiva da humanidade, repito, pode considerar nosso amor por um esporte como
o futebol até mesmo um desvio de caráter. Se a humanidade melhorar, senhoras e
senhores, é possível que o futebol, junto com nossa gana de vencer e de superar
os adversários, desapareça.
Mas estamos no presente. E quando falamos de futebol, também
falamos em tradição, em versos como estes, do hino do maior time da história: "Dando
o sangue com amor/
Pela bandeira que ensina/Lutar com fé e com ardor".
Pela bandeira que ensina/Lutar com fé e com ardor".
O presente é do futebol, é da Copa do Mundo, apesar da FIFA,
organização que lembra em alguns momentos alguns filmes de gângster, dado o
altíssimo volume de dinheiro que movimenta (nem sempre declarado), dada a
permanência quase milenar de seus dirigentes, dado o desprezo com que costuma
lidar com tudo que não seja seus próprios interesses.
Amo o futebol porque ele entrou pelos meus poros quando eu
tinha apenas seis anos de idade e aprendi que o melhor nem sempre vence e que a
vida é isso aí, hoje beija, amanhã não beija. Foi quando vi a seleção
brasileira perder para a italiana na Copa da Espanha, em 1982. Aquela derrota,
mas, acima de tudo, aquele time, definiu algumas coisas em minha vida, muito
antes de qualquer opção política, muito antes de saber quem era Machado de
Assis. Aquele time, inclusive, foi a minha primeira musa, para quem escrevi
dramas nos quais ele se saía vencedor. De Eder a Zico, de Júnior a Leandro, de
Falcão a Sócrates, de Cerezo a Telê, tudo era talento, e aquela derrota, para
meus padrões de garoto urbanos e telespectador contumaz, só perdia em
importância para a possível morte do Ultraman.
O Ultraman ficou escondido em alguma esquina imaginária de Tóquio,
em alguma galáxia não catalogada, e o futebol me acompanhou vida adentro. Quando
é bem jogado de fato, o futebol me arrebata. Ópio do povo? As catárticas
tragédias gregas também o eram (aliás, a cabeçada de Zidane na final de 2006 vale
toda a obra de Sófocles), as óperas, os contos machadianos, a voz definitiva de
Cássia Eller, a intensidade das pinceladas de Dalí, a antológica série de TV The Following, tudo opiáceo, tudo
fundamental. Todos precisamos de um pouco de vertigem, todos precisamos de
poesia, precisamos escapar, precisamos de paixão, e cada um tem o ópio que
consegue.
Também precisamos de comunhão, e o futebol tem a magia de
reunir inclusive adversários − desde que não sejam descerebrados − em torno da
TV, em torno de um mesmo jogo. Em momentos específicos, ficamos todos do mesmo
lado, espanamos o mofo de nosso orgulho patriótico e vamos torcer, fazer
churrasco, discutir tática como se fôssemos do ramo, relembrar craques do
passado, lamentar a falta de amor à camisa, nos alegrar ou consolar mutuamente;
vamos, pagando o preço de usarmos os mesmos clichês a cada quatro anos, sentir
que somos povo.
Tempos atrás nos informaram que ufanismo em excesso e fora
de lugar pode nos alienar. Nos dias de hoje, curiosamente, os mais alienados
são os que mais berram contra a alienação. O fenômeno é curioso, mas comum: quando
o assunto é educação, por exemplo, os mais preocupados em denunciar as mazelas
de nosso ensino são, sem o saber, suas maiores vítimas, enquanto que os menos
atingidos pela avalanche de "intoxicação escolar" são os mais
conscientes do próprio prejuízo (e acabam sendo os que mais estudam, se
preparam e superam adversidades), assim como aqueles que têm reclamado da
"burrice do povo" são os que mais repetem clichês rasos, os que mais
reclamam da corrupção são os que mais praticam o "jeitinho" e assim
por diante. A Copa do Mundo que começa agora virou a grande culpada de todas as
mazelas nacionais, a Geni do momento, o foco da fúria contra o nosso
subdesenvolvimento.
Ficamos 64 anos sem sediar uma Copa do Mundo. Neste
intervalo, bem sabemos, a educação cambaleou, sem conseguir se firmar; a saúde
nunca se destacou positivamente no cenário mundial; governos estaduais e
prefeituras investiram em habitação e transporte público muito menos do que
suas obrigações exigiam, e o hábito de tirar vantagem em detrimento da lei, do
próximo ou da sociedade grassou bestialmente em todas latitudes e longitudes da
sociedade. Além disso, durante boa parte desse tempo, a alienação esteve em
nosso meio dos mais variados modos, seja pelas telenovelas, pelas canções populares
estilo chiclete, seja pela apatia ou pelos anos de ditadura que nos ensinaram a
não nos preocuparmos com assuntos profundos, pois a junta ditatorial, digo
militar, se encarregaria de cuidar do país, fazendo, inclusive, com que muitas
pessoas pensem até hoje que naqueles tempos "olivais" não havia
corrupção ou incompetência administrativa, afinal de contas, o que não é
documentado, o que não passa na tevê, não existe.
Mas eu falava do futebol. Amo futebol e não pretendo que me
estraguem a festa que será − torçamos para que seja − a Copa do Mundo no
Brasil. Torcer para que as coisas deem errado para assistirmos de forma
canibalesca ao constrangimento dos governantes não é consciência política, é
cretinice, pois revela não apenas nosso instinto de hiena, mas nossa preguiça
política, nosso espírito público de porco, nosso complexo de vira-lata, enfim.
Os tubarões já encheram suas burras de dinheiro licito, mas
moralmente questionável, e de superfaturamentos exorbitantes além da
clássica roubalheira, mesmo. Isso é uma
vergonha e não deve ser letra morta após a competição. A infraestrutura que nos
prometeram junto com a Copa não veio, não virá mais. Seria muito mais prático e
cívico exigir, pressionar para que as contas sejam levadas a público e os gastos
abusivos sejam ressarcidos ou reinvestidos de modo mais útil para a população. Será
inteligente cobrar que culpados sejam presos, com ou sem Copa, será lúcido
continuar se manifestando independentemente do governo que estiver no poder − e
os governos são cada vez mais parecidos em uma série de coisas.
De novo, quero falar de futebol. Ele não está acima de tudo,
não aceito todos os meios para que ele seja o centro das atenções; a FIFA é uma
instituição indiferente a tudo que não sejam os seus interesses financeiros e
se pudesse extinguiria até mesmo o futebol − mas não a Copa, enquanto ela der
lucro. Contudo, não nos esqueçamos: nossa seleção tem Neymar; Cristiano Ronaldo
tem capacidade para vencer sozinho uma Copa do Mundo; os argentinos têm Messi,
Di Maria e uma vontade incontrolável de estragar a festa brasileira; a França
nos faz de seu eterno freguês e Bezema parece estar voando; a Espanha, via
Barcelona, já nos humilhou no passado recente e tem um time técnico e
competente; a Itália quer alcançar o penta; o Uruguai é a única seleção que já
venceu um título mundial em solo brasileiro e a Alemanha dispensa comentários e
não precisa de motivações extras para ser favorita a algum título. Tudo isso
não vale um leito a menos no hospital, mas vale a nossa catarse, a nossa
comunhão, o nosso ópio. Como diria o compositor popular, a Copa também é uma
forma de nos vingarmos de toda desgraça da vida. Vale, como diria o locutor,
"a nossa torcida".
Temos que adquirir o hábito de cobrar do poder público a
aquilo que temos por direito por pagarmos nossos impostos, por sermos cidadãos,
seres humanos. Isso precisa ocorrer sempre, e não somente agora. Falar que
professor é um herói precisa deixar de ser clichê, exigir que os governos se
empenhem em resolver o problema de moradia é ir além da mercantilização do
mundo, cobrar transporte público de qualidade e barato precisa ser uma bandeira
de todos, inclusive dos que hoje não fazem uso desse transporte. A Copa pode
ser uma vitrine para essas reivindicações, mas também é uma Copa do Mundo, um
evento que aguardamos durante quatro anos, algo que faz parte de nossa cultura,
de nossa formação, de nossas paixões (e se a FIFA não lidasse com uma paixão
tão arrebatadora quanto o futebol, já estaria falida). Vamos torcer, vamos
curtir, não como tolos alienados, intoxicados pelo tal ópio do povo; vamos
também protestar e exigir o que é nosso, sem nos esquecermos que o futebol,
ainda que esteja nas mãos de gângsteres, é mais nosso do que deles. Vamos
burlar as leis imbecis e ditatoriais da FIFA sobre acarajés e festas juninas e
vamos celebrar, quer o Brasil vença quer tropece pelo caminho. Vamos aproveitar os feriados para celebrar não
apenas o futebol, mas o renascimento da consciência do povo e a bênção de
estarmos ao lado de quem amamos. E vamos comemorar cada gol, sim, vamos ficar
tensos a cada partida difícil, sim, vamos curtir as partidas de outras seleções
também. Só não vale achar que uma Copa vale uma vida, vale o descaso das filas,
vale a indiferença dos governantes, especialmente aqueles que têm procurado
manipular o povo contra ou pela Copa.
No futuro, seja pela guerra, seja pelo amor espalhado entre
os povos, a Copa não fará ais o menor sentido. Mas agora, ah, como ela é
importante.
Nenhum comentário:
Postar um comentário