Nossos espelhos precisam de filtros porque não suportamos nos ver crus e nus. No fundo, sabemos que somos deploráveis, mesquinhos, racistas, egoístas, violentos. No fundo, percebemos, farejamos a própria fragilidade. Por isso tentamos a todo custo escondê-la sob a cor da pele, dentro de uma roupa de grife, no porta-luvas de um carro de luxo. Tentamos sufocá-la no meio dos "livros cultos" que lemos, a emplastamos em uma sabedoria rasa e ralé, a emperequetamos com maquiagens, plásticas, tinturas. Nos embotamos de mentiras históricas, nos banhamos na lógica fascista do mercado espremedor de talentos, vontades e identidades. Vendemos barato nossa pouca polpa e logo viramos bagaço.
Talvez nem haja o que fazer. Não deve ser culpa da desinformação; esta grassava nos tempos medievais, nas catacumbas da antiguidade, na superstição dos ingênuos. Embora haja muito papagaio repetidor, tem muto monstro letrado e encanudado por aí. A direita, a esquerda, a internet, a fragilidade da democracia, os coturnos ensanguentados das ditaduras, tudo não passa de pretexto. Tudo que existe é ódio. E medo.
Quando crescem demais, o ódio e o medo se tornam autônomos: se retroalimentam, se impõem e precisam apenas explodir, saciar a própria fúria, à custa de qualquer motivo, de qualquer pretexto. Caçadores de diferenças, mesmo que mínimas ou fruto de mero delírio. Caçadores de bruxas - agora, literalmente.
Como disse Sergio Vaz, "voltamos à época medieval porque temos medo do futuro". Mas da Idade Média só buscamos o medo irracional, o ódio disfarçado de conhecimento, a histeria coletiva. Já o futuro, se não for muito bom pra mim, se não reservar um lugar especial para os meus, não serve, melhor voltar, para as trevas, já que a luz expõe meu caráter minúsculo. Deixamos pra trás qualquer rastro de bom-senso, de conhecimento. Cansamos de fingir que evoluímos, talhamos o próprio ventre para exibir nossas tripas. Para essa geração, voltar à Idade da Pedra vai ser a maior conquista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário