No espaço de uma semana, pelo acaso da programação da TV,
somado às opções do Netflix, assisti a
dois filmes pontudos feito verrumas, nenhum deles lançamento: o brasileiro Baixio das bestas e o francês Amor. Dois filmes que, para usar
expressão do responsável pelo primeiro, Claudio Assis, foram feitos porque
"doeu".
De fato, a experiência distinta que cada uma das obras nos proporciona
é de dor: o primeiro, Baixio das bestas,
explicita uma dor que vem de fora, do outro, imposta por uma organização
social, por uma miséria humana compartilhada a socos, tiros e estupros, que
estraçalha qualquer brisa de respeito ao próximo e a si mesmo; já o segundo, Amor, lida com uma dor que vem de
dentro, fruto da própria decomposição natural do corpo, que nos segue desde o
nascimento, mas acelera-se visivelmente nos últimos anos da velhice.
A impressão que temos é de que os dois filmes lidam com tragédias
inevitáveis, que podemos, no máximo, aplacar, na direção do fim inevitável de
qualquer pessoa: a solidão, a morte, o sofrimento brutal, a violência que
supera qualquer padrão de normalidade. As duas "histórias" − confesso
que fico pouco confortável para chamar o que vemos em Baixio de "história"; creio que esteja mais para
"fragmentos de um discurso grotesco" − trazem em comum, mais do que a
exposição de chagas profundas, um embate sobre a dignidade. Dignidade é algo
que cada um de nós luta diariamente para conquistar, para manter, na maior
parte das vezes com a ilusão de que ela dependa apenas de nosso esforço, de
nosso comportamento, de nossos cuidados pessoais. Infelizmente, dignidade é
algo que só existe em relação ao outro, na forma como escolhem nos ver e
tratar, baseada em nossos também vagos e subjetivos atributos pessoais, em
nossos bens materiais e conceituais ou, como acontece tantas vezes, nos valores
e interesses do outro e como nos encaixamos nesses determinados valores.
A esse respeito, percebemos, especialmente em Amor, que dignidade é, no máximo, uma
ilusão social, uma quimera, ou, caso exista, um simples fruto do acaso. Já no Baixio, o que nos agride é o exercício tão
desmistificador quanto em Amor que
nos faz pensar que a dignidade simplesmente não existe e que onde houver qualquer
tipo de relação de poder, haverá violência, ou pelo menos o terreno estará mais
do que preparado para que a violência exploda.
Baixio das bestas
e Amor são dois filmes de alta
corrente elétrica, que provocam choques daqueles que queimam a carne, deixam
cicatrizes. Por isso sequer recomendo a todos que os assistam, especialmente o
primeiro, pois há choques que em vez de ressuscitar, levam a óbito. Já o
segundo pode ser visto por quase todo mundo, especialmente pelos que têm medo
da morte e da velhice, não necessariamente nessa ordem, mas deve ser evitado
por quem viu recentemente algum ente querido perder a batalha contra o tempo −
a realidade pode ser ainda mais cruel que a arte. Contudo, Amor dá um novo significado à ideia de "até que a mote os
separe", muito mais profundo, verdadeiro e bonito. Ao assisti-lo,
lembre-se de que o amor não elimina o desespero. Desespero vomitado em Baixio das bestas sobre a barbárie que
nos assola, mas que ao longo de nossa existência preferimos, no máximo,
estetizar. Lembre-se de que Claudio Assis é o cineasta da
"antiestética", crudelíssimo, e, por isso mesmo, nos mantêm sempre à
flor da pele.
A bíblia fala em mortificar a carne para salvar o espírito.
Mortificar o espírito, que em geral anda tão dopado pelos absurdos
transformados em espetáculo ao nosso redor, pode nos devolver a humanidade.
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