quarta-feira, fevereiro 06, 2013

Jorge Amado e os rascunhos sagrados


Estive recentemente, e pela primeira vez, em Salvador. Um dos lugares que mais me agradaram foi a Fundação Casa de Jorge Amado, no Pelourinho. Aliás, o Pelourinho me agradou de um modo geral pela história que representa, pelas estórias das quais foi cenário: o Pelourinho é cenário de parte do imaginário de qualquer brasileiro.

No passeio pelo Pelourinho, mesmo antes de entrar nele, no Terreiro de Jesus, até, pelo menos, a Igreja do Carmo, uma estranha inversão de devoções se dava, tendo Jorge Amado com um de seus personagens principais: nas igrejas, de São Francisco, de Nossa Senhora dos Pretos e do Carmo, os turistas, que se acotovelavam sem muita reverência pelas imagens, pelo templo em si, pelas missas que mais de uma vez as vi sendo celebradas, falavam alto, tiravam fotos com seus flashes a estralar, zanzavam daqui pra lá, hipnotizados pelo ouro, pelas curvas das esculturas, mas também pelo deslumbre que intoxica qualquer forasteiro a ponto de deixá-lo ao mesmo tempo um alvo fácil para picaretas em geral e de não respeitar o sagrado alheio, o sagrado do nativo, a ponto de não entender o sagrado.
Já na Fundação Casa de Jorge Amado, dedicada à obra do mais famoso escritor baiano, em vez de falatório, desrespeito e uma boba alegria irreverente, as pessoas falavam baixo, contemplavam embevecidas os objetos pessoais do escritor, os fac-similes dos originais de seus romances, liam com reverência ritual as placas que davam informações sobre livros, viagens, sobre o fardão da Academia Brasileira de Letras. As máquinas fotográficas também pipocavam, sem flashes, mas o clima de templo era muito maior do que encontrei nas igrejas quando os turistas estavam nelas.
Talvez isso tenha ocorrido porque tive o desprivilégio de ao menos uma vez, visitar as igrejas na companhia de muitos turistas desses que andam em bandos, passageiros de cruzeiros marítimos, que não diferem a contemplação de uma igreja e um passeio de montanha-russa na Disney. Talvez porque as aglomerações façam de nós, seres humanos, animais agitados, ávidos por exibir nossa sabedoria, nosso tênis de marca, nossas câmeras moderníssimas. Na Fundação dedicada a Jorge Amado havia muito menos gente, nem todos literatos, todos se sentindo de algum modo ligados àquelas personagens, àquelas estórias, àquele cenário; uma ligação especial, um reconhecimento do valor da obra do escritor, uma alegria por ver de perto camisas, canetas, comendas, por saber os bastidores de cada livro. Reconhecimento, reverência e gratidão são elementos essenciais para que algo se torne sagrado.

Eu mesmo, que nunca havia lido um livro do autor, mas que me sentia uma espécie de sobrinho-neto dele, por ter passado uma fração não desprezível da minha vida assistindo a novelas, filmes e minisséries baseadas em sua obra, eu, que logo após aprender a ler, acho mesmo que a falar, já percebia uma certa mitologia que emanava de Capitães de areia, Quincas Berro D'água  e Dona Flor e seus dois maridos, que assistia capítulo a capítulo à novela Tieta, me divertindo e me chocando com sua história muito ousada para um folhetim que passava naquele horário, mas com as devidas inserções cômicas para aliviar a densidade dos temas, eu, que havia recentemente assistido a mais uma versão televisiva de Gabriela, me entreguei reverente e agradecido a tudo que via na Fundação, os prêmios, os "originais", as fotos, os fardões − de Jorge e de sua esposa, Zélia Gattai − das histórias que contextualizavam os livros e davam detalhes sobre seus nascimentos, mas, especialmente, diante de alguns fac-símiles de seus originais, de seus óculos, sua caneta e de sua máquina de escrever. Por quê?
Diante do cubo de vidro que protegia páginas, óculos, caneta e máquina de escrever, quedei-me agradecido, silencioso, a poucos passos da devoção. Emoção semelhante, creio eu, que deva sentir quem visita o endereço de Sherlock Holmes, em Londres, posto que Sherlock, os Buendía e Gabriela, Quincas, Tieta, embora sejam todos personagens de ficção. Conan Doyle, García Márquez e Jorge Amado são desses escritores que fazem personagens de ficção ganharem endereço de verdade.
Acho que a minha reverência − não direi devoção, essa eu tento entregar apenas em momentos ainda mais íntimos e especiais a um ser somente − aos originais, à máquina de escrever, peças sem valor artístico e que apenas por um acaso prosaico foram parar nas mãos de Jorge Amado, venha da capacidade do escritor de criar universos que se infiltraram entre nós como algo que nos espelhe, nos explique, nos divirta. E suas ferramentas para criar pessoas, mundos, universos, estavam diante dos meus olhos.

Eu, que não sou católico há muito tempo, respeito e reverencio as obras de arte que encontrei pelas igrejas baianas − o que será assunto para outro momento, em breve. Eu, que só agora começo a ler os livros de Jorge Amado e descubro que seus romances são muito superiores a qualquer adaptação televisiva ou cinematográfica que tenha visto até hoje, e cujo o desprezo acadêmico talvez nem se justifique, não iria me emocionar com o contato limitado e mediado por cubos de vidro com sua obra e, por que não dizer, com ele mesmo?

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