Estive
recentemente, e pela primeira vez, em Salvador. Um dos lugares que mais me
agradaram foi a Fundação Casa de Jorge Amado, no Pelourinho. Aliás, o Pelourinho
me agradou de um modo geral pela história que representa, pelas estórias das
quais foi cenário: o Pelourinho é cenário de parte do imaginário de qualquer
brasileiro.
No passeio
pelo Pelourinho, mesmo antes de entrar nele, no Terreiro de Jesus, até, pelo
menos, a Igreja do Carmo, uma estranha inversão de devoções se dava, tendo
Jorge Amado com um de seus personagens principais: nas igrejas, de São
Francisco, de Nossa Senhora dos Pretos e do Carmo, os turistas, que se
acotovelavam sem muita reverência pelas imagens, pelo templo em si, pelas
missas que mais de uma vez as vi sendo celebradas, falavam alto, tiravam fotos
com seus flashes a estralar, zanzavam daqui pra lá, hipnotizados pelo ouro,
pelas curvas das esculturas, mas também pelo deslumbre que intoxica qualquer forasteiro
a ponto de deixá-lo ao mesmo tempo um alvo fácil para picaretas em geral e de
não respeitar o sagrado alheio, o sagrado do nativo, a ponto de não entender o
sagrado.
Já na
Fundação Casa de Jorge Amado, dedicada à obra do mais famoso escritor baiano,
em vez de falatório, desrespeito e uma boba alegria irreverente, as pessoas
falavam baixo, contemplavam embevecidas os objetos pessoais do escritor, os
fac-similes dos originais de seus romances, liam com reverência ritual as
placas que davam informações sobre livros, viagens, sobre o fardão da Academia
Brasileira de Letras. As máquinas fotográficas também pipocavam, sem flashes, mas
o clima de templo era muito maior do que encontrei nas igrejas quando os
turistas estavam nelas.
Talvez isso
tenha ocorrido porque tive o desprivilégio de ao menos uma vez, visitar as
igrejas na companhia de muitos turistas desses que andam em bandos, passageiros
de cruzeiros marítimos, que não diferem a contemplação de uma igreja e um
passeio de montanha-russa na Disney. Talvez porque as aglomerações façam de
nós, seres humanos, animais agitados, ávidos por exibir nossa sabedoria, nosso
tênis de marca, nossas câmeras moderníssimas. Na Fundação dedicada a Jorge
Amado havia muito menos gente, nem todos literatos, todos se sentindo de algum
modo ligados àquelas personagens, àquelas estórias, àquele cenário; uma ligação
especial, um reconhecimento do valor da obra do escritor, uma alegria por ver
de perto camisas, canetas, comendas, por saber os bastidores de cada livro. Reconhecimento,
reverência e gratidão são elementos essenciais para que algo se torne sagrado.
Eu mesmo,
que nunca havia lido um livro do autor, mas que me sentia uma espécie de
sobrinho-neto dele, por ter passado uma fração não desprezível da minha vida
assistindo a novelas, filmes e minisséries baseadas em sua obra, eu, que logo
após aprender a ler, acho mesmo que a falar, já percebia uma certa mitologia
que emanava de Capitães de areia, Quincas Berro D'água e Dona
Flor e seus dois maridos, que assistia capítulo a capítulo à novela Tieta, me divertindo e me chocando com
sua história muito ousada para um folhetim que passava naquele horário, mas com
as devidas inserções cômicas para aliviar a densidade dos temas, eu, que havia
recentemente assistido a mais uma versão televisiva de Gabriela, me entreguei reverente e agradecido a tudo que via na
Fundação, os prêmios, os "originais", as fotos, os fardões − de Jorge
e de sua esposa, Zélia Gattai − das histórias que contextualizavam os livros e
davam detalhes sobre seus nascimentos, mas, especialmente, diante de alguns
fac-símiles de seus originais, de seus óculos, sua caneta e de sua máquina de
escrever. Por quê?
Diante do
cubo de vidro que protegia páginas, óculos, caneta e máquina de escrever, quedei-me
agradecido, silencioso, a poucos passos da devoção. Emoção semelhante, creio
eu, que deva sentir quem visita o endereço de Sherlock Holmes, em Londres,
posto que Sherlock, os Buendía e Gabriela, Quincas, Tieta, embora sejam todos
personagens de ficção. Conan Doyle, García Márquez e Jorge Amado são desses
escritores que fazem personagens de ficção ganharem endereço de verdade.
Acho que a
minha reverência − não direi devoção, essa eu tento entregar apenas em momentos
ainda mais íntimos e especiais a um ser somente − aos originais, à máquina de
escrever, peças sem valor artístico e que apenas por um acaso prosaico foram
parar nas mãos de Jorge Amado, venha da capacidade do escritor de criar
universos que se infiltraram entre nós como algo que nos espelhe, nos explique,
nos divirta. E suas ferramentas para criar pessoas, mundos, universos, estavam diante
dos meus olhos.
Eu, que não
sou católico há muito tempo, respeito e reverencio as obras de arte que
encontrei pelas igrejas baianas − o que será assunto para outro momento, em
breve. Eu, que só agora começo a ler os livros de Jorge Amado e descubro que
seus romances são muito superiores a qualquer adaptação televisiva ou
cinematográfica que tenha visto até hoje, e cujo o desprezo acadêmico talvez
nem se justifique, não iria me emocionar com o contato limitado e mediado por
cubos de vidro com sua obra e, por que não dizer, com ele mesmo?
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