Tempinhos
atrás, três, quatro anos mais ou menos, falei muito do livro A cabana. Do ponto de vista literário
ele não me agrada, lia o tempo todo sem achar uma frase que me surpreendesse
esteticamente, a cada quadro, como se fosse um filme da Sessão da Tarde, eu
ficava com a sensação de que já havia visto ou lido coisa semelhante em algum
lugar.
Também e
talvez principalmente me incomodou o modo como Deus era retratado. Não, ver o
pai como uma mãe americana típica não foi um problema, nem o fato de ela ser
negra pareceu novidade, posto que Ariano Suassuna já fizera o mesmo há muito
tempo sem causar alarde algum. O Espírito Santo ser uma asiática ou Jesus ser
um self-made man com traços árabes também
não assusta. Mas fiquei achando que alguns dos diálogos da Trindade poderiam
ser um pouco mais inteligentes em vez de ficarem apenas rodando em torno de
estereótipos do que poderia ser o comportamento padrão da família americana
feliz; não adianta nada colocar um árabe e uma coreana na conversa, se é para
os dois agirem como membros de uma família estadunidense suburbana, a coreana
meio bicho grilo, o árabe meio desastrado. Algumas espertezas, como a inclusão
de um palavrão para agradar aos religiosos "outsiders", elementos do
espiritismo chapa-branca hollywoodiano, mais uns fumos de religiões orientais,
numa sopa sincrética, ou "eclética", como gostam de dizer os músicos
que carecem de personalidade, mais a ideia completamente "inovadora"
de que o amor e o perdão superam tudo completam o que para mim é A Cabana.
Nada contra
ecletismos, desde que sejam autênticos, e não um jargão para anabolizar
talentinhos. Já com os sincretismos eu tenho algumas ressalvas, pois música a
gente pode misturar, a qualidade dependerá da competência do compositor; já
crenças inconciliáveis, quando juntas, podem cair na hipocrisia ou virar um
golpe publicitário a mais. A sopa sincrética da Cabana, dizia eu, serve para esquentar a barriga de leitores
afeitos aos best sellers, ou a uma
crença em um amor que, em vez de tudo saber, como escrevera o apóstolo, tudo
ignora. E Deus, dialogando consigo mesmo de um modo entre aparvalhado, místico-misterioso...
Aliás, sempre
que Deus fala, no cinema, na televisão ou na literatura, fico incomodado,
especialmente quando a obra pretende ser séria; nas comédias, estando explícito
o contrato de que aquilo não pode ser levado ao pé da letra, estando aberta a
intenção do autor de fazer chacota, ou de levar a uma reflexão apoiada no riso,
acho algo digno, honesto. Já nos textos que se pretendem sérios, que planejam
levar uma "mensagem profunda", fico cismado, desconfiado e já parto
com uma certa antipatia. Reconheço meu preconceito e não o considero bonito.
Mesmo assim pretendo explicá-lo.
Todo mundo
que acredita em Deus, ou em alguma manifestação do sobrenatural que tenha
controle sobre as próprias ações e pensamentos, independente de sua religião
particular, de seu ponto de vista, imagino, crê em algo que pensa, que tem
personalidade, que existe independente de nossa existência, que está em nós antes mesmo de conseguirmos elaborar uma frase do
tipo "mãe, terminei". Gosto muito de um verso de Arnaldo Antunes que
diz "O que se crê não se cria", da música Medo. Acho que o compositor nem acredita em Deus, mas concordo com
ele: não creio que o Deus em quem acredito tenha sido criado, mas que Ele é
criador.
Apesar disso,
ao escolhermos alguma forma de fé, temos o péssimo hábito de dar algumas
desbastadas nas arestas para que a divindade se pareça conosco. Isso é natural,
embora não seja plenamente honesto. Natural, mas esdrúxulo, e vemos isso com
clareza nas demais relações interpessoais que mantemos. Tentamos deixar marido,
esposa, filhos, amigos, cachorros, colegas de trabalho, de igreja, virtuais,
nossos alunos e mestres, todos eles parecidos conosco, ou próximos daquilo que
consideramos ideal. Deus é Deus, seu status não muda, mas se ele ficar parecido
comigo, terei um pouco de divindade em mim,serei menos contestável, minha
consciência não terá grandes conflitos, estarei do lado da razão, do bem, da
verdade. Adorar a um deus parecido comigo é também adorar um pouco a mim mesmo,
é deixar-me mais poderoso!
Aí eu sempre
fico a pensar que um livro que traz Deus como personagem, que pretende, cheio
das boas intenções, mostrar a Deus "como Ele realmente é", na maioria
das vezes traz o próprio autor - nesse caso não falo de narrador, mas de autor,
mesmo - travestido de Deus. É desonesto colocar nossas palavras na boca de
alguém com a intenção de legitimar nossas próprias opiniões. Políticos fazem
isso o tempo todo, e não gostamos do que políticos fazem conosco o tempo todo,
certo?
Esse recurso
narrativo, ficcional, repito, só teria sentido, só seria legítimo dentro de um
outro contexto, que explicitasse as regras do jogo, que a ficção nunca deixasse
de estar às claras, e não para usarmos o prestígio de alguém - Deus ainda tem
prestígio, apesar de esforços universais para sujar sua imagem - para, muitas
vezes, subvertermos as palavras de alguém, para o trairmos.
Mesmo que o
resultado final seja bonitinho, "uma mensagem de amor e esperança para
todas as pessoas", o processo é altamente desleal e, por não buscar a
verdade, mas tentar forjar uma, sempre tem um pé na mentira.
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