É certo que existem amizades que podem superar coisas
aparentemente inconciliáveis. Hoje, na escola, presenciei algo que vinte anos
atrás seria bem pouco provável e, na verdade, atualmente, entre adolescentes,
bastante difícil de acontecer: dois colegas de classe, aspirantes a cantores,
um de pagode, outro de rock, ao ouvirem a minha sugestão de futuramente
gravarem um disco que misturasse os dois estilos – algo dito de brincadeira,
pois não aguento mais essas antropofagias sincréticas mercadológicas – não
fizeram cara de nojo ou espanto; na verdade, acharam algo interessante, ainda
que pouco viável.
Amizades nascem de afinidades, lógico, mas não precisam segregar
os diferentes. Meus melhores amigos da adolescência gostavam do mesmo estilo de
música que eu; os dos tempos de faculdade, dos mesmos escritores, outros
catados por aí, tinham afinidades ideológicas, e muitos não têm quase nada em
comum, tirando o fato de compartilharmos a mesma fé.
Na verdade, eu sempre fui alguém deslocado: na família
católica, era o “bode protestante”; na igreja batista, o “roqueiro socialista”;
entre os parceiros de música, o “crente que curtia MPB”; na faculdade, o “tonto
religioso de direita”, por não apoiar partidecos bolcheviques e assembleias
estudantis mais viciadas que roleta de cassino clandestino. E em todos esses
lugares convivi com pessoas admiráveis, mantive amigos, alguns perdidos, outros
distantes, outros sempre por perto.
Se é possível construir amizades entre pessoas tão
diferentes, também é possível sufocá-las até mirrarem. Não pergunto sobre as
obviedades, traição, dinheiro, mulher. Nesses casos, muitas amizades não eram
sinceras, outras, de tão verdadeiras, com uma boa dose de perdão e tempo, podem
reflorescer. Não falo da distância física, que até pode alargar os
relacionamentos, mas todo mundo tem aquele amigo que não vê há muito tempo e num
simples restabelece a intimidade o afeto escondido debaixo da poeira das
obrigações. Então, o que pode gerar um rompimento?
A amizade sempre gravita em torno de um ponto de afinidade.
Aquele meu amigo ex-malufista, corintiano, admirador de regimes totalitários,
chegado a formas militares de administração, frequentava a mesma igreja que eu.
Posso dizer, com medo de parecer piegas, que Jesus nos unia. Mas seria só
Jesus, o que para nós não é pouco, se eu, na convivência com ele, não visse ali
um cara que busca sempre a justiça, que é solidário, humilde de verdade,
generoso, responsável, verdadeiro, divertido, afável. E essas qualidades foram,
com o tempo, ocupando espaços em minha vida, a ponto de ele ser mais próximo e
querido por mim do que muitos outros com menos “defeitos” – sei que as aspas
são desnecessárias, estão aqui para fazer média.
Aí eu penso, se esse meu amigo, de repente, perdesse a
generosidade e virasse um cara mesquinho, arrogante, soberbo? Aí, o ponto de
afinidade ainda nos uniria, embora nossas relações esfriassem
significativamente. Se, além dessas mudanças todas um de nós deixasse a fé, é
provável que a amizade terminasse – embora, eu deva dizer, não sei o que esse
cara viu em mim para que fôssemos amigos.
Então a amizade acaba quando as pessoas mudam, seguem
trajetórias diferentes, quando um passa a desprezar, ou odiar, aquilo que o
outro ainda admira, caso não tenham surgido outros pontos de contato. Quando os
rumos divergem, a lembrança dos bons momentos vividos pode sustentar a relação,
mas ela será cada vez mais frágil. Caso a admiração, ou a gratidão, coisas
comuns entre amigos, se esfacele, fica, no máximo, a obrigação e o respeito de
protocolo, que é a morte de qualquer amizade, mais letal que a traição, eu
acho.
Tenho observado amizades que passam por períodos críticos.
Uma frustração – “achei que poderia contar com aquela pessoa nesse momento tão
difícil” – a perda do ponto de contato – “antes a gente pirava naquele autor,
agora o cara diz que só os ingênuos podem gostar daquela porcaria” – o cultivo
do rancor, que é o cupim dos relacionamentos. Também percebo que a ausência
indiferente pode corroer.
Mas, acredito, por fácil que seja ver uma amizade se
desmanchar igual chocolate fino em língua de criança, o perdão é o melhor
desfibrilador. A saudade também pode ajudar muito nesses casos. Se não pode
haver perdão, se não existe saudade, será que um dia houve mesmo amizade?
Um comentário:
Pedro, manda teu texto pro Off-Granta.
http://offgranta.wordpress.com
Abraço,
Marcos
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