Tenho uma trava quando escrevo. Sempre penso em parentes e parceiros de
fé que abominam palavrões e assuntos mais picantes, violentos etc. Bobagem
minha. Há coisas mais relevantes acontecendo no mundo, há urgências
enfurecidas, há desesperos legítimos que não podem ser sufocados por regras de
etiqueta ou pelo uso de uma ou outra palavra mais dura ou chula.
Emicida foi preso em Belo Horizonte ontem à noite, justamente no dia 13
de maio. A data e o motivo da prisão são tão violentamente simbólicos que não
podem passar desapercebidos. O cantor e compositor foi detido por cantar uma de
suas músicas, Dedo na ferida. Parece que
a ferida ainda sangra e está bastante sensível.
Emicida volta a sua ira para as leis que servem aos ricos em detrimento
dos pobres indefesos. “Pobres indefesos”, eu sei, é um clichê de pouca
reverberação atualmente, mas quem não tem onde morar, é esquecido pelo governo
e constrói sua casa em um terreno sem utilidade, de propriedade de um famoso e
milionário especulador, desses que despreza a lei, pode ser muitas outras
coisas, mas não deixa de ser pobre e indefeso. Sim, falamos da selvageria
ocorrida no Pinheirinho. Emicida também fala em Dedo na ferida do ocorrido na cracolândia e em muitos outros
lugares onde a violência é colocada na frente da humanidade, aparentemente para
que a lei seja cumprida.
Acontece que as leis deveriam estar a favor da justiça, o que não
acontece com a regularidade esperada. As leis deveriam estar atreladas ao
bom-senso e não poderiam, em hipótese alguma, serem usadas como pretexto para
proteger os afortunados. E a polícia não deveria ser confundida com agentes
particulares de criminosos de colarinho branco.
É daí que vem a ira de Emicida. É daí que brotam as palavras rosnadas em Dedo na ferida. Nela, o raper nos lembra
que um dos bairros mais nobres da Grande São Paulo, Alphaville, surgiu a partir
de uma invasão. Invasão para que mansões fossem construídas. Fato que me lembra
que em um bairro que eu conheço, muitas ruas não eram asfaltadas – ruas com
mansões, vale ressaltar, transversais às avenidas, estas sim, pavimentadas –
apenas para que seus moradores abastados – bairro erguido em área de
mananciais, de forma bastante irregular – não pagassem IPTU elevado. Gente nojenta,
essa.
A alegação da polícia para deter Emicida foi a de que ele teria incitado
o público de um show à violência, levantando o dedo do meio, aquele mesmo que
pode levar sua mãe a estapeá-lo caso você o mostre a alguém, para a polícia. Isso
foi considerado desacato. Eu não estava no show, não vi imagens e não posso
afirmar que o cantor não tivesse se excedido. Contudo, é fato escancarado que a
polícia se excedeu na desocupação do Pinheirinho, que a polícia nunca foi
enviada para desocupar terrenos ocupados por mansões. Até aí, apenas o silêncio
indiferente de boa parte da população para Pinheirinho, Cracolância, assim como
para a chacina de Eldorado dos Carajás, e para as carnificinas promovidas por
policiais pelas favelas e campos Brasil adentro.
Comecei o texto falando do meu receio em usar palavrões em meus textos. Isso
se deve em parte pela minha vontade de não usar este recurso tão exageradamente
desperdiçado por tantos escritores da atualidade, mas também ao receio de me
ver dando muita explicação aos meus parceiros de fé, os protestantes
evangélicos. No entanto, boa parte desses meus parceiros andam muito mais
preocupados em engrossar correntes homofóbicas, muitas vezes sendo mera massa
de manobra nas mãos de pastores raivosos, como Silas Malafaia, sem se dar conta
de que o confronto com os gays tem sido travado de modo nada cristão, com mal
disfarçadas incitações à violência e com uma intromissão na vida privada das
pessoas que não encontra eco nas pregações de Jesus Cristo.
Esses meus irmãos, infelizmente, não se dão conta de que é necessário
olhar e defender os desabrigados escorraçados de Pinheirinho, os viciados sem
pente nem dente da Cracolância (felizmente, neste caso posso afirmar que a Primeira
Igreja Batista de São Paulo não ignorou as vítimas das drogas que perambulam
pelo centro da cidade), e acham que o diabo mora exclusivamente no meio dos
homossexuais. O diabo, meus irmãos, também está no meio da igreja, habita em
nosso descaso, nas inversões de prioridades, nos púlpitos parciais, entre os
políticos corruptos, muitos dos quais nossos “irmãos”, e em todo tipo de
injustiça.
Pensando nisso, a minha vontade é de gritar bem alto os mesmos palavrões
que o Emicida vocifera em Dedo na ferida.
Acho, exagerando nas tintas, que os palavrões do Emicida são o correspondente
atual da nudez do profeta Isaías lá nos tempos veterotestamentários.
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