segunda-feira, fevereiro 07, 2011

NELSINHO SOU EU

É de arranhar o asfalto até o cotoco dos dedos; aí, deixa o sangue penetrar no chão preto e espera brotar uma flor bem roxa ou um pé de capim-santo.
Tomo muito ônibus, que é pra diluir melhor a cidade. Todas as saias, todas as bocas, todos os tops, piercings (se for no umbigo, então!), tudo espreitado, demarcado, cadastrado nas pupilas; todas as mulheres me ignoram.
Toda tarde, sol rachando ou chuva estrondando, venho me resvalando nas donas, encompridando olhares, paquerando revistinhas sujas em bancas chiques. O delírio é tamanho, ninguém me acode! Nem a Bíblia me salva: a mente maquina castelos de papelão que escondem nossas ruínas.
No trabalho, no estudo, as mesmas pernas diariamente a me zombar. Os mesmos decotes me desdenham. As mesmas bocas, cientes ou desavisadas, vermelhas, castanhas, rosinhas (ai de mim!) negam beijos, apupam. Pra quem sorriem todos esses dentes? De mim? ladrilho quebrado debaixo da pia, ninho de baratinhas é o que sou? A borrinha de chocolate quente no fundo da xícara, doce, amorfa e medonha? Palhaço do último circo de cavalinhos?
Sem talento ou coragem para encarar o globo da morte, sento no primeiro banco, saquinho de pipoca murcha na mão, as calças frouxas. A trapezista ricocheteia lentamente no ar, bamboleando no salto sem rede de proteção, maiô branco e purpurinado a planar, pernas rijas, busto estreito buscando o consolo da mão forte e amiga, que não a alcança: se caísse estrebuchando aos meus pés, pedindo perdão e beijinho...
Liberdade, Centro Velho, Boca do Lixo: a dez reais, um alívio rápido; a vinte a rapidinha, como cachorro na sarjeta; quarenta, uma lerda e suja tarde sem prazer, me jorrando em lençóis encardidos, coxas e costas um repasto de pulgas, rodelas de micoses múltiplas pelos recôncavos do corpo. Nos orelhões, etiquetas anunciam as maiores mentiras — ninfetas carinhosas, coroas fogosas, loiras naturais, casadas ninfomaníacas — e eu sempre correndo atrás do meu sonho de curto alcance: satisfação zero, sem dinheiro de volta. E amanhã recomeço, rolando minhas pedras pelas ruas nesse imenso, imundo cabaré.
Nas noites, o medo do maníaco estripador, batedor de carteiras, lobisomem de becos e viadutos — até a loira do banheiro me atordoa — só aumenta a procura pelas falsas vítimas: o coitado sempre sou eu. Sem dinheiro para investir nas bolsas, me desfaço em furtivos olhares, negaceio piscadelas insinuantes, acato ares de desdém, engulo muxoxos, “sempre esse carrapato se arrastando por aqui; qualquer dia estalo ele que nem pulga, na pontinha da unha, só pra ver a baba da lesma escorrer na sarjeta” (nessa fala me derreto todo!).
Mulheres cansadas, sorrisos de amostra grátis, cabelos fedidos (uma pasta só), pulmões defumados pelo cigarro mata-rato, pernas tortas e crespas, mapas hidrográficos em relevo (quem aguenta tanta variz assim?): com o que sonham ao luar, empoleiradas em portas de bar, estampadas em muros? Transidas de frio na beira do rio seco de piche, suadas e cheirando a pó de arroz pirata, abafadas noites adentro, o que desejam, damas, comigo? De mim? Resistiriam à proposta de louco amor, intensa aventura em quarenta minutos, mais banho e um drink, com desconto especial? Eu, o novo motivo de escárnio na cidade turva. Gigante adormecido escondido sob o capuz, sem direito a ensaio, impossível fazer a grande mágica acontecer. Elas tantas e eu tão só dentre todas.
O neón quebrado anuncia a Pan rs: o cartaz desbotado convida: Ana Hegel, a filósofa do prazer, em show ao vivo! O local do preço decalcado várias vezes. A moça das fotos, feinha, porém bem preenchida de carnes moles, faz cara de sonsa, morde o beicinho, usa calcinha branca; seus peitos crus (certamente mochibentos) nos desafiam pela mágica do Photo Shop. Bolso cheio e eu não rondaria ruas, pés em carne viva, buscando a última das bêbadas, de graça ou por preço justo. Na porta do inferno, o velho leão de chácara sem o canino esquerdo soleniza: dê cifra ou vaze. Bolso vazio, vazo.
Largo da Batata, Moema, Santo Amaro, Socorro: a última ronda, de ônibus, do rei menos o reino; nenhuma torta disposta a me redimir. Em casa, me entrego ao prazer solitário e a uma sopa de ervilhas: que a vida é feita de desafios.

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