quarta-feira, agosto 27, 2008

Um Terço de Cinismo, Outro de Intolerância

Viram a foto de Carol Castro na revista Playboy, com um terço no pulso e um seio nu?
Viram a repercussão que essa foto gerou, com alas da igreja católica querendo proibir a venda da revista?
Sabe as pessoas que criaram essa polêmica? Jogaram a foto na mídia, aumentaram as vendas da revista, expuseram o que queriam esconder.Sendo que só lê a Playboy quem quer ver mulher nua ou ler as entrevistas e matérias – minha noiva nunca acredita na segunda opção – fica a pergunta: como essas pessoas puritanas souberam da tal foto do terço?
O Brasil Desbotou

Para o Brasil as Olimpíadas terminaram com gosto de cabo de guarda-chuva. O vôlei masculino de quadra, um de nossos ouros garantidos de quadra perdeu. Acabou a hegemonia brasileira, a geração de Giba, Bernardinho e Ricardinho – não o esqueçamos, pois ele deve ter batido muito tambor de vodu e amarrado os nomes dos jogadores brasileiros na boa do sapo – se despede triste, de cabeça baixa.
Antes das Olimpíadas, algum site fez uma projeção das medalhas de ouro que o Brasil poderia ganhar: cinco. Ficamos em três. Não é bom, não é ruim, apenas um dado que não servirá para muita coisa nos próximos quatro anos
Ao longo das competições, e ainda mais um pouco durante essa semana, ouviremos falar em investimentos para o esporte, em falta de garra, em comodismo. Farão comparações entre o Brasil e o Quênia, Jamaica, Etiópia, Grã-Bretanha, dirão que o nosso desempenho foi muito ruim. Muito papo furado, tudo desfocado e repetitivo. Ouço essa ladainha desde as Olimpíada de Los Angeles, em 1984, as primeiras que acompanhei sabendo mais u menos o que estava acontecendo. Ouviremos a mesma conversa em Londres, 2012.
Olhar para o quadro de medalhas é uma idiotice. Os únicos países que se preocupam com o quadro geral de medalhas são os que pretendem fazer uso político das conquistas esportivas – EUA, China, a antiga URSS, Cuba. Países desenvolvidos não esquentam com a colocação geral nos jogos e valorizam devidamente seus atletas. Há esportes que não dizem nada ao brasileiro, mesmo alguns em que temos alguma tradição olímpica.
No Brasil há um fenômeno esquizofrênico em boa parte da mídia e na população em geral. Atletas lembrados apenas em épocas de pan-americano em Olimpíadas são cobrados exageradamente, carregam uma responsabilidade que não é deles. Como nossas chances reais de medalhas são geralmente poucas, os atletas que chegam em condições reais de alcançar o pódio são vistos como salvadores do mundo, como heróis, no sentido infeliz da palavra. Quando vencem, são exageradamente festejados, para que nos esqueçamos rapidamente dos que nos frustraram; aliás os que perdem são massacrados. Invariavelmente, pouco tempo depois dos jogos, todos são esquecidos – as pessoas, de ressaca dos jogos, querem saber de outros assuntos, os atletas que se virem.
Segue um resumão do que foram os jogos para os brasileiros.

E as Meninas?

Espero que a derrota do time de Giba – nesses jogos o time foi mais de Giba que Bernardinho, que estava meio Parreira – não ofusque a vitória incontestável do time feminino frente aos EUA. Finalmente elas chegaram lá! Perderam a fama de amarelar, jogaram realmente como as melhores do mundo! Apagaram o fantasma do 24x19, o trauma de se apequenar diante das cubanas – que perderam bonito para nós no Grand Prix.

Sacode a poeira e dá a volta por cima, Maurren!

Da acusação de doping, de quase encerrar a carreira prematuramente, após 24 anos de seca de ouro no atletismo, Maurren virou notícia boa! Três meses, depois de passar no Faustão e no sofá da Hebe, ninguém mais vai se lembrar dela.
E o Cielo?

Só se surpreendeu com o ouro de Cielo quem não o viu nadar no pan-americano. Falou-se em Caio Márcio, principalmente em Thiago Pereira, talvez, sei lá, por questões de publicidade, mas Cielo era o cara. Foi gostoso se emocionar com ele, que fez história na natação. Bonitão, provavelmente terá futuro como garoto-propaganda, mas popularizar a natação no Brasil não é com ele – esporte caro para s nossos padrões, deveria caber ao governo espalhar piscinas pelo país.

“RRRRRRRRRRRRRobert Scheidt”, como diria Galvão Bueno?

Robert Scheidt é um cara especial, campeão incontestável, conquistou sua quarta medalha olímpica, essa ao lado de Bruno Prada, e as meninas – não me lembro do nome delas – trouxeram um bronze, a primeira medalha feminina na vela. Mas, convenhamos, iatismo é esporte de elite, de pouca emoção para quem assiste e empolga muito pouco a massa. Para a grande maioria do povão, sem desmerecer o mérito de nossos medalhistas olímpicos, as conquistas serviram mais para preencher o quadro de medalhas.

Edinanci?

Sempre torço pela Edinanci, que tem uma trajetória peculiar no judô brasileiro. Na luta em que perdeu o bronze, a cara de desespero para se desvencilhar da coreana foi de partir o coração – mais do que a queda do Hippólito. Não trazer a medalha não faz de Edinanci uma perdedora.

“O Caso da Vara”

Fabiana Muren, atleta brasileira que tinha plenas condições de subir ao pódio, acabou perdendo a disputa porque sumiram com a sua vara! A russa recordista mundial – não me arrisco a escrever seu nome – não sabemos se cínica ou sinceramente, disse que só não emprestou uma vara para Fabiana porque não viu o que se passava no momento. Boicote? Sabotagem? Desorganização pura? O fato é que essa lambança não tirou o brilho da russa – Isinbhaieva?– que depois de conquistar o ouro ainda quebrou os recordes olímpico e mundial, que já eram dela. Fabiana merecia maior respeito. Sumir com a vara da atleta foi o fim do sarrafo!

E o futebol?

O masculino não merece comentário algum. O feminino perdeu na bola e não pode reclamar. Poderia ganhar? Sim, mas não jogou o suficiente para trazer o ouro. Apenas isso. Lamentamos porque Cristiane – mais até do que a Marta, que não jogou tudo que poderia – deu show nos jogos. Mas o esporte não tem compromisso com a justiça, ainda mais o futebol, que, como diria o doutor Sócrates, é o único esporte em que um time pode jogar melhor que o outro e perder. Contudo, esse não foi o caso.

Pangarés

Esporte chato, elitista e que, no caso do Brasil, teve cavalo desqualificado por problemas de saúde e por doping! Cavalo dopado é de doer!
Pareceu até metáfora da elite brasileira: manca ou dopada, almejando o glamour e alcançando o ridículo. Se machado de Assis fosse vivo, que crônica não escreveria sobre os nossos nobres cavaleiros

Basquete? Handebol?

Mais atitude e melhor sorte em Londres. Apesar de todas as adversidades que esses esportes enfrentam no Brasil – cartolagem incompetente, falta de espaços e recursos, tratamento mais do que amador – poderiam ter ido adiante. Se apequenaram, essa é a verdade.

E o Diego?

A ginástica é o mais cruel dos esportes olímpicos. O atleta pode apresentar exercícios perfeitos e ser desclassificado por um pequeno deslize, no último momento, como foram os casos do brasileiro, do romeno e da chinesa, todos entre os favoritos. Aí, aquele atleta que nem foi tão impressionante, mas que não tropeçou, não caiu, não se desequilibrou, até porque ousou menos, acaba levando.
Mas triste mesmo foi ver o Diego pedindo desculpas ao Brasil por ter errado. O Brasil não tem o menor direito de exigir nada de seus atletas! Diego, por mais talentoso que seja, só é lembrado pelo grande público em época de Olimpíada, sofre com o preconceito por praticar um esporte que não é considerado “de macho” e por seu jeito, digamos, “meigo” de falar. Agora, só vão se lembrar dele em Londres, e isso se ele estiver em condições de disputar o ouro novamente, e ainda dirão: vê se não amarela dessa vez, ô rosa-choque!”


E a Falavigna?

Em Atenas bateu na trave; agora levou o ouro. Vai ter festa na federação do esporte dos chutes, churrasco na casa dela e só.
O Fogo Amigo de Alessandro Buzzo: Guerreira
(texto escrito em dezembro de 2007)

Acabo de ler Guerreira, de Alessandro Buzo, livro da coleção Literatura Periférica, organizada pela Global Editora. Buzo não é um estreante: faz parte da primeira leva de escritores da periferia que falam da e sobre a periferia, ao lado de Ferréz, Sérgio Vaz e Paulo Lins, num movimento que nasceu espontaneamente e adotou o nome de Literatura Marginal. O autor não concluiu o Ensino Fundamental, como gosta de anunciar, mas sabe escrever muito bem, sim senhor. Não é um aventureiro das letras, como muitos gostam de tratar esses escritores: ao que parece, não escreve apenas por vaidade – todo artista tem vaidade – deslumbramento ou ilusões financeiras. Leva a Literatura a sério e a empunha como arma, denunciando e combatendo com sua arte a injustiça social.
A escrita de Buzzo propõe desafios ao leitor, seja ele da periferia, classe média, intelectual, pouco afeito à leitura... o autor tem preocupações estéticas – não sei se essa é a palavra – bastante delineadas e distantes umas das outras, o que torna o seu trabalho bastante complexo.
Questões complexas, muitas vezes, pedem soluções simples, e a simplicidade pode ser genial ou prosaica. É difícil acertar a dose, ainda mais quando nossas pretensões são elevadas e almejam ao mesmo tempo o pragmatismo um tanto panfletário e o caráter literário que um texto pode proporcionar. Só a prática do escritor, que é feita não apenas da produção, mas também das leituras e experiências que se acumulam ao longo da vida, pode ajudá-lo a superar ou transgredir as barreiras de gênero e de valores estabelecidos pelo universo literário – composto por escritores, leitores, críticos, editores, etc. – proporcionando uma obra que seja sim política, como Buzzo pretende, mas que não abra mão da estética – com certeza, essa é a palavra. Desafio dos mais interessantes, esse, que muitos escritores se dedicam a superar – e que boa parte dos críticos prefere ignorar, seguindo o caminho mais curto do elogio rasgado e pouco consistente ou da crítica superficial e agressiva, principalmente quando falamos de Literatura Marginal Periférica. Aliás, quando surge algo novo, é sempre necessário ter paciência com a crítica, que se move de maneira muito mais lenta que a arte. A Literatura Marginal Periférica (até esse nome precisa mudar) ainda não forjou seus críticos, embora já haja pessoas a estudando nas universidades.
Entre escrever para os moradores da periferia (e aqui há evidente reducionismo do que seria um “morador da periferia”: estereótipo que curte rap, fala gíria etc.?) e apresentar a periferia à classe média e acadêmica (pensando novamente em estereótipos), Buzo fica rigorosamente no meio do caminho: volta-se para seus vizinhos do Itaim Paulista, seus parceiros que moram dos dois lados da Represa Guarapiranga, mas tenta apresentar alguns aspectos da rotina do subúrbio para o público consumidor de livros em geral – o eterno desafio dos escritores de países pobres e pouco escolarizados: escrever o que para quem, mesmo? Falar da própria aldeia, correndo muitas vezes o risco de reforçar e exportar clichês? falar para os pares, forjando uma linguagem que seja antes de mais nada entendida e admirada no próprio berço para depois, se calhar, angariar mais leitores fora dos limites geográficos, no caso, das beiradas urbanas? Buzo almeja os dois públicos – como boa parte de quem escreve: quer leitores – mas quem tenta agradar a todos caminha para o desagrado geral, ou abre mão de maior profundidade em seus trabalhos – isso ainda não aconteceu com ele, bem sabemos, mas é um risco iminente.
Guerreira preocupa-se com a mensagem a ser passada e com os seus leitores distintos com tanto afinco que acaba deixando em segundo plano a estrutura do texto, com a elaboração literária em si. É como se os episódios apresentados fossem tão fortes que seu simples relato bastasse para atingir o leitor da maneira esperada. Porém, com grande receio de não se fazer entender por esse ou aquele, o texto traz explicações/ “traduções” de algumas gírias usadas na periferia, pois o narrador (ou o autor, às vezes é difícil separar um do outro) não se sente plenamente seguro de que seu texto dá ao leitor os subsídios suficientes para se fazer entender. Contar com a preguiça do público e tentar contorná-la é uma das maneiras mais fáceis de empobrecer um texto, pois não permite a este que se defenda, se sustente sozinho, e direciona demais a visão do leitor, atrapalha a reflexão, se aproxima do didático – e a Literatura didática tende a morrer mais cedo.
O excesso de explicações e a ânsia de passar mensagens positivas, da personagem que se dá bem após vários deslizes e desencontros, mas que se redime quando consegue abandonar as drogas – e aqui, curiosamente, “redenção” é sinônimo de dinheiro no bolso e “vida mansa”, não importando de que maneira esse dinheiro tenha chegado a ela – gera um lugar-comum que, esperava-se, fosse evitado e até mesmo criticado por autores que se pretendem “marginais”, colados à “realidade”. A narrativa acaba de certa forma retornando para as fábulas e contos infantis, para as parábolas, ou para o esquema apresentado nas novelas, quando felicidade e realização são sinônimos de riqueza e relacionamento amoroso estável. Roubou, enganou, extorquiu, prostituiu-se e matou, mas livrou-se das drogas? Ótimo, você merece um prêmio. Com esse esquema de sofrimento e redenção pelo amor e pela “tão sonhada independência financeira”, para usarmos o clichê preferido dos jogadores de futebol que vão jogar no exterior, Guerreira reforça uma visão de mundo burguesa, capitalista, que, em princípio, interessa muito pouco aos escritores marginais – aqui, marginal é um termo mais amplo, que pode incluir João Antônio, Fernando Bonassi, Marçal Aquino e toda Geração Mimeógrafo, de Paulo Leminski a Chacal, de Ana Cristina César a Cacaso, assim como Paulo Lins e Sergio Vaz.
Ainda que o autor diga que não pretende deixar uma moral específica em seu texto, alguns elementos podem facilmente desmenti-lo. O primeiro deles é o título: Guerreira indica que teremos uma personagem que luta o tempo todo por uma causa, no caso, a sua própria, e que pelo seu esforço e determinação, em princípio, merece o nosso respeito e até simpatia. A guerreira que conhecemos, no entanto, nem sempre está lutando – muitas vezes está apenas acomodada a uma situação, seja ela confortável ou deprimente – quando decide lutar, sempre pela satisfação pessoal, que ora se reflete nas drogas, ora no sexo e nas drogas, ora na manutenção de um amor puro e ingênuo, ora na ascensão social pelo viés da prostituição ou da chantagem, até chegar finalmente na vida próspera e tranqüila nas praias do Nordeste, ao lado de um rico empresário – que já fora seu amante e patrocinador.
Guerreira, o livro, padece de uma estrutura mais complexa, pois da maneira que foi escrito não conseguiu se livrar de uma série de estereótipos que, acreditamos, o próprio autor gostaria de rejeitar. Sua opção pela periferia, pelos menos afortunados, não deveria permitir que a história ficasse tão repleta de obviedade e com um subtexto que exalta justamente aquilo que deveria combater, a saber, a idéia de que dinheiro e conforto, não importa de onde venham, trazem a felicidade. Isso, para manter a coerência de seu projeto político. Nem o estilo “Robin Hood sexual” salva a nossa guerreira. O fato dela ter tirado dinheiro de ricos via prostituição para fazer o seu pé de meia – e para consumir mais drogas – não faz dela uma heroína, uma vingadora dos menos afortunados. Afinal, ela oferece aos endinheirados aquilo que eles querem receber, e nenhum deles está sendo enganado ou lesado, nem ela usa o dinheiro para fazer alguma bem-feitoria solidária – interessa sempre a satisfação pessoal.
Guerreira luta em causa própria, não ensina nada a ninguém e ainda se dá bem. Normal, já que os escritores ainda têm o direito inalienável de abordar o tema que quiserem, da maneira que acharem melhor. O leitor é que deve estar atento as suas contradições – que nem sempre são charmosas. O que se apresenta como obra popular e engajada pode não passar da decantada “macumba pra turista”, interessada em chamar a atenção de públicos mais “selecionados”.

PS: Na época em que o texto foi escrito, solicitei uma entrevista a Alessandro Buzzo. Quando disse que meu texto cotinha algumas críticas ao seu livro, mesmo ser ler o artigo, ele se recusou a ceder a entrevista, alegando que em outro texto eu falara bem de Marcelo Mirisola (em breve, postarei aqui o texto sobre Mirisola, que pode ter tudo, menos elogios). Decidi não publicar o artigo sobre Guerreira, para evitar constrangimentos, mas, sabendo da importância da crítica (por mais que muitos escritores neguem esse fato) até como fator de aprimoramento estético e de definição do projeto literário de cada autor, aí vai! Espero que ele mude de opinião a meu respeito, não leve nada para o lado pessoal (difícil, eu sei) e que ceda finalmente a entrevista, para ampliarmos o debate que está proposto.

sexta-feira, agosto 22, 2008

Serenata

Vou fazer um samba
Vou fazer um rap
Que grude n´ouvido feito fita crepe
De roda de bamba
Vou fazer um reggae
Cantando a verdade que ninguém mais negue
Sem fazer bagunça, sem fazer marola
Canto Rappin Hood e Paulo da Viola
Vou fazer poesia, cheio de alegria
Vou fazer a arte que ninguém faria
Celebrando a face bela de Maria


Era mais ou menos assim que eu cantava, doutor, a letra é longa, não quero incomodar. No Brasil o samba é natural, cultural e não vira folclore. Era eu, o Galo de dj e o Manducão fazendo uma ponta no cavaquinho, quatro cordas pra ele é mais fácil, o Manducão não tem um dedo. Eles fugiram de medo, polícia assusta, sabe como é, doutor. Se for na casa deles os dois confirmam, eu acho, não querem confusão pro lado deles; foram na serenata porque insisti muito.
Conheço Maria, sim senhor, e ela também me conhece, da escola e da banca de pastel da feira de quarta, se chamar aqui ela confirma. Acho que confirma, ultimamente essa moça tá diferente, já não me conhece mais, esquecida das brincadeiras de infância no recreio, pega-pega e rouba-bandeira. Faço bico com o japonês na quarta e no sábado, frito pastel melhor que ele. Já fiz show, já dei som, mas sou amador. Nunca me pagaram por uma apresentação, não senhor, não passo recibo.
Sou menor, sim senhor, não ando com documento porque tenho medo de perder, mas tenho residência fixa, sou estudante e trabalhador. Não fumo nem bebo, não senhor, geração saúde.
Não havia desordem, não senhor, que música não é bagunça. Música de amor é só alegria, harmonia. Pensei que estava fazendo coisa boa, levando paz para a rua. Quanto marido bêbado, doutor, espanca a mulher, esqueceu o que é amor. Sou jovem, mas sei respeitar mulher, meu pai me ensinou, ele é pastor da Assembléia e nunca destratou minha mãe, Deus a tenha.
Lei do silêncio? Já ouvi falar sim, senhor, mas não sabia que a música era proibida na madrugada. A gente cantou meio baixinho, era só pra Maria ouvir, a música é pra ela.
A vizinha da frente é que se preocupou com a nossa demora, cantamos horas e horas e nada de Maria acordar, parece que Maria não gosta mais de samba, nem de rap, se sente pra lá de pra frente.
Cantamos cinco vezes a mesma música, aí mudamos o repertório, Maria não colocava a cara na janela. Mandamos um rap romântico; um pagode melado; um samba de roda, um partido alto, um Tim Maia, um Benjor, mas tudo na surdina, Maria não despertava, a luz não acendia.
Quando o primeiro raio de sol trepidou no asfalto úmido de sereno, a dona da frente resolveu chamar a polícia, achando que era plano de assalto ou ruma de nóia. Nada disso, doutor. Não tiro a razão da senhora, cada coisa acontecendo, mas aqui não tem ficha, nem crime, nem droga: aqui é só sentimento, boa vontade e sofrimento por não ter Maria.
O delegado me entende? Me apóia? Dela, ou o sono é pesado ou não quer saber de mim. É possível também que ela não goste mais de música, ou que sambe apenas escondida, parece que agora ela é sofisticada.
O doutor não gosta de rap? Não, nem sempre é coisa de bandido, não senhor. É expressão da periferia, som de preto e de pobre, mas é limpinho. E de samba? Também não? O doutor deve ser lord, criado ouvindo sinfonia, ópera, música de câmara. Mas cuidado, delegado, não pode desprezar o que é da gente, depois se arrepende: daqui a pouco vai dizer também que não conhece amor nem mulher. Sim, não quis ofender, vejo sua aliança e posso confirmar sua virilidade e macheza, mas mulher só se conhece no olho e na alma, quando ela resplandece ao som de um som feito só pra ela, ou quando, repleta de desejos, entorpecida de sentimentos, se desmancha, fosforece, ao som de um bolero, um bllues, um rock, um baião. Quando as fibras do corpo dela vibram no ritmo da canção, que nada mais é do que a materialização sonora de uma emoção oferecida a ela. Às vezes falo difícil, sou poeta. O delegado é bamba, autoridade, diretoria, chefe da delegacia. Mas se conhecesse Maria, se fizesse composição de amor, me daria razão. Ai, doutor, na orelha não, que toco de ouvido!
Seca

Então ficou determinado, por lei federal, que a publicação de livros inéditos ficaria suspensa por dez anos. Além dos livros, qualquer texto inédito, a partir da referida data, que circulasse na internet, em panfletos e revistas (científicas ou literárias), caracterizaria crime contra o patrimônio cultural. Tal lei — que não suspendia, mas limitava a produção de CDs, filmes e peças de teatro — visava ao aprimoramento cultural e intelectual do povo.
Explicando: o universo de obras intelectuais e artísticas do mundo inteiro, atingira, há muito tempo, níveis estratosféricos, impossíveis de serem alcançados por qualquer ser humano, por mais esforçado e erudito que fosse. Ninguém poderia ler tudo na vida; pior: ninguém seria capaz de ler tudo sobre um único assunto, qualquer que fosse. O Romantismo, por exemplo: a cada ano, saem publicações sobre essa manifestação artística e filosófica do século XIX, mas que nos influencia até os dias de hoje e que foi influenciada por outras formas de pensamento que lhe antecederam. Quem conseguirá jamais ler todos os poemas, romances, teses, etc., desse único assunto? Ninguém. Sem contar que, para compreendermos melhor tal movimento, precisamos analisar o que aconteceu após o Romantismo, quem negou, quem imitou, quem desdenhou... também seria necessário analisar a origem e o ocaso desse movimento, e aí seriam mais leituras e pesquisas, intermináveis e entediantes.
Tal excesso de informação poderia inclusive desestimular nossos leitores, professores e pesquisadores, que jamais poderiam abraçar uma especialidade sem se perderem no mar de textos já existentes. Informações demais, incompletas, porém fundamentais; fundamentais, entretanto inúteis, se não vierem acompanhadas de notas de rodapé, e traduções, e explicações, e teoremas. E sempre mais material, sempre mais publicações, sempre mais palpites!
A lei serviria para que o antigos fossem lidos e apreciados com a devida calma e reverência. Sim, as pesquisas ficariam um tanto empacadas, em todas as áreas — das artes à medicina — mas quando fossem retomadas, seriam mais pragmáticas, sem os atropelos e os excessos de outrora.
Para evitar que nossos jovens intelectuais esmoreçam, um prazo de dez anos para conhecerem o que já é fato, seria mais do que suficiente. Importava agora o prático e o clássico, apenas. Inutilia truncat nas universidades e escolas.
A nação assimilou bem a nova lei, sem grandes sobressaltos. No começo, houve um acentuado aumento de público nas bibliotecas, e até algum contrabando de livros nas fronteiras e aeroportos, mas depois a moda passou. Escritores, editores, redatores, foram recolocados no mercado de trabalho por um bem-sucedido programa social do governo: muitos na publicidade, na imprensa e no mercado informal. O Prêmio Jabuti continuou, com algumas modificações: livros agora, só reedições, com um selo de autorização do governo, pois nem tudo que é antigo é válido. Concorria-se apenas em duas categorias: capista e revisor. Finalmente o reconhecimento do revisor!, que com seu mudo trabalho, arredonda o estilo e não acrescenta conceitos. O revisor (o clássico, tradicional, conservador) tornou-se o profissional símbolo dos novos tempos.
As pessoas conversavam, assistiam à muita televisão, dormiam, iam aos estádios de futebol, ouviam músicas, rezavam nas igrejas, aperfeiçoavam-se no comum.
Quando ainda faltavam dois anos para o término da chamada Lei de Fomento ao Saber Estabelecido, por iniciativa popular, houve um plebiscito, em que o povo, alegando falta de tempo para apreciar todas as obras que ainda não puderam ler, pediu prorrogação do prazo por mais quinze anos. Isso foi no tempo em que ainda existiam livros.

terça-feira, agosto 19, 2008

Eleições e Olimpíadas




Se lá na década de oitenta o horário eleitoral gratuito tinha programas engraçados, engajados, ideológicos, o que vemos agora é de dar dó, não dos candidatos, mas de nós, eleitores/telespectadores – se bem que muitos de nós têm os políticos que merecem.

Vejamos algumas frases cheias de conteúdo e bastante persuasivas dos candidatos a vereador em São Paulo: “Sou esposa do Maguila”

“Sou o advogado do Ratinho”; “Balança! Respeite os animais...”; “Quem disse que Educação não é importante?”; “Estou cansada de tudo isso que está aí”; “Corinthiano vota em corinthiano”; “Minhas duas paixões foram o Corinthians (de novo!?), e o esporte; agora, quero o seu voto” (show de coerência...); “São Paulo não pode parar”; “Saúde e educação são fundamentais, vote fulano, 00 00 0”; “Fulana! Sangue novo! Arrebentando a boca do balão! 00 (estoura uma bexiga) 00 (estoura outra bexiga) 0!”; “Quero ser a sua voz na Câmara Municipal, sicrano, 00 00 0, com beltrano prefeito”; “Que Deus nos abençoe, quero trabalhar com geração de empregos e projetos sociais”; “Na hora de votar, seja usado por Deus, fulano, 00 00 0, eita Deus!”.
Houve um candidato que fez apenas uma embolada declamando seu número.
“Ensino técnico nas escolas municipais” (esse desconhece completamente a lei, que proíbe investimentos municipais fora da Educação Infantil e do Ensino Fundamental).
“Sou pela família”; “Peroba neles!” são outros discursos que nos pedem voto.
Escrever um texto falando sobre o nível de nossos políticos, sobre a ineficácia do horário eleitoral como um canal útil para que escolhamos nossos candidatos, sobre como a política é esculhambada? As falas dos candidatos já não dizem tudo?

Mudando de assunto: Seria Michael Phelps o primo rico e menos maltratado pela vida de Carlito Tevez?
E dizem que Phelps está analisando qual seria a melhor proposta de possíveis namoradas. As medalhas de ouro e a exposição na mídia são capazes de fazer milagres. Tirem as medalhas, coloquem uma touca de torcida organizada, uma caixa de suflair em suas mãos e o joguem dentro de um vagão de trem saído de Itapevi, e vejamos se choverá mulher na horta do nerd (tenho inveja sim, e daí!?) das piscinas.
Assim que as Olimpíadas terminarem, essa página fará uma análise fria e objetiva sobre a participação brasileira nos jogos. Mas adianto que tivemos de tudo, como vocês têm visto: de cavalo manco a vara perdida, de piadas involuntárias dos locutores e sonoplastas a derrotas vexatórias em esportes coletivos, sem falar das rasteiras do destino em nossos atletas...

A Lei das Algemas: Solidariedade VIP


O Supremo Tribunal Federal, ou de Justiça – a supremacia brasileira me confunde – acabou de aprovar lei que, além de restringir o uso de algemas por parte da Polícia Federal, pode punir severamente o agente que as usar indevidamente.
Usar as algemas indevidamente, para o Supremo, significa colocá-las no detido que não oferecer resistência, não tentar fugir ou se sentir constrangido. Deixemos de lado os conhecidos abusos de poder por parte da polícia brasileira, abusos que foram refinados nos tempos de regime autoritário: excetuando-os, as algemas eram, ou ao menos deveriam, ser usadas justamente para evitar que o preso oferecesse resistência ou tentasse fugir; a nova lei dá ao acusado uma chance a mais de se defender, uns segundos extras para tentar a fuga, um tempinho para extravasar sua decepção em cima do policial que o priva de liberdade etc.
Engraçado que as preocupações com o uso abusivo das algemas só foi discutido e polemizado – não pelo povo, é bom que se diga – após a série de investigações que a Polícia Federal efetuou, culminando em prisões de políticos, empresários, advogados, juízes e outros membros da nossa elite. Nunca um homem algemado que não estivesse usando terno e gravata, ou ao menos uma roupa de grife renomada, gerou indignação por parte de nossos legisladores. Mas “quando o monstro vem chegando e ameaçando invadir o seu lar”, como cantou a banda O Rappa, medidas extremas – de prevenção, talvez? – são exigidas. É bom lembrar que boa parte das prisões efetuadas pela Polícia Federal, ao menos as mais incômodas, as mais famosas, são feitas no topo da pirâmide social.
As duas gotas dágua que levaram o Supremo – seja ele qual for – a aprovar a lei das algemas – ou contra elas – foram as prisões de Daniel Dantas e seus asseclas e a extradição de Salvatore Ca$$iola; afinal, um homem que disse claramente não temer decisões de juízes que atuem acima da primeira instância, como Dantas, não podia deixar de receber esse mimo de pessoas que fazem parte do mesmo extrato social que o orelhudo mais poderoso do Brasil. Antes mesmo da “invenção” da lei, Salvatore Ca$$iola fora premiado com medida preventiva que proibia o uso de algemas – não sei se tal medida abria exceção em caso de resistência à prisão ou tentativa de fuga, mas creio que não: o juiz que deferiu o pedido dos advogados de Ca$$iola certamente acredita na boa índole do detento mais sorridente e simpático do Brasil – ia dizer que Ca$$iola era também o mais culto, mas tenho dúvidas: o banqueiro que colecionava quadros e promovia exposições talvez mereça esse posto.
De cara, a lei tem um efeito estético considerável: acaba com aquela tentativa ridícula de nossos colarinhos brancos esconderem as cadeias nos pulsos segurando bolsas, sacolas, jaquetas, tudo amarfanhado, amarrotando suas roupas cheias de estilo. O espetáculo das prisões vips, que provavelmente está para sair da moda, pelo menos ganhará em beleza.
A lei das algemas evita futuros constrangimentos também por parte dos juízes que se apressam em proibir que os poderosos sejam algemados ou “constrangidos” – tadinhos – publicamente, sendo confundidos com criminosos comuns. Não são comuns, mas “especiais”, como bem esclarece o tipo de cela a que têm direito.
Mas bonito mesmo, comovente, até, é o senso de colaboração que a classe alta desse país tem. A solidariedade entre juízes de alto escalão e criminosos especiais é um exemplo a ser seguido por nós que estamos do lado de cá.

Cronistas: Ô Raça!



Amo a crônica de primeira linha, aquela que de tão gostosa nem lemos, abraçamos; ou a outra, que espalha pulgas por nossa nuca. A crônica boa que ágil, efêmera, logo vira clássica literatura. Mas...
O cronista, aquele cara que precisa escrever periodicamente para jornais, revistas ou sites, é, cá entre nós, um grande enganador. Ciente de que é necessário presentear os leitores vorazes com um texto brilhante, lírico, contundente, engraçado, artesanal, filosófico, político, crítico, ácido, fictício, que ilumine o cotidiano, dócil, didático, paradigmático, que fará parte de antologias e coleções escolares, dramático, assinado – o que lhe trás todas as responsabilidades e tira qualquer peso ou culpa do veículo para o qual trabalha – isento, pessoal, poético e higiênico, o cronista é capaz dos maiores besteirismos para manter seu empreguinho, ou seu espacinho na mídia, para vender seus livrinhos, ir a festinhas e assinar contratinhos. E entrar para a historinha, nem que seja a da efemeridade.
Ai, a crônica de jornal vira embrulho; a da revista, bricolagem; nos livros, estocados em bibliotecas úmidas, pasto de traça e fungo; já a cibernética, de um talento virtual, quase sempre sem virtudes, transforma-se em spam, irreciclável, espalhado por escritores que disputam leitor a e-mail.
O que sobra em pirotecnia no cronista, muitas vezes falta em escrúpulos: xingar a mãe do presidente, alardear racismo e mágoa, poetizar a arte de fazer a barba, de chutar pedrinhas e cachorro morto, solenizar o sinal para o ônibus – o amor depois dos cinquenta é como esses ônibus que até param no ponto, mas já vêm carregados de outras pessoas e aromas –, de cortar as unhas – filhos são como unhas: sempre chega a hora de os destacarmos de nós –, sobre o remédio para vermes que seu cachorro está tomando – a Justiça precisa no Congresso o que o Vermifugin fez aos intestinos do Toquinho –, sobre a fila do banco – casamento é como fila de banco: enquanto alguns aguardam ansiosamente para receber alguma coisa, outros chegam ao guichê, ou ao altar, apenas para esvaziar os bolsos – , as vacinas –  as agulhas e os germes vão costurando nossa vida do início ao fim – os botões do elevador – no mundo moderno, somos organizados em números, filas, colunas e linhas, empilhados como caixas, armazenados como latas – , sobre a festa de aniversário do periquito, ou do coleirinha, ou da cotovia, ou do sabiá do vizinho – todo cronista sabe bem os nomes das aves, ai cuitelinho.
Tudo é, ou melhor, precisa ser único e essencial no teclado do cronista, escritor crônico, assalariado ou viciado em holofotes.
Há uma certa classe de cronistas que me aporrinha em especial: os donos da verdade. Aqueles que, devido ao poder que julgam ter com o espaço que arrendaram na mídia, em colunas ou bytes – veem a si mesmos como os grandes sábios da sociedade moderna. Defendem suas ideias – as do patrão? quem disse que não pode existir sinceridade no peleguismo? – com truculência e lealdade. E podem opinar sobre tudo, dando às opiniões pessoais, ou personalizadas, um ar de inconteste verdade.
Há também os cronistas esportivos, ou melhor, futebolísticos, “tribo em frenética proliferação”, como disse Chico Buarque a respeito dos ratos. Hoje em dia todo mundo escreve sobre futebol, discutindo táticas como se fossem generais,  contusões como se fossem Grava e Runco, a melhor angulação do pé ao bater na bola, eles que não são Tostão nem nada. Muitos desses cronistas de carpete não saberiam cobrar um lateral e só jogavam quando eram os donos da bola, o que, aliás, é a verdadeira vocação reprimida deles.
Mas talvez nenhum tipo de cronista seja pior do que aquele que passa a vida a escrever sobre a falta de assunto! As odes e elegias diante da tela em branco, o contorno do tampo da mesa que “o encara, como o guardião dos saberes perpétuos a lhe cobrar palavras e orações", as vírgulas “eternas condenadas a seara quem, aliás, não deveria estar mesmo junto", as orações, que lhes “fogem do pensamento, como aquela prece antiga dos catecismos”, toda essa conversa para boi dormir que tanto preenche lacunas e assassina árvores, quando um texto com essa relevância é, ainda por cima, impresso!
O tempo é sombrio para a crônica. É por isso que eu, grande esteta das palavras que sou, pretendo colocar-me à disposição do povo desse meu país, elucidando suas dúvidas, indicando as veredas mais adequadas para se caminhar, auxiliando no entendimento da economia, da política e do futebol, esse esporte tão popular quanto incompreendido, filosófico. Em meus textos, está claro, nunca faltará assunto, até porque a metalinguagem é minha amiga. E, cá entre nós: leitor de crônicas não passa de um desocupado, mesmo...
PS: Ave, palavras mágicas de Rubem Braga, Luis Fernando Veríssimo, Antônio Maria, Machado de Assis, Sergio Porto, Aldir Blanc, Campos de Carvalho, Milton Hatoum, Drummond, Ivan Angelo, Antonio Prata e outros gênios da lauda. Os ruins, que deixem de cronices.

Acordo Ortográfico: Era o que nos faltava!


Agora que Portugal assinou e ratificou o Acordo Ortográfico entre os países que têm a língua Portuguesa como idioma nacional, as coisas vão mudar. E muito: cerca de 0,5% da ortografia vigente no Brasil, 1,5% em Portugal. Precisávamos demais dessa reforma!
Pra começar, não usaremos mais o trema, a não ser em nomes próprios. Devemos em breve comer linguiça com freqüência, pedir troco pra nota de cinquenta e aguentar as consequências.
Palavras como idéia, jóia, tramóia e espermatozóide, perderão o acento agudo – ideia, joia, espermatozide e tramoia, em pouco tempo. O hífen, aquele tracinho que sempre nos causa pavor, continuará gerando dúvidas, dado o caráter subjetivo de seu uso, que permanecerá com o novo acordo. Existe uma explicação tosca para o uso ou não do hífen: o tal do “uso consagrado”. Ora, isso explica pouca coisa, talvez nada. Também há os casos em que se deve observar a “unidade sintático-semântica”, ideia que depende bastante do olho de quem vê.
Algumas observações interessantes: ultra-romântico, será ultrarromântico; ultra-som, ultrassom; microondas, agora é micro-ondas; reescrever, talvez, passe a ser re-escrever – existe a variedade rescrever e também o conceito de composição para definir essas coisas. Agora, inter-racial, será inter-racial, mesmo, nada de interrracial, não senhor! Bastante lógico, não? O novo acordo, ora busca fundamentos na fonética, ora na cabala ou na astrologia.
Mudanças ortográficas acontecem de tempos em tempos. A língua é dinâmica, as normas que as regem nem sempre são lógicas, ou ao menos não do ponto de vista normativo, de vez em quando desrespeitam o uso corrente. Talvez nunca a gramática normativa abraçará completamente o uso, a fala, pois ambas existem em e para situações diferentes.
O Acordo ortográfico tem muitas vantagens, pois aquecerá o mercado gráfico e editorial, já que todos deverão se adaptar aos novos tempos; revisores, sempre tão esquecidos por todos, trabalharão bastante, poderão arrumar aí um pé-de-meia (os hífens permanecerão). Fábricas de papel, gráficas, escolas, todo mundo vai ter trabalho e lucro pela frente. A educação e o ensino da Língua pátria ganharão destaque na mídia por algum tempo. Professores carrascos ganharão nova força, ou serão ridicularizados por perderem a razão, por verem a caixa de pandora que carregam sob do jaleco se abrir diante de todos!
Você pode até estar se perguntando: em tempos de aquecimento global, ditadura em Mianmar, terremotos na China, devastação da Amazônia, guerra na Geórgia, o Santos caindo para a segunda divisão, será que vale a pena derrubar milhões de árvores por causa de um trema a menos, um hífen a mais? Pergunta difícil...
A Cidade que não pára
(A não ser na hora do Rush)

O Guiness não dá conta. São Paulo, a cada semana, tem superado seus recordes de congestionamento, na velocidade do You Tube! Percursos que muito antigamente, coisa de rês semanas atrás, levavam dez, quinze minutos, agora, ou agora há pouco, chegavam a quarenta e cinco, cinqüenta minutos, duas horas, com muita sorte! O congestionamento se espalha caudaloso pela cidade inteira e já chega nos recantos da periferia. Especialistas sensacionalizam, cientificamente: em quatro anos, a cidade pára! A julgar pela progressão geométrica de nossos enroscos viários, talvez não precisemos esperar tanto tempo assim. O futuro é cada vez mais agora, ou foi agorinha pouco!
Resultado de uma política urbana repleta de fracassos? Falta de recursos para que a cidade flua? Um pouco de cada coisa. Afinal, quem investiu tanto em estradas, asfaltos, pontes, viadutos, quem sempre dependeu economicamente de uma indústria automobilística e precisava colocar os carros para circular? Há também o poder das grandes empresas de ônibus – vai dizer que não? – que não podem ver com bons olhos a ampliação da malha ferroviária, das estações de metrô, o pobre metrô que não é tão vistoso quanto eficiente – as pontes, sim, viram cartão-postal! E ter um bom automóvel no Brasil, não é só um luxo, é uma necessidade. Vai depender do busão às dez da noite numa quebrada qualquer por aí, meu camarada...
Mas não nos esqueçamos que isso é sinal de progresso. Afinal de contas, o Brasil é um país confiável para investimentos; passamos a comer mais e melhor, e ainda sobra um dinheirinho para comprarmos imóveis e carros, tudo financiado e com altas taxas de juros, por que não? E não podemos deixar de contar com o empenho de nossos políticos, os tucanos em especial, aqueles que derrubam viadutos, pontes, soterram buracos do metrô, permitem rebeliões em presídios e na novíssima Fundação Casa, conceito revolucionário em recuperação de menores infratores, tipo uma FEBEM, mas com um nome muito mais “social-democrata”. Já estudam a possibilidade de cobrarem pedágio nas marginais, nos arredores do centro expandido. Coisa fina, como há em Londres, por exemplo. Estamos chegando no Primeiro Mundo! Mas está tudo parado, engarrafado.

Me Derruba, Benedetti!

Esse negócio de publicarem no Brasil a obra de Mario Benedetti está me causando sérios problemas, profissionais, mentais, espirituais. Explico.

Nas férias de julho do ano passado (2007), me embrenhei pelos corredores de uma grande livraria de um grande – e caro! – shopping de São Paulo para comprar um livro. Não tinha certeza do que levar, apenas algumas diretrizes. Estava entre Luiz Vilela, pois queria estudar melhor a arte do diálogo certeiro nos contos – dizem que ele é o mestre e parece que é mesmo, outro dia a gente volta ao assunto – e Roberto Bolaños, o mais recente aclamado autor em língua espanhola, falecido há poucos anos, prematuramente (de quem li  2666 em 2010).
Como não sabia ao certo qual livro de Vilela seria o melhor para o meu intento – ah, sim, também poderia comprar um livro de Guillermo Arriaga, roteirista de filmes que curto muito, como 21 Gramas, Amores Brutos e Babel e que acabava de lançar um livro no Brasil – e, como ali só havia um título disponível desse autor, acabei deixando para outro dia aquela minha febrezinha teórica. O livro de Arriaga, Um Doce Aroma de Morte, acabou não me agradando, pelos poucos trechos que li. Pretendo voltar a ele com mais calma, mas naquele dia buscava um arrebatamento, algo que batesse e subisse logo, mas que não fosse conto. Aí fui dar uma folheada em Bolaños e, pela folheada – na verdade uma lida na primeira página – vi que o momento não era aquele. Sim, cada livro, por melhor que seja, exige um momento para ser apreciado. A escola nos empurra clássicos que muitas só serão devidamente admirados algum tempo depois, e isso quando nós, os professores, não conseguimos estragar o paladar do leitor.
Naquele dia, por uma conjunção de fatores, acabei cismando que buscaria um autor latino que escrevesse originalmente em espanhol. Engraçados os critérios que vamos construindo para buscar algum tipo de prazer que nos surpreenda. Bolaños e Arriaga, creio, me agradarão em outro momento; mas aquele não era o dia deles. Pareceu que ambos, Arriaga em especial, ganham pontos pela construção da narrativa, pelo que o texto vai formando aos poucos. Eu, leitor fascinado de contos, mesmo quando busco um romance, anseio pela frase tensa, pronta para explodir em polissemia, canto ou grito. O defeito é meu, não do escritor fundista, que não explode para alcançar a glória em cem ou duzentos metros. Azar o meu.Sorte a minha que sou apressado e compulsivo por palavras duras e precisas! Naquela busca, encontrei A Trégua, de Mario Benedetti, e ao ler o primeiro capítulo o chão repentinamente sumiu; a tábua de salvação era o livro que tinha nas mãos. Fui arrebatado.Benedetti se colocou em minhas férias, se alinhou aos mestres, se fez necessário a partir daquela tarde despretensiosa. Inspirou um conto derivado de uma personagem que é apenas citada rapidamente no primeiro capítulo; me apresentou a uma Montevidéu fria, chuvosa, cinzenta, triste e fugidia; me tirou o sono, me presenteou com uma história de tristeza e amor, sem um resquício de pieguice sequer. A Trégua me fez mal, como fazem os livros ótimos.Agora (2008), alguns meses depois, enquanto tento finalizar uma coletânea de cartas fictícias, resolvem lançar outro livro de Benedetti, Correio do Tempo, escrito em 1999. Meu projeto (ainda inacabado) fala sobre artistas, esportistas e políticos que, acredito, ajudaram a formar a base cultural e ideológica da minha geração. Correio do Tempo, soube, é uma coletânea de cartas fictícias, que falam sobre amor, perda, dor, além de outros contos.Benedetti, sem saber que existo – enviei o conto que fiz baseado na obra dele por e-mail; acho que ele gostou tanto que nem teve forças para dar alguma resposta – me derrubou mais uma vez. Ao terminar a leitura de Correio do Tempo, que iniciarei assim que terminar esse texto, decidirei o que fazer com as minhas cartas. Talvez ainda as precise escrever para me entender; talvez o mestre uruguaio me baste. Mario Benedetti é o tipo de escritor que constrange a qualquer um que se atreva a tentar fazer Literatura, pois, perto de sua obra, muita coisa sobre o papel soa tão infantil e desnecessária que acabamos, para o bem dos leitores mais rigorosos, optando pelo sublime prazer de lê-lo, e só. A escrita vira um mal desnecessário.Boa leitura para mim, com certeza!
PS:após a leitura, mais uma vez, fui arrebatado por Benedetti...

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