sexta-feira, setembro 17, 2010

II (o segundo contra-aforismo)

O que é bom? Tudo aquilo que nos humaniza, a ponto de não precisarmos correr atrás de poder. O que nos irmana, seja a lágrima, seja o riso. Trufa de chocolate. A compaixão. Gelatina, qualquer que seja o sabor. As pedaladas de Robinho, a competência plástica dos gols de Ronaldo, a dança aérea de Michael Jordan, a genialidade de Ganso. Os versos de Bandeira, a pulsação de Cabral, a vertigem de José Régio, o espanto de Clarice, o louco teatro de Fernando Pessoa, a palavra encantada de Drummond, a infância de Manoel de Barros. Pular ondas na praia numa tarde quente. Cheiro de criança (dizem que elas têm o odor divino). Chico Buarque e Edu Lobo. A cidade do Rio de Janeiro. O avesso da guerra. A virtude com aroma feminino. Uma boa conversa silenciosa com Deus.
O que é mau? Tudo que somos capazes de fazer por um minuto mal aproveitado de prazer, tudo o que nos automatiza, nos esvaziando de emoções, tudo aquilo que nos ilude, nos fazendo caçar vorazmente aquilo que acreditamos ser o poder.
Além, disso, o Corinthians, o João Kleber, o Sergio Naya, a família Bush, couve manteiga e repolho refogado, crises de TPM (principalmente se você for homem), escolher a cor da cortina e boa parte dos membros das famílias imperiais de Alagoas e do Maranhão também. Tudo isso representa a gana e as ilusões do poder – menos o Corinthians, mas nem por isso ele deixa de ser ruim...
Quanto aos fracos, aos incapazes: que Deus tenha misericórdia de nós, nos fortaleça e nos carregue em seus braços. Quanto aos fortes: que Deus os perdoe.

poeminha grandiloquente tipo nietzsche

Batam-me, devotos de Nietzsche!
Acendam suas velas
Rasguem suas roupas de grife!
Declaro, para espanto meu
Que tudo o que esse mundo ao parvo ofereceu
Foi o ódio a Deus
Por não ser ele próprio um deus!

Voltemos aos aforismos.

quarta-feira, setembro 08, 2010

Nietzsche está morto?

É do bigodudo a afirmação de que Deus está morto. Numa represália bem-humorada e, ao menos para os crentes, verdadeira, lapidaram a frase “Nietzsche está morto” e a atribuíram a Deus.
O certo é que Deus, que não erra, jamais afirmaria tamanho absurdo. Nietzsche está vivo, talvez até mais do que no período em que andou pela terra. Não digo com isso que ele plana por aí como alma penada, que forjou sua morte e está passando férias na Jamaica ou na Holanda, tampouco me refiro a uma vida após a morte. Nietzsche está vivo filosoficamente, politicamente e culturalmente, ou não estaríamos aqui preocupados em refutar suas afirmações e o fascismo, o nazismo, o futurismo, o imperialismo americano, o instinto de superioridade cultural europeu, a xenofobia, o hedonismo, o materialismo e outras pérolas da sociedade contemporânea não seriam uma realidade tão marcante. Ele não criou nada disso, mas todas essas práticas, a partir do século XX, passam pelos escritos – e pela aprovação – do prussiano.
Nietzsche, o sósia de Camilo Castelo Branco, está mais vivo do que nunca. A ele se dirigem filósofos, sociólogos, políticos e artistas; nele se encontram intelectuais de várias vertentes; por sua cartilha rezam várias pessoas.
Por outro lado, Deus também está vivo, embora com muito menos relevância e prestígio do que mereceria; ao menos nos meios intelectuais, o filósofo da Baviera tem mais moral que o divino. Digo mais: Nietzsche é o deus, eleito por muitos, dessa nossa “pós-modernidade”. Mas, é necessário que se diga – na verdade, creio que nem seja tão necessário assim – que não estamos melhores com esta nova divindade do que estaríamos se nos voltássemos para o Deus do cristianismo; a História, até mais do que a teologia, está aí para nos dar razão.
Nietzsche está vivo, por exemplo, quando os mais fracos são desprezados, quando moradores de rua são queimados, quando presos de guerra são torturados, quando soldados estadunidenses violentam afegãs e iraquianas, quando Cuba deixa de receber ajuda do exterior, quando policiais espancam adolescentes inocentes pelos becos das metrópoles brasileiras, quando missionários cristãos são queimados vivos, linchados e esquartejados nos países muçulmanos do Oriente Médio e da África. Ele também está vivo nas palavras dos ateus que julgam os crentes, em especial os cristãos, seres inferiores do ponto de vista intelectual, moral, social...
Veja bem: não digo que Nietzsche pregou abertamente a favor dessas coisas, nem que o policial truculento que humilha os cidadãos na baixada fluminense conheça profundamente a obra Bigode; eu também não conheço – e aqui se deleitarão os que, ao lerem estas linhas, discordarão de tudo quanto escrevo; digo: dane-se. Mas as ideias do prussiano estão espalhadas pelo mundo, postas em prática por quem o admira, por quem nunca ouviu falar dele, por quem certamente seria desprezado pelo próprio Nietzsche. Essa constatação empresta muita vitalidade à obra desse renomado filósofo...

quarta-feira, setembro 01, 2010

Ataque frontal

Aqui, apresento uma reflexão nada acadêmica sobre ideias contidas no Anticristo. Depois, mando mais um contra-aforismo.


Muita gente vê com péssimos olhos o cristianismo. Guerras, escravidão, especulação financeira, xenofobia, pena de morte, imperialismo, proibição cínica às drogas, conservadorismo, Corinthians, charlatanismo, tudo de ruim é culpa da religião em geral e, no ocidente, do cristianismo em suas mais variadas vertentes. Aliás, o fato de haver inúmeras vertentes do cristianismo já aponta para o fracasso de seus princípios: se não conseguimos entrar em acordo entre nós, como vão acreditar em nossa pregação a respeito de um reino futuro sem demandas ou diferenças, onde todos serão de todos amigos, súditos de um mesmo Rei, felizes? Não conseguimos concordar nem sobre o caráter do próprio Deus a quem dizemos conhecer tão bem...
O principal problema desse tipo de crítica não é a falta de fundamento, já que muita atrocidade existente no mundo é praticada por cristãos e, pior ainda, não raro em nome de Deus. A falha é atribuir a Cristo responsabilidades que ele de fato não tem.
Nietzsche sabia disso, ou ao menos deveria saber. Tanto que seus ataques não são direcionados a Jesus, mas ao cristianismo, para ele duas coisas bastante distintas e mesmo dissociadas . Mais uma vez, devemos dar ao filósofo ao menos uma cota de razão. Não podemos responsabilizar Jesus pelas cruzadas, pelo genocídio de índios, pela escravização de negros, pela perseguição aos judeus no regime nazista, pela guerra do Iraque, pela Inquisição, pelo genocídio de camponeses que acompanhou a Reforma Protestante ou pelo pensamento fundamentalista, xenofóbico e genocida da ku klux klan. Contudo, à frente de cada um desses eventos, a cruz era o estandarte: os seguidores de Cristo, dizendo cumprir mandamentos seus, promoveram boa parte das desgraças humanas históricas.
Mas, se engana quem acreditar que as críticas de Nietzsche eram a respeito da violência engendrada por católicos, ortodoxos e protestantes. É possível que alguns desses atos fossem aplaudidos de pé pelo prussiano. Qual é a primeira e forte crítica que surge em O Anticristo contra o cristianismo? A tendência à piedade, à compaixão, que Nietzsche considerava a grande fraqueza humana.
Para ele, o cristão é a “grande besta humana” . O cristianismo é um modo de vida que valoriza os fracos, os incompetentes, dissemina a compaixão, inferioriza os fortes. E, sem a devida valorização dos fortes, sem o desejo de poder – raiz de tudo o que é bom, segundo o bigodudo – a humanidade tende a enfraquecer-se. Os fracos, em vez de receberem piedade e compaixão, devem ser aniquilados.
Se o leitor menos inteirado do assunto notar uma semelhança entre estas ideias, apresentadas logo no início de O Anticristo, e as bases do fascismo, não estranhe: elas realmente foram usadas na formulação ideológica do nacional-socialismo de Hitler e por outros ditadores da primeira metade do século XX, de Mussolini a Franco, passando por Salazar e chegando à América Latina com a simpatia de Getúlio Vargas e a competência carniceira de Pinochet. Hoje, muitos dizem que Nietzsche teve suas reflexões distorcidas para que estas atendessem ao real interesse da extrema-direita europeia. Depois veremos se isso é verdade ou não.
Verdade mesmo é que este pensamento voltado para a busca de poder, de elevação, de superioridade, de subjugar e eliminar os mais fracos, alastrou-se pela Europa na primeira metade do século XX. Se pensarmos no futurismo de Marinetti, que exaltava a guerra, as máquinas e execrava as bibliotecas, museus, as mulheres e etnias consideradas inferiores, veremos reflexos de conceitos nietzschianos, por exemplo. Ainda que o filósofo alemão não fosse um entusiasta da modernidade, posto que sua paixão e seus referenciais estivessem na Antiguidade Clássica e no Renascimento, nos parece óbvio que o poder, para ele a base do que é bom, é manifestado com maior destaque quando comparado a algo ou alguém que não dispõe do mesmo poder. É a óbvia experiência do contraste: para que eu me sinta belo, a figura do feio se faz necessária; no entanto, o mesmo ideal de beleza justifica que o feio, o pobre, o fraco, sejam exterminados. Isso fica mais claro quando pensamos que não há limites nesta busca pelo poder declamada por Nietzsche, onde a guerra deve ser exaltada, em detrimento da paz. Esta parte da lição, Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, Pinochet, Bush, Slobodan Milosevitch, Nicolai Ceausescu, Stálin, e alguns outros ditadores e/ou genocidas aprenderam muito bem. Quais foram as referências históricas de Nietzsche? Os ditadores e imperadores da Antiguidade.
Verdade é que estamos apenas nas primeiras páginas do livro aqui esmiuçado; também, sempre é bom lembrar, não há aqui nenhum tratado filosófico. Vamos prosseguir para ver a que conclusão chegaremos, e nossa opinião pode mesmo mudar, pois defendemos ardorosamente o direito do homem a mudar de opinião, sabendo que com isso concordarão Ferreira Gullar, Fernando Henrique Cardoso, Ronaldo Fenômeno, Eduardo Paes, Gilberto Kassab, Lula, Fernando Collor et caterva.

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