Após uma verdadeira overdose de futebol, e de futebol de
ponta, desses que nos lembram por que amamos este esporte, vamos pensar um
pouco sobre o que ela traz à tona e que não tem nada a ver com o espetáculo.
A primeira evidência triste, tristíssima, é a ação da
polícia com relação às manifestações. Pipocam denúncias de prisões arbitrárias
por motivos os mais bizarros possíveis. A polícia anda desrespeitando a lei,
com seus agentes desfilando sem identificação; prende quem anda rápido (!),
quem fotografa base comunitária estacionada de modo irregular, advogados que
acompanham pacificamente manifestações e quem estiver moscando nas
manifestações também é um potencial candidato à detenção, sob acusação de
baderna, depredação e terrorismo.
Isso da polícia não é qualquer coisa. Não estamos falando de
arbitrariedades pensadas e executadas por indivíduos fardados: falamos de
práticas organizadas por parte da cúpula da instituição. Então, de certo modo, e
este modo não é nada sutil, vivemos oficiosamente um estado de exceção. Ou seja,
atualmente, podemos participar de degustações do que viria a ser uma ditadura,
basta estar perto de alguma manifestação, e se for contra a Copa, os petiscos
são mais bem servidos.
Outra coisa que a Copa tem proporcionado para quem não
gosta, ou não tem acesso a ela, é o profundo desprezo misturado à violência que
têm sofrido os moradores de rua, especialmente os que transitam em locais
estratégicos, como as proximidades de estádios e os centros das cidades sedes. Se
os moradores de rua se manifestarem contrariamente à Copa, então, correm o
risco de sofrer torturas e sabe-se lá o que mais. Mais uma vez, a polícia tem
assumido o protagonismo nessas ações.
Entretanto, não estamos falando exclusivamente de um
problema de comportamento da polícia. As emissoras licenciadas da FIFA, que
estão fazendo a cobertura da Copa, andam tão empolgadas com os jogos, Neymar,
Messi e companhia, que mesmo aquelas que contam com jornalistas menos
deslumbrados, ou vendidos, têm deixado de lado toda a questão das
manifestações, das prisões arbitrárias, do tratamento dispensado aos moradores
de rua e dos diversos desmandos da PM. Maior cobertura jornalística desses
eventos não empobreceria o espetáculo futebolístico e talvez servisse para que
futuras Copas fossem realizadas de modo mais responsável e humano.
Nas redes sociais, partidários do governo federal têm
exaltado a chamada "Copa das Copas". Em campo, é bem possível que
isso seja verdade, embora não tenhamos Pelé, Garrincha, Maradona,
Puskas, Beckenbauer, Ronaldo ou Romário atuando. Também é verdade que as catástrofes
previstas com tamanha precisão e anseio por boa parte da mídia e dos políticos
não aconteceu. Mas uma coisa é, tendo rejeitado o Armagedon noticiado e sonhado
com antecedência por parte da mídia comprometida com a banda podre da oposição
sem projeto, tirar um sarro e cantar vitória; outra é ridicularizar quem,
justamente por ter pontos de vista consistentes, insiste nas manifestações, pois
aí não se trata de algo circunstancial, e sim de um projeto de país que
precisa urgentemente ser discutido pela população. Olhar exclusivamente para a
Copa, sem caos aéreo, sem apagões, sem nada que justifique o mantra decantado por
tantos anos, "imagina na Copa", é virar as costas para os enormes
problemas ainda não resolvidos em solo brasileiro.
Por último, nós, os amantes do futebol, também estamos
colaborando para que a Copa esconda nossas verdadeiras questões. Copa do mundo
é evento raro, que ocorre a cada quatro anos, e com essa qualidade técnica é
algo raríssimo e sem periodicidade definida. Temos enchido nossos olhos de
gols, de dribles, de esquemas táticos, de personagens interessantes, da seleção
da Bósnia a Suárez, de Cristiano Ronaldo ao time da Costa Rica, e deixamos de
lado, em nome de um patriotismo de chuteiras meia boca, os horrores − repito:
horrores − perpetrados por governos, policiais e por aquela parcela podremente
chique que, mesmo não citada neste texto, incomoda com seus narizes empinados,
seus cafetões eletrônicos, seus xingamentos anticívicos e suas frases vazias de
significado do tipo "só no Brasil".
Mas cada coisa tem o seu lugar e a sua hora. É possível,
sim, a despeito da FIFA, símbolo máximo da banda podre do futebol, nos
encantarmos com pedaladas e gols sem perdermos a consciência de classe, de
povo, de nação. Em torno da Copa, há um país que precisa ser visto e revisto;
não nos esqueçamos disso.
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