quarta-feira, junho 11, 2014

Enfim, vai ter Copa


Se no futuro, por algum entediado e infeliz acaso, alguém vier a ler este texto, pensará em nosso primitivismo. Sim, a FIFA e a sua cartolagem "esgota" que escorre da Suíça para os campos mais remotos do globo terrestre, no Burundi e em Roraima, em Wembley e no Mané Garrincha, vai fazendo o esporte bretão perder o charme, ficar chato e arrogante. Não fossem Messi, Neymar, Cristiano Ronaldo, Di Maria, Fred, Pedro, Van Persie e tantos outros donos da bola, a própria bola já estaria perdida.
Amo futebol.
E, como eu dizia, é possível que a linha evolutiva da humanidade um dia torne esse amo sem sentido, como ficou sem sentido as críticas do gênio das letras Graciliano Ramos sobre o futebol. Ele preferia  rasteira, nosso verdadeiro esporte nacional. As multinacionais da indústria de material esportivo, as vorazes empresas da mídia, podem, em tempos de crítica aguda, matar o amor em geral. E a linha evolutiva da humanidade, repito, pode considerar nosso amor por um esporte como o futebol até mesmo um desvio de caráter. Se a humanidade melhorar, senhoras e senhores, é possível que o futebol, junto com nossa gana de vencer e de superar os adversários, desapareça.
Mas estamos no presente. E quando falamos de futebol, também falamos em tradição, em versos como estes, do hino do maior time da história: "Dando o sangue com amor/
Pela bandeira que ensina/Lutar com fé e com ardor".
O presente é do futebol, é da Copa do Mundo, apesar da FIFA, organização que lembra em alguns momentos alguns filmes de gângster, dado o altíssimo volume de dinheiro que movimenta (nem sempre declarado), dada a permanência quase milenar de seus dirigentes, dado o desprezo com que costuma lidar com tudo que não seja seus próprios interesses.
Amo o futebol porque ele entrou pelos meus poros quando eu tinha apenas seis anos de idade e aprendi que o melhor nem sempre vence e que a vida é isso aí, hoje beija, amanhã não beija. Foi quando vi a seleção brasileira perder para a italiana na Copa da Espanha, em 1982. Aquela derrota, mas, acima de tudo, aquele time, definiu algumas coisas em minha vida, muito antes de qualquer opção política, muito antes de saber quem era Machado de Assis. Aquele time, inclusive, foi a minha primeira musa, para quem escrevi dramas nos quais ele se saía vencedor. De Eder a Zico, de Júnior a Leandro, de Falcão a Sócrates, de Cerezo a Telê, tudo era talento, e aquela derrota, para meus padrões de garoto urbanos e telespectador contumaz, só perdia em importância para a possível morte do Ultraman.
O Ultraman ficou escondido em alguma esquina imaginária de Tóquio, em alguma galáxia não catalogada, e o futebol me acompanhou vida adentro. Quando é bem jogado de fato, o futebol me arrebata. Ópio do povo? As catárticas tragédias gregas também o eram (aliás, a cabeçada de Zidane na final de 2006 vale toda a obra de Sófocles), as óperas, os contos machadianos, a voz definitiva de Cássia Eller, a intensidade das pinceladas de Dalí, a antológica série de TV The Following, tudo opiáceo, tudo fundamental. Todos precisamos de um pouco de vertigem, todos precisamos de poesia, precisamos escapar, precisamos de paixão, e cada um tem o ópio que consegue.
Também precisamos de comunhão, e o futebol tem a magia de reunir inclusive adversários − desde que não sejam descerebrados − em torno da TV, em torno de um mesmo jogo. Em momentos específicos, ficamos todos do mesmo lado, espanamos o mofo de nosso orgulho patriótico e vamos torcer, fazer churrasco, discutir tática como se fôssemos do ramo, relembrar craques do passado, lamentar a falta de amor à camisa, nos alegrar ou consolar mutuamente; vamos, pagando o preço de usarmos os mesmos clichês a cada quatro anos, sentir que somos povo.
Tempos atrás nos informaram que ufanismo em excesso e fora de lugar pode nos alienar. Nos dias de hoje, curiosamente, os mais alienados são os que mais berram contra a alienação. O fenômeno é curioso, mas comum: quando o assunto é educação, por exemplo, os mais preocupados em denunciar as mazelas de nosso ensino são, sem o saber, suas maiores vítimas, enquanto que os menos atingidos pela avalanche de "intoxicação escolar" são os mais conscientes do próprio prejuízo (e acabam sendo os que mais estudam, se preparam e superam adversidades), assim como aqueles que têm reclamado da "burrice do povo" são os que mais repetem clichês rasos, os que mais reclamam da corrupção são os que mais praticam o "jeitinho" e assim por diante. A Copa do Mundo que começa agora virou a grande culpada de todas as mazelas nacionais, a Geni do momento, o foco da fúria contra o nosso subdesenvolvimento.
Ficamos 64 anos sem sediar uma Copa do Mundo. Neste intervalo, bem sabemos, a educação cambaleou, sem conseguir se firmar; a saúde nunca se destacou positivamente no cenário mundial; governos estaduais e prefeituras investiram em habitação e transporte público muito menos do que suas obrigações exigiam, e o hábito de tirar vantagem em detrimento da lei, do próximo ou da sociedade grassou bestialmente em todas latitudes e longitudes da sociedade. Além disso, durante boa parte desse tempo, a alienação esteve em nosso meio dos mais variados modos, seja pelas telenovelas, pelas canções populares estilo chiclete, seja pela apatia ou pelos anos de ditadura que nos ensinaram a não nos preocuparmos com assuntos profundos, pois a junta ditatorial, digo militar, se encarregaria de cuidar do país, fazendo, inclusive, com que muitas pessoas pensem até hoje que naqueles tempos "olivais" não havia corrupção ou incompetência administrativa, afinal de contas, o que não é documentado, o que não passa na tevê, não existe.
Mas eu falava do futebol. Amo futebol e não pretendo que me estraguem a festa que será − torçamos para que seja − a Copa do Mundo no Brasil. Torcer para que as coisas deem errado para assistirmos de forma canibalesca ao constrangimento dos governantes não é consciência política, é cretinice, pois revela não apenas nosso instinto de hiena, mas nossa preguiça política, nosso espírito público de porco, nosso complexo de vira-lata, enfim.
Os tubarões já encheram suas burras de dinheiro licito, mas moralmente questionável, e de superfaturamentos exorbitantes além da clássica  roubalheira, mesmo. Isso é uma vergonha e não deve ser letra morta após a competição. A infraestrutura que nos prometeram junto com a Copa não veio, não virá mais. Seria muito mais prático e cívico exigir, pressionar para que as contas sejam levadas a público e os gastos abusivos sejam ressarcidos ou reinvestidos de modo mais útil para a população. Será inteligente cobrar que culpados sejam presos, com ou sem Copa, será lúcido continuar se manifestando independentemente do governo que estiver no poder − e os governos são cada vez mais parecidos em uma série de coisas.
De novo, quero falar de futebol. Ele não está acima de tudo, não aceito todos os meios para que ele seja o centro das atenções; a FIFA é uma instituição indiferente a tudo que não sejam os seus interesses financeiros e se pudesse extinguiria até mesmo o futebol − mas não a Copa, enquanto ela der lucro. Contudo, não nos esqueçamos: nossa seleção tem Neymar; Cristiano Ronaldo tem capacidade para vencer sozinho uma Copa do Mundo; os argentinos têm Messi, Di Maria e uma vontade incontrolável de estragar a festa brasileira; a França nos faz de seu eterno freguês e Bezema parece estar voando; a Espanha, via Barcelona, já nos humilhou no passado recente e tem um time técnico e competente; a Itália quer alcançar o penta; o Uruguai é a única seleção que já venceu um título mundial em solo brasileiro e a Alemanha dispensa comentários e não precisa de motivações extras para ser favorita a algum título. Tudo isso não vale um leito a menos no hospital, mas vale a nossa catarse, a nossa comunhão, o nosso ópio. Como diria o compositor popular, a Copa também é uma forma de nos vingarmos de toda desgraça da vida. Vale, como diria o locutor, "a nossa torcida".
Temos que adquirir o hábito de cobrar do poder público a aquilo que temos por direito por pagarmos nossos impostos, por sermos cidadãos, seres humanos. Isso precisa ocorrer sempre, e não somente agora. Falar que professor é um herói precisa deixar de ser clichê, exigir que os governos se empenhem em resolver o problema de moradia é ir além da mercantilização do mundo, cobrar transporte público de qualidade e barato precisa ser uma bandeira de todos, inclusive dos que hoje não fazem uso desse transporte. A Copa pode ser uma vitrine para essas reivindicações, mas também é uma Copa do Mundo, um evento que aguardamos durante quatro anos, algo que faz parte de nossa cultura, de nossa formação, de nossas paixões (e se a FIFA não lidasse com uma paixão tão arrebatadora quanto o futebol, já estaria falida). Vamos torcer, vamos curtir, não como tolos alienados, intoxicados pelo tal ópio do povo; vamos também protestar e exigir o que é nosso, sem nos esquecermos que o futebol, ainda que esteja nas mãos de gângsteres, é mais nosso do que deles. Vamos burlar as leis imbecis e ditatoriais da FIFA sobre acarajés e festas juninas e vamos celebrar, quer o Brasil vença quer tropece pelo caminho.  Vamos aproveitar os feriados para celebrar não apenas o futebol, mas o renascimento da consciência do povo e a bênção de estarmos ao lado de quem amamos. E vamos comemorar cada gol, sim, vamos ficar tensos a cada partida difícil, sim, vamos curtir as partidas de outras seleções também. Só não vale achar que uma Copa vale uma vida, vale o descaso das filas, vale a indiferença dos governantes, especialmente aqueles que têm procurado manipular o povo contra ou pela Copa.

No futuro, seja pela guerra, seja pelo amor espalhado entre os povos, a Copa não fará ais o menor sentido. Mas agora, ah, como ela é importante.

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