quarta-feira, outubro 26, 2011

Desprezo gritante, protesto fedido

Sim, eu sei que o desprezo não grita; aliás, este é um sentimento que se destaca pela sua ausência, ou melhor, pela ausência do objeto do desprezo nos pensamentos do desprezador (eu prefiro desprezante, soa mais oficial). Quando verdadeiramente desprezamos alguém, essa pessoa some da nossa lembrança, não é levada em conta, sequer é odiada; diria mais: uma pessoa desprezada com perfeição não é desprezada, apenas inexiste para alguém.
É difícil desprezar plenamente. Normalmente, desgostamos, odiamos, invejamos e queremos fingir que toda constelação de sentimentos podres é apenas o altivo desprezo; por isso ele não grita: para não denunciar a hipocrisia de seus agentes, ou porque não existe de fato.
Mas a criatividade das autoridades brasileiras é maior que a dos poetas e dos loucos. Eles sabem fazer o desprezo gritar. A prova está na Bela Vista, na esquina entre as ruas 13 de maio e Manuel Dutra.
Nessa encruzilhada, em um bairro que nem é de periferia, fica uma escola estadual enorme. Bem sabemos que escola estadual é quase sinônimo de abandono, embora existam ilhas de exceção por aí. Essas ilhas são mostradas à exaustão, para que tenhamos a sensação de que “algo está mudando na educação pública”. De fato, há mudanças, mas com velocidade paquidérmica, o que nos impede de afirmar que evoluímos de verdade. Escolas públicas abandonadas também são um caso de desprezo gritante, mas o caso aqui é outro.
Na calçada da escola, na esquina já citada 13 de maio, Manuel Dutra – quase todas as manhãs (passo por lá para chegar ao trabalho) há montanhas de lixo: embalados em sacos plásticos amarelos, em sacolas de mercado, expostas em caixotes de madeira abertos, esparramados pelo chão: lixo orgânico, restos de cantinas, lanchonetes, restaurantes e bares. De vez em quando há garis varrendo o local; outras vezes, além do lixo, apenas pedestres se desviando da fedentina, correndo risco de serem atropelados por carros afoitos comandados por motoristas que não são responsáveis pela imundície do mundo, cachorros perdigueiros famintos e pessoas envoltas em panos e excremento, a dormir ali perto do lixão.
A bem da verdade, é preciso dizer que por conta de uma famosa quermesse que ocorre na rua 13 de maio durante o mês de agosto, a calçada esteve bem mais limpa no mÊs de agosto. Estudantes e transeuntes em geral pudemos passar pela calçada sem risco de sermos infectados por alguma doença, sem precisarmos disputar a rua com os automóveis. A calçada amanhecia até lavada! Os sacos de lixo, em quantidade bem menor, não apareciam rasgados e violados por moradores de rua e cachorros sarnentos esfomeados e cadavéricos. A limpeza da quermesse, fonte de renda do comércio local, é bem-feita, os visitantes não podem ter má impressão do bairro histórico, por onde Adoniran Barbosa transitava, freguesia que abriga uma tradionalíssima e campeoníssima escola de samba, cantinas elegantes – e caras – uma importante editora de livros didáticos, teatros etc.
Acontece que os frequentadores de bares, cantinas, teatros e quermesses chiques não estarão pela manhã, logo cedo, a passar pelas calçadas da Bela Vista. Não se dirigirão para a escola estadual do bairro, para trabalhar ou estudar – eles e seus filhos estarão em escritórios distantes dali, em escolas particulares, descerão de seus carros direto para tapetes e carpetes estendidos logo após as imponentes catracas.
Em algumas ruas da Bela Vista, o lixo, os trombadinhas, os cortiços em péssimas condições de higiene e manutenção, as marquises e viadutos abrigando “pobres tratados como podres”, tudo isso parece não existir, mas estão todos lá, escondidos, sufocados, esperando o momento certo de aparecer. A maquiagem social que tenta escondê-los não consegue aniquilá-los.
Além do lixo esparramado, como já dissemos, de vez me quando amanhece um homem jovem, que não deve ter mais de 25 anos, dormindo na calçada da escola. O cidadão, envolto em andrajos, rente ao muro e a um vaso, para se esconder como for possível dos ventos cortantes do nosso inverno, fede muito, a ponto de precisarmos prender a respiração quando passamos por perto dele. Suas roupas de vez em quando estão borradas – isso mesmo, cidadão de bem, borradas. Não quero sentir dó, tampouco uma indignação estéril que me faça apenas usá-lo como tema de mais uma crônica torta, mas fico sem saber o que poderia ser feito por ele de efetivo. O azedo consolo que tenho, enquanto não consigo agir, é imaginar que as roupas borradas do rapaz são o seu fedido protesto contra as autoridades. O problema é que elas não passeiam pelas ruas da Bela Vista de manhã cedo, pois conseguem desprezar sinceramente tudo aquilo.

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