quinta-feira, junho 06, 2013

Não exija, chore!


Juro que ouvi duas vezes, no espaço de dois meses de pessoas e em espaços  diferentes, essas palavras sendo ditas para  funcionários públicos que, por incompetência ou preguiça de alguém, ficaram sem salário, apesar de terem cumprido direitinho com suas obrigações:
− Continuem trabalhando, ou sofrerão sanções administrativas. Trabalho não tem nada a ver com salário. Estamos aqui para defender os interesses do Estado e dos alunos (adaptei e condensei as falas).
No caso de o funcionário questionar, exigir o pagamento do salário que lhe é devido, informar que, sem salário (às vezes sem receber há dois, três ou quatro meses), não terá condições de se deslocar até seu posto de trabalho, fora outras restrições comuns a quem não tem dinheiro, como por exemplo comer, tomar banho e comprar remédios, ouve, sem titubeio desses capitães do mato do serviço público, alguns impropérios: arrogante, malcriado, folgado, e ainda recebe mais ameaças, sorrisos irônicos e é acusado de ser o responsável pelo não pagamento, ainda que tenha exercido suas funções direitinho e entregue, no prazo estipulado, a documentação solicitada.
Isso acontece, em parte, porque o brasileiro é acostumado a ver o conflito como algo negativo, ruim, de mau gosto. Lamentar é permitido, pois o lamento não exige atitudes. Então, se o funcionário injustiçado fizer cara de choro e continuar heroicamente trabalhando, será considerado um ótimo "profissional", que "ama e respeita seu ofício" e que entende que o sistema é ruim, puxa vida. Sempre que precisar de algum "favor", será, obviamente, contemplado, se não houver ninguém mais querido pelos seus superiores, claro, na frente.
Não consigo falar em profissionalismo sem que o profissional esteja sendo dignamente pago pelo seu trabalho. Quem trabalha sem receber salário é escravo, amador ou voluntário. O profissional não deve ser valorizado por ser um "bom rapaz", uma "menina meiga", mas por ser competente − e o chefe, o patrão, o capataz, só pode exigir competência se também cumprir o acordo, do qual podem fazer parte muitas coisas, da cesta básica a férias no Taiti, mas nunca deixará de incluir salário.
Jogadores de futebol também sofrem com essa cultura do lamento e da fuga do conflito. Se um time está sem receber salário e entra na justiça cobrando seus direitos, ou se recusa a entrar em campo, logo é chamado de mercenário e corre o risco de ser até mesmo agredido por torcedores na rua; exige-se de jogadores profissionais que joguem por amor à camisa. Quem precisa amar o clube são os dirigentes, e ainda assim aqueles não remunerados,  e os torcedores. Exigir raça e parabenizar profissionais que estão sendo feitos de otários por seus patrões me lembra o que acontecia com os gladiadores.
É deselegante um funcionário exigir direitos básicos, embora seus patrões adorem destratar garçons, porteiros, frentistas, recepcionistas, professores e demais profissionais sempre que acharem que estão sendo mal servidos. Direitos humanos, trabalhistas e do cidadão eles acham que é cosa feia, mas direito do consumidor e direito à carteirada é com eles. Nesses casos, não entendem suas exigências como conflito, pois, acreditam estar em patamares superiores na sociedade, pela inteligência, beleza, classe social ou porque são uns babacas mesmo. Acham que estão apenas "colocando as coisas em seus devidos lugares". O conflito de que falo é aquele que subverte a ordem estabelecida, que busca desfazer injustiças, que vai ao encontro do mais fraco.
Nós brasileiros, homens cordiais, filhos de três séculos de escravidão e colonialismo, duas ditaduras e de uma infinita cultura do favor, sofremos com isso. Na cultura do favor, o que conquistamos não são de fato conquistas, são concessões, ajudinhas, fruto da benevolência de nossos governantes,  das classes sociais mais privilegiadas. Uma das estratégias para que continuemos cordiais é, por exemplo, apelar para o nosso "bom-senso": os que nos prejudicam são ótimas pessoas, arrimo de família, solidárias, fazem doações para asilos e estão "muito mal com o ocorrido". Precisamos entender, ser pacientes e tolerantes, pois tudo se resolve: não tem grana pra ir trabalhar? Pega uma carona. O aluguel atrasou? Negocie com o senhorio, ele vai entender. A fatura do cartão explodiu? Chato, né, também já passei por isso. Quando receber seu salário, sem correção e com descontos gordos de imposto do renda, você resolve.
Ou seja, em vez de resolver a questão, passe a bola adiante, ou engula seus problemas com um sorriso no rosto, seja versátil, mostre suas habilidades. Seja cordial, dócil e manso. Afinal, estamos na cultura é do favorecimento e do lamento, não do conflito.  Seja bonzinho que um dia desses alguém lhe fará o grande favor de pagar o seu salário − mas só se você se comportar bem, viu?


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