quinta-feira, junho 07, 2012

Entre a homenagem e a falcatrua



Todo artista começa sua trajetória após ser alcançado por outro artista que o antecedeu; ninguém parte do zero.
O artista que chega causando espécie e impressionando pela originalidade, normalmente, experimentou, trabalhou muito antes de “surgir”. Isso quando não foi moldado em escritórios e estúdios para atender a uma demanda de mercado, mas nesses casos trata-se de algo entre uma enganação ou um exagero midiático. Às vezes, o artista tem um talento instintivo, mas aí trata-se de um caso raro; quem chega ao inferno, quase sempre é conduzido pela mão de algum Virgílio, algum Dante, levando consigo toda esperança.
A personalidade artística autêntica não é forjada em duas ou três pinceladas, em dois acordes, em meia dúzia de estrofes. Ela vai sendo montada a cada tentativa, a cada esbarrão, a cada improviso, a cada derrapada, a cada cálculo, a cada achado. De vez em quando, um artista chega à conclusão de que já atingiu seu ápice, ou que, tristeza, perdeu a vontade criativa, o talento. Alguns, quando chegam nesse estágio, são honestos o suficiente para colocar um ponto final em sua obra; outros se cristalizam, repetem fórmulas, não por ainda acreditarem nelas, não por uma obsessão pessoal, mas para não perder a boquinha. Ou ainda, o que pode ser bem menos louvável, buscam repetir, copiar, macaquear ondas que estão em maior evidência. Raramente o resultado fica além do constrangedor.
Os primeiros poemas, as primeiras músicas criadas pela humanidade foram meras imitações de ritmos da natureza, do ruído desagradável das ferramentas rústicas de trabalho; a originalidade mora na filosofia de misturar, embaralhar ou de se opor ao que já existe. De qualquer jeito, sempre há a presença de um outro, e isso desde o início.
Quem é imitado precisa lidar com dois sentimentos bem distintos: o primeiro, é a vaidade que qualquer tipo de admiração gera; o segundo é o desgosto de perceber que alguém tenta embarcar em seu talento, falsificar sua assinatura. A cópia também pode significar menos negócios, por haver um genérico mais em conta no mercado. Entre a vaidade de ser imitado e a irritação de deparar com uma concorrência desleal, cabe a quem é copiado se lembrar que também já imitou alguém em algum momento e ter paciência quando o “fã” não é desonesto. Afinal de contas, todos nós lidamos com a “angústia da influência”.
Como exemplo cito três escritores que são verdadeiras matrizes geradoras, todos, coincidentemente, mineiros. O primeiro é o poeta Carlos Drummond de Andrade. Sua obra foi tão marcante entre nós, que verdadeiras legiões de poetas bebem gulosamente seus versos, querem ser como ele. Creio que pouquíssimos imitadores de Drummond conseguiram chegar a algum lugar de destaque. E isso justamente porque queriam ser como ele, não problematizavam a admiração, não saíram daquela fase juvenil em que os amantes da poesia copiam poemas em cadernos escolares ou nas redes sociais: não deixaram de fazer decalques.
Outro autor-matriz é Guimarães Rosa. Depois de sua prosa inventiva, parabólica, de palavras “quase inventadas”, vários escritores quiseram fazer coisa semelhante. Muitos deles, talentosos ou não, em sua ânsia inventiva, não foram muito além da soldagem de palavras, ou da troca meio sem critério de prefixos e sufixos, não raro para esconder a fraqueza de suas narrativas.
O terceiro mineiro é Rubem Fonseca. Sua prosa urbana, seca, entre policial e cômica, muitas vezes com personagens deslocadas, pobres, “estranhas criaturas”, teve um efeito bem arrasador entre os escritores. Muita gente boa bate continência ao Zé Rubem, muita gente começou a escrever sobre travestis, traficantes, policiais e prostitutas, almejando ser como o mestre. Mas muita gente perdida pensou trilhar os passos do autor de Agosto e não coisa que prestasse. Usar palavrão, por exemplo, passou a ser o “recurso estilístico” mais desgastado entre nós.
Ser imitado, como já disse, não deixa de ser uma honra. É sinal, sim, de reconhecimento. Agora, quando surge um artista que consegue imitar sua influência à perfeição, deve soar a sirene de alerta. Djavan, por exemplo, artista bastante original (que bebeu em fontes de sambistas, da bossa nova, do jazz e de Luiz Gonzaga) de vez em quando é decalcado por alguém, mas até hoje ninguém chegou muito perto de seu talento, tanto que os adeptos do transfer ou desaparecem ou viram outra coisa, muitas vezes bem diferente. As letras originais de Djavan, que se casam com a melodia e criam significados, quando imitadas, não passam de garatujas. Roberto Carlos foi imitado por exércitos de cantores, alguns com relativo sucesso, mas que hoje em dia estão restritos a algumas casas de lazer com luzes vermelhas nas portas. Renato Russo e sua banda foi imitado, mas ninguém atualmente é sequer lembrado (“missionários de um mundo pagão”).
Ana Carolina, Cassia Eller e Zélia Duncan são bastante imitadas, mas é fácil perceber a diferença entre elas – independente de gostarmos do conjunto de suas obras – e as tolinhas que entoam com vozes graves seus cantos cafonas.
Ano passado, havia uma canção bastante presente no rádio que lembrava em tudo, arranjo, melodia, letra e principalmente timbre da voz, uma famosa cantora brasileira. Fiquei na dúvida: será que é aquela, que já há algum tempo não lança disco? Resolveu aparecer? Como sou fã dessa cantora, fiquei na expectativa.
Quando descobri que aquela canção era de uma outra cantora ainda não famosa, fui atrás de alguma coisa na internet. As outras canções que achei da moça em nada se pareciam com a cópia que ela, seus produtores, empresários e sei lá mais quem, resolveram fazer da cantora famosa.
Fiquei com a impressão de que a moça era uma picareta. Porém, também fiquei com uma indagação: se ela conseguiu imitar a original ao ponto de deixar um fã em dúvida, é porque a fórmula já estava bem manjada. Era hora de mudar, afinal, artista que é imitado à perfeição não apenas caiu no gosto popular: ficou previsível, óbvio, deixou de arriscar.
E não é que veio o disco novo da cantora imitada e as canções são exatamente iguais as que ouvimos em outros carnavais? Nesse caso, a impostora picareta que tenta passar por outra cantora não é a única farsante...

2 comentários:

Sides disse...

Grande texto! Embora,conhecendo o amigo, acredito que foi econômico em sua crítica.

A questão, em alguns casos, é o propósito determinado; cópia, criação ou citação.

O que vimos na última semana,não fez bem, cópia, pois estava longe de lembrar, não citou, pois faltou conteúdo para tal. Mas, criou. Sim! Criou constrangimento e dúvida. A dúvida, muito bem, ressaltada em seu título.
Um abraço.

Sides disse...

Grande texto! Embora,conhecendo o amigo, acredito que foi econômico em sua crítica.

A questão, em alguns casos, é o propósito determinado; cópia, criação ou citação.

O que vimos na última semana,não fez bem, cópia, pois estava longe de lembrar, não citou, pois faltou conteúdo para tal. Mas, criou. Sim! Criou constrangimento e dúvida. A dúvida, muito bem, ressaltada em seu título.
Um abraço.

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