quinta-feira, dezembro 24, 2009

Natais Possíveis

A doação chegou a tempo.
Sobre a mesa farta de migalhas de pães dormidos do café da manhã amanhecido de muitos dias, grandes mãos engorduradas retalham peru e lombo que vieram da ajuda comunitária.
A toalha de plástico exibe frutas que, de verdade, nunca estiveram ali: uvas, melões, pêssegos, abacaxi... só bananas e laranjas, vez e outra, rolaram pela mesa, despejando suas cascas, e odores de meia putrefação, meio passadas, entrando no podre.
As mãos seguem cercando a ave e o porco, gordos, e da boca escorre sumo, escorre saliva, voam farelos e perdigotos, a família observa.
Sob a mesa o bebê de fralda imunda e calça plástica imensa, cheia, esconde o pânico no choro que engole. O pai é o pavor. Outros dois loiros irmãos, secos de carne, se encostam na parede, sentados ao chão, e o pai devora. A mãe, na cozinha, requenta um café.
Apenas o pai come-recome-come, antecipando o gutural arroto que rebaterá na caixa quase vazia de concreto, ribombando pelas paredes, o lar.
Ele é quem manda. Protege a família no braço, no trabalho; é quem come, o que cair de seu beiço vai pras crias, pra fêmea.
Natal não é data pra diferenças, rebeliões e fricotes. A data é tradição e manutenção da História. o espírito que ronda os generosos nessa época aqui nem paira.
A comida que imunda a mesa veio daquele grupo de pessoas acima da linha da miséria, aquelas que despejam dinheiro e fazem a alegria dos pobres. Os pobres, alegres porque recebem doações e passam menos fome. Os pobres que chafurdam em certa miséria calculada e cumprem seu papel, aplacando a consciência de quem ceia fartamente com a família.
Quem entrega o peru, quem libera o lombo pro pobre trabalhador – veio também presente pra cada filho, que o pai não entregou por julgar que ninguém ali merece ou sabe usar tudo aquilo; trocou no bar por três doses – quem faz a caridade e a cárie, não está aí pro que ocorre de verdade.
Sem a manjedoura, sem a entrega – nada dessa caridade de porta-retrato – não se nasce, no natal.

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