segunda-feira, setembro 09, 2013

Bandeira e a estrela oculta


Acredite se quiser, fui ler a sério Manuel Bandeira só no primeiro ano da faculdade. Não sério no sentido chato/acadêmico, desses que viram o texto do avesso e tiram dele qualquer prazer possível: sério que eu digo é com a consciência da autoria, é sabendo que O bicho, Vou-me embora pra Pasárgada, Os sapos, Pneumotórax e outras joias da poesia brasileira eram todos poemas do mesmo Manuel Bandeira. Sério seria conseguindo estabelecer relações entre esses textos, descobrir uma lógica, uma visão de mundo.
Não fui um grande leitor de literatura, e talvez ainda não o seja. Primeiro o rock e depois a MPB foram as caçambas onde despejava meus sentimentos, minhas dúvidas, meus demônios pessoais. Antes de tudo, a música.
Logo nos primeiros dias de estudante de Letras, o que continuo sendo até hoje, adquiri o essencial Estrela da Vida Inteira, por causa da importância que um professor lá atribuiu a ele. Trata-se de uma verdadeira constelação de poemas da mais pura sensibilidade, despida dos trajes oficiais da poesia. Ali é possível encontrar parnasianismos e simbolismos tardios, sonetos martelados, mas não falta a dose por vezes homeopática do mais sincero lirismo. Livro para a vida inteira.
Passei um pedaço da eternidade na faculdade. Em um daqueles efervescentes anos em que estive preso à graduação − hoje os grilhões e as musas que me confinam na academia são outros − conheci um amigo, colega de curso e de ocupação. Gente boa, tímido, em dúvida sobre seguir a carreira burocrática de servidor público do Banco do Brasil ou embrenhar-se na fauna-flora semisselvagem das salas de aula, esse colega precisava escrever trabalho sobre Bandeira. Emprestei minha Estrela.
O prédio da faculdade é grande e feito para os desencontros. As vidas nos arrastam por corredeiras sem destino certo. Perdemos contato, perdi meu livro.
Não comprei outro exemplar, sei lá por quê. Talvez esperasse que um dia encontrasse o amigo, que me pediria desculpas e devolveria aquele ou um outro exemplar qualquer, talvez até um  raríssimo autografado pelo poeta menor menormenormenorme, como diria Zé Paulo Paes. Também porque a grana sempre anda curta, também porque a internet nos supre no aperto. Mas sentia falta do tato sagrado daquelas páginas que me entendiam e me explicavam. Ainda que Bandeira tenha chegado inteiro apenas na faculdade, seus poemas me ajudavam a não perder o viço de leitor não profissional, de admirador não exatamente da técnica, mas daquela outra coisa que a gente nem consegue medir ou rotular com precisão, aquele sopro que nos faz apenas sorrir ou chorar, apenas gozar a bênção de ler um bom poema.
As vidas seguem galopando, quando a gente vê passou mais de uma década e a gente está casado, passando lua de mel em Natal, hotel bacanudo. E a surpresa foi encontrar aquele amigo da faculdade que acabou, por razões presumidas e perdoáveis, ficando com o nosso livro do Bandeira. Ele estava passando férias com a esposa, mais funcionário público do que nunca, bem-sucedido, certamente feliz − quem não ficaria feliz em Natal, com aquele sol e aquele mar, as dunas, os camarões e macaxeiras, com aquele cheiro de felicidade envolvendo a cidade? Trocamos sorrisos, cumprimentos, espantos espontâneos, sinceras manifestações de apreço, apresentações e ele falou do meu livro, que estava com ele, que devolveria, por intermédio de seu irmão, que ainda morava no mesmo bairro que eu. Disse que não precisava, que eu compraria outro, que não faria sentido nos encontrarmos em terra distante, desfrutando da felicidade das férias, eu ainda mais, no cume da felicidade de estar celebrando o amor da vida inteira, e ficarmos falando de livros perdidos, esquecidos ou não devolvidos. Que ele deixasse pra lá.
Mas meu amigo, honesto, insistiu. Anotou telefone, acho, ou me pediu que anotasse o dele, não lembro, meu livro chegaria até mim, são e salvo, após tanto tempo. Era um livro do Bandeira, Estrela da vida inteira, não poderia ficar com quem não era seu dono legítimo. Uma estrela que brilha sozinha no céu dos poetas, pela solidão que o abraçou quase que a vida toda, pelo talento sem par com que costurava seus poemas, pela alegria melancólica, pelas danças travadas com a morte. Bandeira e sua estrela não têm dono, todo mundo sabe disso.
Era o Manuel Bandeira querendo participar de um dos pedaços mais felizes dessa minha vida, passando para dar um oizinho, solidário. A vida ainda continua escorrendo, até quando Deus quiser, o irmão do meu amigo até hoje não trouxe a encomenda, e Bandeira não me larga, necessário na sala de aula, essencial nas leituras solitárias. Manuel Bandeira está sempre presente, mesmo que seja em forma de estrela oculta. Sem ressentimentos, preciso encomendar outra Estrela da Vida Inteira.




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